Em depoimento a Lara Machado.
No último mês, fiquei obcecada com o show da Madonna. Pensava: preciso ir, vou de qualquer jeito. Moro em São Paulo e me questionava: Onde me hospedar no Rio de Janeiro? Com quem ir? Tentei criar um grupo com meus amigos, mas a maior parte não acompanha o trabalho da Madonna. Ninguém estava tão animado. De toda forma, me organizei e fui com minha irmã gêmea, Estela May, para o Rio no dia 30 de abril. Ao mesmo tempo, crescia em mim o sentimento de que não queria estar no show sem a minha mãe.
Teve até um momento em que bateu uma vontade imensa de voltar para São Paulo na mesma hora. Não queria mais ir, não sem a minha mãe. Foi uma obsessão tão louca que só na véspera do aniversário dela [a escritora, roteirista, atriz e apresentadora Fernanda Young, que morreu em 2019 e faria 54 no último 1º de maio] percebi que sentia que deveria estar no show da Madonna por ela. Estava muito sensível. Minha mãe sempre dizia que sou muito sensível.
Desde que o evento foi anunciado, vi muitas pessoas contando histórias relacionadas a Madonna. Pensei: “Ah, quer saber? Vou tirar uma foto que prova que meu nome é Madonna como o dela.” Peguei o meu passaporte na mesa de cabeceira e tirei a foto. Foi. Achei que ia render umas cem curtidas e algumas risadas. Mas o post foi longe e as pessoas começaram a me ajudar. Aliás, sou muito grata a todo mundo que sentiu que eu deveria estar lá. Isso é uma das coisas que mais me emocionaram nesta história e fico com vontade de chorar só de falar. Achei lindo o fato de entenderem como esse show era importante pra mim.
No dia do aniversário da minha mãe, o quinto desde que ela morreu, eu não esperava nada. Estava no chuveiro, ouvindo What It Feels Like For A Girl, aquela música que ela traduziu no Saia Justa e viralizou no Twitter recentemente. Logo depois entrei no X [antigo Twitter] como se não quisesse nada e estava lá a mensagem do patrocinador* disponibilizando os ingressos. Na hora minha irmã virou e falou: “Você sabe quem foi, né?” A gente sempre fica procurando sinais da minha mãe. Não sei se peguei isso do meu pai. Meu pai sente muito sinal por música. Em dezembro do ano passado nós estávamos em um hotel aqui do Rio para pegar o meu livro [Tudo que eu posso te contar] impresso pela primeira vez e, do nada, começou a tocar Forever Young do Alphaville. Justo a música que minha mãe sempre falou que era a nossa família. Ela sempre escutava, era nosso hino.
Como cheguei no Rio com antecedência, consegui curtir um tempo na cidade, mas meus dias foram realmente Madonna, Madonna, Madonna, Madonna. Não conseguia pensar em outra coisa, não conseguia fazer nada. Fui ao Copacabana Palace tentar ver a Madonna. No dia do show, eu estava monotemática. Minha irmã foi à praia e eu fiquei dando voltas no quarto do hotel. Mandei fazer uma bolsa e uma saia cheia de correntes, crucifixos e enfeitezinhos. Passei o dia inteiro pulando e reparando que a saia fazia muito barulho. Tentei mexer nela enquanto ouvia a Madonna. Normalmente com outros shows, mesmo dos artistas que conheço só três ou quatro músicas, já fico ansiosa. Mas dessa vez a sensação triplicou. Mal consegui comer. Pedi um bule de café no serviço de quarto, que tomei loucamente. E continuei ouvindo Madonna. “Será que já devo ir?”, “Será que já posso ir?”, era o que eu pensava a todo momento. Mandei mensagem pra minha irmã falando: “Pelo amor de Deus, volta dessa praia agora.” O espaço abria às 18h, e cheguei lá nessa hora, mas chegaria muito antes se fosse possível.
Antes de o show começar, já na área vip, eu e minha irmã ficamos desconfortáveis. Tinham muitas famílias tradicionais brasileiras. Escutamos comentários desnecessários e alguns homofóbicos. Pouco antes da apresentação começar, um dos convidados da área vip me reconheceu e me chamou para ficar mais próximo do palco. Neste momento, um outro rapaz que também estava ali disse que se tivesse com uma faca me mataria. A primeira coisa que pensei foi que nem mesmo no show de Madonna ficamos seguros. Fiquei preocupada e cogitei procurar outro lugar para acompanhar a apresentação. Mas, por mais que o caso tenha sido horrível, fiquei pensando que foi bom o agressor ter assistido ao show. Também me dei conta de que, afinal, é disto que a Madonna fala: de não deixar essas pessoas nos oprimirem. Decidi: vamos ficar aqui berrando e dançando, e se eles se incomodarem, que se mexam. Essa é a celebração da Madonna.
Fiquei eufórica quando a Madonna entrou no palco. Chorei muito. Minha irmã, preocupada, perguntou se eu estava bem, se queria sentar ou beber água. Também por isso foi tão especial poder ir ao show com ela. Somos muito diferentes. A sensação que tenho é que desde pequenas fomos pegando o que cada uma gostava para si, mas com Madonna isso não ia funcionar, ninguém ia abrir mão de amar a Madonna. Então, subconscientemente, escolhemos dividir esse amor por períodos. Óbvio que amo músicas de todas as fases, mas prefiro as canções da década de 1980, do começo da carreira. A Estela elegeu os álbuns atuais. Apesar de não ter Madonna no nome, acho que ela é mais fã que eu. Viver esse momento com ela foi muito especial, porque na minha memória, éramos nós duas no carro com a minha mãe colocando o CD da Madonna para ouvir. Ela sabe que a primeira coisa que fiz depois que a minha mãe faleceu foi ir ao meu quarto escutar Ray of Light. Então, quando a Madonna começou a cantar essa música, e eu desabei em choro, a minha irmã reconheceu o que isso significava para nós duas. Estela sabe que essa era a música que a minha mãe mais gostava de escutar e o que aquele momento no show significaria para ela.
Já faz quase 5 anos que a minha mãe faleceu, mas o luto demora para acontecer. Você acha que superou e do nada cai uma ficha de “é, acho que não”. Maio é sempre um mês difícil pra gente, porque começa com o aniversário da minha mãe e logo vem o dia das mães. É uma dobradinha de datas não divertidas nesse processo, ou até divertidas e de celebração, mas que doem ao mesmo tempo. E o show da Madonna, bem no meio disso, é como um abraço, sabe? Foi um aprendizado, foi um abraço, foi um soco na cara. Ficou um sentimento de amor imenso e gratidão. Escrevi no meu diário que fiz isso por mim e pela minha mãe, e que de alguma maneira serviu para fechar algumas feridas que ainda estavam abertas em relação a tudo o que aconteceu. E foi mágico.
Eu e minha irmã tínhamos 19 anos (hoje, temos 24) quando minha mãe morreu, após uma crise de asma. Recebi uma enxurrada de mensagens. Muita gente vinha desabafar comigo, e eu sentia que estavam colocando um peso sobre mim. Foi um processo duplo: perder a mãe, mas também receber milhares de recados incômodos. Eu via aqueles recados e pensava: vocês não a conhecem. Ela é minha mãe, sabe? Para mim, ela não é a pessoa que faz a televisão, escreve um livro e fala umas coisas. Ela é a pessoa que acordava de manhã, de pijama, sem maquiagem, com o cabelo todo para cima falando “puta que pariu, vou ter que acordar cedo”. Ela ia me buscar na escola e, querendo ou não, era bem careta.
Depois de receber essas mensagens, muito pesadas para mim, me distanciei total. Fugia sempre que via alguém comentando algo sobre ela. Meus amigos até falam que é um problema, porque eles reclamam que mandam uma mensagem e eu demoro cinco semanas para responder. É que eu nunca sei se vou esbarrar num vídeo da minha mãe. Queria ignorar, fiquei com medo de falar dela, de postar sobre ela. O pior é que são coisas que quero fazer, porque desejo que sua história continue sendo contada. Durante essa semana no Rio, teve gente que me reconheceu como filha da Fernanda e veio falar comigo e agradecer pelo que minha mãe fez. Saber disso me reaproximou dela e da sua arte. Entendi que nesse tempo em que estive distanciada poderia ter escutado coisas lindas sobre ela dos seus fãs ou de gente que a admirava.
Também fui procurada por jornalistas. Não sei se sou a pessoa certa para falar sobre a Madonna, mas foi emocionante porque senti que estava homenageando a minha mãe e também homenageando meu nome. Ainda sou muito insegura comigo, tenho problemas sérios com a minha imagem e de confiança. Mas, nessa última semana, esse nome me ajudou a reconhecer que posso ter e ser mais do que me deixo ser. E, por outro lado, também me fez sentir que estava falhando com a minha mãe. Mas, mesmo com a autoestima baixa, lutei para não desistir do show e mostrar aos admiradores que conheci – da minha mãe e da Madonna – que não sou um caso tão perdido assim. Posso não ter a autoestima de me olhar no espelho e me achar uma gata, mas tenho essa coisa que vem dela de lutar até o final pelo que quero.
Após o show, eu e minha irmã concluímos que vamos demorar um tempo para processar tudo que vimos. Vou querer rever o show, assim como outras pessoas. Isso que é legal da Madonna. Eu era pequena quando a minha mãe me mostrou Na Cama com Madonna, e até hoje, quando me sinto mal, revejo o filme. Isso mostra a força dela. A Madonna sempre sustentou uma postura de “dane-se o que as pessoas pensam, vou fazer o que quiser”. É uma obra que me ajuda. Às vezes, nem presto atenção, só fico deixando passar, vou ouvindo as músicas e, quando olho pra tela, lá está ela sendo ela. E é lindo. Tenho a sensação de que esse show vai ser para muitos fãs como o Na Cama com Madonna é pra mim. É especial ter feito parte desse momento histórico.
Eu vi um comentário no Instagram em que alguém falou que esse show pode ser um novo começo para um público que não acompanhava a Madonna abrir mais a mente – como o rapaz na área vip que foi super agressivo. Apesar do estresse naquele momento, foi um aprendizado pensar que teve muita gente que finalmente viu o que a Madonna faz há quarenta anos e deve continuar fazendo. No palco, ela confirmou o que minha mãe já tinha dito no Saia Justa: ela foi a mulher mais importante do século XX e talvez seja do século XXI também.
Eu poderia muito bem ter ficado com meus amigos que sentiram que não valia a pena se deslocar pro Rio. Mas valeu a pena. Muito. Acredito que quem estava lá e mesmo aqueles que viram pela televisão também perceberam isso. Madonna conseguiu mobilizar um país inteiro com mensagens importantes. Foi não só uma celebração da artista, mas da própria vida. Falar com os fãs dela e da minha mãe foi lindo e me deu ânimo para tentar reconhecer meu poder, parar de ignorar o que aconteceu e ter força para ser eu mesma.
*Um dos patrocinadores do evento foi o Itaú. A família do fundador da piauí é acionista integrante do bloco de controle do banco.