Uma ausência marcou a coletiva realizada no Palácio do Planalto na última quinta-feira, 1º de agosto, para anunciar o futuro do monitoramento do desmatamento da Amazônia: a do ministro da Ciência, Marcos Pontes. Na ocasião uma novidade foi anunciada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao lado do presidente Jair Bolsonaro, do chanceler Ernesto Araújo e do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional: Salles afirmou que o governo vai abrir licitação para contratar uma empresa que faça o serviço de monitoramento diário da Amazônia em tempo real e com alta resolução.
Quem se encarrega atualmente de monitorar o desmatamento para o governo é o Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Postos em xeque sem qualquer fundamentação técnica pelo presidente Jair Bolsonaro, os dados do Inpe foram o foco da crise que derrubou, no dia seguinte, o físico Ricardo Galvão, diretor do Inpe. Galvão vinha sendo fritado em fogo alto havia duas semanas, desde que Bolsonaro disse ter a convicção de que os dados são “mentirosos” e que o diretor parecia agir “a serviço de alguma ONG” (o pesquisador rebateu alegando que o presidente “tomou uma atitude pusilânime, covarde”, conforme afirmou em entrevista a O Estado de S. Paulo).
Havia por parte da comunidade científica a expectativa de que Pontes saísse em defesa de Galvão. Diretores de outros centros de pesquisa vinculados ao Ministério da Ciência chegaram a enviar ao ministro uma carta fazendo esse apelo, conforme noticiou a Folha de S.Paulo. Não foi por falta de entendimento de Pontes sobre o funcionamento do sistema de alertas de desmatamento do Inpe. “O ministro não tem nenhuma dúvida com relação à nossa metodologia”, disse Galvão em entrevista à piauí. No fim, a vontade de Bolsonaro acabou prevalecendo. “Certas coisas eu não peço, eu mando”, afirmou o presidente no fim de semana, referindo-se à exoneração do diretor do Inpe.
Os dados questionados pelo presidente são gerados pelo Deter, um sistema de alertas de desmatamento criado pelo Inpe (o instituto tem também outro sistema, o Prodes, responsável pelo cálculo da taxa anual de desmatamento com imagens de maior resolução). Enviados às autoridades ambientais para que possam organizar operações de fiscalização, os alertas tiveram papel determinante na redução de 84% no desmatamento alcançada entre 2004 e 2012.
Disponíveis numa plataforma de acesso livre na internet, os dados do Deter apontaram uma tendência significativa de alta nos últimos três meses – o aumento acumulado da área derrubada desde agosto de 2018 em comparação com o período anterior é de quase 50%. A alta no desmatamento e as críticas do presidente ao Inpe chamaram a atenção da imprensa internacional e foram tema de reportagens de destaque em veículos como The New York Times, The Guardian, The Economist e Scientific American, dentre outros.
Pouco se sabe por enquanto sobre o novo sistema de monitoramento a ser contratado pelo governo. “Vamos melhorar sistema de satélite e a análise dos dados, [e a forma] como eles são apresentados para o Ibama”, disse Marcos Pontes num vídeo publicado nas redes sociais. “Os questionamentos [aos dados do Deter] foram positivos para o sistema como um todo”, disse ainda o ministro. “De um limão acabamos fazendo uma limonada muito boa.”
Resta ver que papel o Ministério da Ciência terá nas especificações do novo sistema de monitoramento da Amazônia, e em que medida os dados do Inpe continuarão a ser aproveitados. Em nota enviada à piauí, o MCTIC afirmou que tem “total confiança” nos dados e que o novo sistema funcionará de forma complementar aos que já estão em operação. “O sistema será aperfeiçoado para melhor atender ao seu principal cliente, o Ibama, que dele depende para realizar ações de controle do desmatamento”, diz a nota. “O Ministério do Meio Ambiente também se comprometeu a colaborar com recursos para o Inpe, para a formação de quadros permanentes no trabalho de análise dos dados do desmatamento.”
Na reunião em que exonerou o diretor do Inpe por ordem de Bolsonaro, Marcos Pontes disse-lhe que não haveria qualquer cerceamento à ação do instituto por parte do governo. Galvão acredita que o Inpe deve continuar a fazer o cálculo da taxa anual de desmatamento, com o sistema Prodes, mas pareceu menos seguro quanto ao futuro do Deter. “O instituto tem recursos para continuar com os alertas este ano, mas pode ser que para o ano que vem não sejam colocados recursos orçamentários com essa finalidade.”
A decisão do governo de entregar à iniciativa privada o monitoramento que hoje é incumbência do Inpe suscitou críticas entre os cientistas. “Por que contratar de maneira estranha uma empresa para fazer o monitoramento de uma área estratégica para o país?”, questionou o físico Ildeu Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC. “É arriscado abrir mão do conhecimento da Amazônia, com as riquezas e o potencial que ela tem.” Se o caso é melhorar a precisão dos dados, continuou, o governo deveria injetar mais recursos no Inpe.
O ambientalista Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima, classificou as acusações ao Inpe de uma “cruzada contra os fatos” por parte do governo. “Nos próximos meses, Bolsonaro e seu ministro do [Meio] Ambiente descobrirão, do pior jeito, que não adianta matar o mensageiro, nem aparelhar o Inpe: a única maneira de evitar más notícias sobre o desmatamento é combatê-lo”, ele afirmou em nota.
Aos 71 anos, Ricardo Galvão deve se reintegrar esta semana ao Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), de onde é professor titular e do qual se afastou para assumir a direção do Inpe. Para definir seu sucessor, Marcos Pontes deve nomear os integrantes de um comitê responsável por elaborar uma lista com três nomes, entre os quais o ministro escolherá o novo diretor – o processo todo pode levar alguns meses. Enquanto isso, será nomeado como interino Darcton Policarpo Damião, coronel da reserva da Aeronáutica. Segundo Pontes, seu nome foi escolhido pela capacidade de gestão e pelos conhecimentos sobre o Inpe, onde Damião fez mestrado, e sobre o desmatamento (ele é doutor em Desenvolvimento Sustentável).
Galvão caiu defendendo a instituição que dirigia. “Esse episódio não afetou somente o Inpe, foi um ataque a toda a ciência brasileira”, afirmou. “Não se ataca a ciência brasileira impunemente.” O pesquisador manteve o tom firme da crítica ao presidente ao evocar as acusações de que foi alvo. “Não sei se ele teve consciência da gravidade do que falou ao me acusar de estar traindo meu próprio país”, disse o físico, que não manifestou arrependimento por suas declarações. Se havia dúvidas sobre os dados de desmatamento, continuou, a administração pública tem mecanismos para investigá-los. “Ao dizer que os dados eram mentirosos, ele estava na verdade acusando de falsidade ideológica os cientistas do Inpe que os produziram.”
A comunidade científica saiu em defesa de Galvão após sua exoneração. Ildeu Moreira, da SBPC, se disse preocupado com o desdobramento dos questionamentos ao Inpe. Lembrou que, antes disso, houve tentativas de desqualificação de informações geradas por outros dois órgãos vinculados ao governo federal, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Esse é um movimento que desvaloriza o conhecimento científico e sinaliza o incômodo provocado por dados produzidos por instituições que são do Estado brasileiro”, afirmou.
O alinhamento de Marcos Pontes com o presidente abalou sua imagem aos olhos dos pesquisadores brasileiros. O ministro vem da área das ciências exatas – é engenheiro aeronáutico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), sediado em São José dos Campos como o Inpe –, e mantinha abertos canais de discussão com a comunidade científica em torno de interesses comuns, como o aumento dos recursos federais para a área.
“Não dá para revogar a lei da gravidade, e o ministro sabe bem disso”, afirmou Marcos Buckeridge, biólogo da USP e ex-presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. “Negar que a floresta esteja sendo derrubada e conseguir dados que sustentem aquilo que você quer dizer terá alto custo para a agricultura brasileira, pois a estabilidade da Amazônia é o que mantém o clima.”
Para a bióloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília, a atitude representou um ataque inesperado a um pilar do método científico. “O ministro pode não concordar com os dados, mas deveria ter defendido os protocolos de questionamento da ciência”, disse Bustamante, que integra a coordenação da Coalizão Ciência e Sociedade, um grupo de 65 pesquisadores de todo o país.
Na nota enviada à piauí pelo MCTIC, o ministro Marcos Pontes afirmou que “a contestação de resultados, assim como a análise e discussão de hipóteses, são elementos normais e saudáveis do desenvolvimento da ciência, suas teorias e metodologias”.