Era meio-dia e o barco Alcatraz I estava no meio do Oceano Atlântico. Já tinha percorrido milhares de quilômetros do trajeto que separa Brasil e Cabo Verde, na costa da África, quando seus sete tripulantes avistaram no horizonte o navio Hershel “Woody” Williams, da Marinha dos Estados Unidos. Entraram em pânico. O Alcatraz I, um pequeno barco pesqueiro, velho e lento, capaz de atingir no máximo 11 km por hora, não teria chance de escapar da embarcação imponente dos americanos. O Hershel tem dez vezes o comprimento do Alcatraz I e o dobro da velocidade.
A abordagem foi rápida. Os oficiais da Marinha se aproximaram, renderam os tripulantes – cinco brasileiros, dois montenegrinos – e revistaram o barco. No porão, encontraram 214 fardos com tabletes de cocaína pura, que juntos pesavam 5,5 toneladas. Os marujos foram presos em flagrante e a droga, confiscada. Terminada a operação, os americanos afundaram o Alcatraz I a tiros. Mais tarde, os sete tripulantes foram condenados pela Justiça de Cabo Verde a doze anos de prisão por tráfico de drogas. Aquela foi uma das maiores apreensões de cocaína no mundo, em 2022.
O encontro em alto-mar não foi obra do acaso. Os marinheiros americanos estavam na companhia de cinco policiais de Cabo Verde, que haviam sido avisados pela Polícia Federal brasileira sobre o carregamento de cocaína. O tráfico marítimo entre Brasil e Cabo Verde se tornou recorrente nos últimos anos. O país africano é hoje um entreposto importante para traficantes que querem vender drogas na Europa.
Segundo o Ministério Público de São Paulo, ao menos um dos brasileiros a bordo do barco tem ligações com o PCC. Uma investigação da piauí em parceria com a Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional (Gitoc, na sigla em inglês) mostra que, nesse e em outros casos, integrantes da facção se aliaram a grupos mafiosos da Sérvia para transportar cocaína até Cabo Verde.
É uma operação complexa, mas cada vez mais comum. Nos últimos dez anos, a polícia cabo-verdiana apreendeu 8,6 toneladas de cocaína em embarcações oriundas do Brasil. A Polícia Federal, por sua vez, apreendeu 9,5 toneladas de cocaína no porto de Santos que tinham o continente africano como destino entre 2017 e 2022, segundo informações fornecidas via Lei de Acesso à Informação.
Os dois montenegrinos presos no Alcatraz I são suspeitos de integrar uma máfia sérvia. Documentos da Polícia Judiciária de Cabo Verde afirmam que eles respondem ao Kavač, grupo criminoso ligado ao Šarić, uma máfia ainda maior, controlada por Darko Šarić, um dos narcotraficantes mais procurados da Europa, dono de uma fortuna estimada pela revista Forbes em 27 bilhões de dólares. Embora Šarić esteja preso há nove anos na Sérvia, acusado de traficar ao menos 5,7 toneladas de cocaína, seu grupo ainda é um dos mais atuantes no mercado europeu.
Cabo Verde é um país pequeno e lusófono, formado por dez ilhas vulcânicas no meio do oceano. Tem cerca de 600 mil habitantes. Não foi o único país da costa Oeste africana a entrar no radar dos megatraficantes. Diálogos captados num aplicativo de mensagens pela Europol, força policial da União Europeia, mostram que criminosos têm usado diferentes portos da África Ocidental como entreposto para os carregamentos de droga. Isso se deve a dois fatores. O primeiro é que, segundo os próprios traficantes, embarcações oriundas de países africanos despertam menos suspeita das polícias europeias do que aquelas saídas de países latinoamericanos. O segundo é a conhecida debilidade das instituições públicas nos países africanos.
Documentos do Ministério das Relações Exteriores do Brasil apontam deficiências na infraestrutura policial de Cabo Verde. “Além de contar com poucas embarcações para o adequado patrulhamento do mar, a Guarda Costeira não dispõe de recursos humanos suficientes para equipar seus navios e lanchas. Há dificuldade também no custeio da manutenção das embarcações militares”, diz um telegrama obtido pela piauí. Essa deficiência no patrulhamento marítimo tem sido parcialmente compensada, nos últimos anos, pela Marinha dos Estados Unidos e pelo Maoc (N) (Centro de Análise e Operações Marítimas, na sigla em inglês), unidade de inteligência transnacional voltada ao combate ao narcotráfico no Oceano Atlântico.
De acordo com a DEA (Drug Enforcement Administration), polícia americana especializada no combate ao narcotráfico, quem primeiro explorou a rota Brasil-Cabo Verde foi o traficante brasileiro Mario Sergio Machado Nunes. Na década de 1990, segundo os americanos, Nunes transportou ao menos 3 toneladas de cocaína em hidroaviões que viajavam do Maranhão até o arquipélago africano. Dali, a droga seguia em embarcações de médio porte até o litoral europeu.
Em dezembro de 1996, Nunes e um de seus pilotos foram presos em flagrante pela polícia de Cabo Verde levando 73 kg de cocaína em uma aeronave. No mês seguinte, o traficante, também conhecido como Goiano, fugiu da prisão escondido em um cesto de roupas sujas. Voltou a ser preso em 2015, no Guarujá (SP), em decorrência de outra investigação por tráfico de drogas. Hoje, está em liberdade.
Depois dele, vieram outros. Um dos criminosos que se interessaram por Cabo Verde foi Sérgio Roberto de Carvalho, ex-major da PM de Mato Grosso do Sul, considerado um dos maiores narcotraficantes brasileiros. Em abril de 2018, o grupo comandado por ele adquiriu no Brasil quatro barcos pesqueiros em nome de uma empresa de fachada. Um deles, batizado de Wood, zarpou rumo a Cabo Verde no mês seguinte. Não carregava drogas. Depois de percorrer 90 km, no entanto, foi abordado por um helicóptero, que arremessou em direção ao barco 1,1 tonelada de cocaína. O esquema cinematográfico foi pensado para despistar a polícia. Depois de chegar a Cabo Verde, a cocaína seria levada em embarcações para Portugal.
O plano, no entanto, foi frustrado. Com apoio da Maoc (N), a Polícia Federal brasileira apreendeu o barco no meio do Oceano Atlântico, antes que ele ancorasse em Cabo Verde. Sete tripulantes foram rendidos. Carvalho acabou sendo preso pela Interpol quando estava na Hungria, em 2022. Depois foi transferido para a Bélgica, onde respondia a processos por tráfico de drogas, e está preso no país até hoje.
A Polícia Federal começou a seguir as pegadas da máfia dos Bálcãs em 2014. Em abril daquele ano, o piloto brasileiro Ronelson Cândido Martins esteve em Cabo Verde para se reunir com o velejador esloveno Milan Rataj, que na época vivia no país, casado com uma cabo-verdiana. A viagem se repetiu em setembro de 2015. A PF suspeita que Martins e Rataj chefiavam uma quadrilha especializada no transporte de cocaína por meio de veleiros. A droga era levada de Pernambuco a Cabo Verde, um trajeto oceânico de mais de 3 mil km. Diferentemente de navios comerciais, veleiros não precisam passar pelo controle de imigração.
Rataj foi preso pouco tempo depois, em 2017, em Angra dos Reis (RJ), a bordo de um veleiro que rumava ao arquipélago africano carregando 50 kg de cocaína. A Justiça brasileira o condenou a seis anos e meio de prisão por tráfico internacional de drogas. Martins, por sua vez, foi preso em flagrante em 2018, quando transportava meia tonelada de cocaína em Americana, cidade do interior paulista. Foi condenado a quatro anos de prisão por tráfico internacional de drogas.
Desde então, a PF monitora a colaboração de traficantes brasileiros com criminosos do Leste Europeu. Trata-se, na maioria dos casos, de grupos paramilitares que atuaram na Guerra Civil da Iugoslávia, entre 1991 e 2001, e que depois se transformaram em organizações criminosas. A mais famosa delas é o Šarić.
Nos anos 2000 esse grupo enviou uma espécie de embaixador para o Brasil, incumbido de gerenciar o transporte da cocaína até a Europa. Seu nome era Goran Nesic. Documentos da PF relatam que Nesic, estabelecido em Bauru (SP), exportava a droga no porto de Santos utilizando uma técnica conhecida como “içamento”, muito usada por criminosos sérvios: pequenas embarcações se aproximavam dos navios ancorados no porto, onde tripulantes cooptados pelo grupo içavam a droga usando cordas e carregavam-na para dentro dos navios. Nesic foi preso em 2011 na Operação Niva, da PF, que mirou criminosos sérvios no Brasil. Em 2018, foi extraditado para a Sérvia, onde cumpre pena por tráfico de drogas.
A maior apreensão já feita na rota Brasil-Cabo Verde foi a do Alcatraz I, em abril de 2022. Ao investigar quem estava por trás desse carregamento de cocaína, avaliado em 160 milhões de dólares na Europa, a PF chegou ao nome de Aleksandar Nesic, filho de Goran Nesic, o antigo “embaixador” dos traficantes sérvios no Brasil.
O esquema criminoso começou a ser desvendado pela PF cinco meses antes da apreensão. Já naquela época, os agentes seguiam os passos de Aleksandar Nesic. O jovem sérvio participava do esquema do pai desde os anos 2000, segundo os registros da PF, atuando no transporte de dinheiro vivo e na relação com doleiros. Por falta de provas, no entanto, ele não foi alvo da Operação Niva, em 2011.
Aleksandar é casado com uma brasileira, com quem ostenta uma vida de luxo nas redes sociais. Quando não estão em Dubai, estão passeando em carros de luxo, como uma BMW X5, que custa mais de 500 mil reais. Relatórios do Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, constataram movimentações suspeitas: entre maio e novembro de 2021, a conta bancária de Aleksandar recebeu 96 depósitos fracionados, todos em dinheiro vivo, no valor total de 236 mil reais.
Em outubro de 2021, os policiais acompanharam uma viagem de Aleksandar do Guarujá, onde morava, a Fortaleza. O sérvio viajou de caminhonete, enquanto alguns de seus comparsas percorreram o caminho de lancha. O grupo se reuniu por alguns dias numa casa de veraneio alugada por Aleksandar em Aquiraz, cidade próxima a Fortaleza, no litoral cearense. Não houve nenhum flagrante, na ocasião.
Três meses depois, no entanto, um dos criminosos associados a Nesic, Hugo Agenor dos Santos Dias, o Alemão, viajou a São Gonçalo (RJ) para avaliar a compra de um velho barco pesqueiro – o Alcatraz I. O negócio foi selado por 1,2 milhão de reais, pagos em dinheiro vivo. Segundo a PF, o barco foi comprado a mando de Nesic. A embarcação foi levada para uma oficina no Guarujá e, de lá, para Fortaleza. Os policiais notaram, na embarcação, duas características típicas dos “narco-barcos”: a presença de dez tanques de combustível suplementares – pensados para permitir longas viagens, o que é incomum para barcos pesqueiros – e a ausência de tangones, estruturas tubulares usadas para armar a rede de pesca.
Na noite de 24 de março, o Alcatraz I zarpou de Fortaleza com destino a Cabo Verde, sem levar nenhum grama de cocaína. Horas depois, no entanto, a lancha que havia transportado os criminosos até Fortaleza partiu de Itapipoca, no litoral cearense, carregando as 5,5 toneladas da droga. Já em alto-mar, o carregamento foi transferido da lancha para o barco pesqueiro – uma estratégia para evitar uma possível abordagem policial. Foram sete dias de viagem pelo Atlântico até que, em 1º de abril, o Alcatraz I foi encontrado pela Marinha dos Estados Unidos.
A Polícia Federal e a Polícia Judiciária de Cabo Verde, além do Ministério Público dos dois países, formaram uma equipe conjunta de investigação para o caso, compartilhando provas entre si. Entre as evidências colhidas pelos agentes de Cabo Verde está uma carta atribuída a Cristiano Fernando de Mattos, um dos tripulantes do Alcatraz I. No documento, Mattos cobra de um integrante do esquema o pagamento por 1 tonelada de cocaína transportada numa embarcação chamada Dom Isaac, adquirida por Alemão em sociedade com Vanderlei Faria, integrante do PCC. (A carga mais tarde foi apreendida, dessa vez pela Marinha brasileira.)
“Gostaria de saber o porquê de vocês não terem depositado os 50 mil igual os outros?”, diz a carta. O Ministério Público de Cabo Verde enviou os celulares dos tripulantes para a PF do Rio de Janeiro, a quem coube extrair o conteúdo, incluindo contatos e diálogos por aplicativos. Em uma das conversas, Aleksandar Nesic cobrou providências de Alemão para vender o mais rapidamente possível a droga estocada pelo grupo. “Se servir pra eles [compradores interessados] vou fechar a venda […] e tirar essa porra da minha vida”, escreveu Alemão. Na resposta, Aleksandar disse ter investido mais de 12 milhões de dólares no esquema. “Mandamo mais de 12 milhões de dólar em 4 anos para vocês e vc fala que te fudeu. Atrasou sua vida. Por mim vende, claro, eu também quero vender.”
No último dia 5 de outubro, a PF deflagrou a Operação Dontraz (acrônimo dos barcos Dom Isaac e Alcatraz) e prendeu preventivamente Aleksandar Nesic, Vanderlei Faria e outras doze pessoas. Três investigados, entre eles Alemão, estão foragidos. Todos foram indiciados por tráfico internacional de drogas e organização criminosa.
Procurada pela piauí, a advogada de Alemão, Raquel González dos Santos, preferiu não se manifestar. A defesa de Vanderlei Faria, por sua vez, negou envolvimento do cliente com o tráfico de cocaína. “[Faria] acabou envolvido na operação Dontraz porque vendeu um barco que posteriormente acabou apreendido realizando transporte de drogas”, alegou o advogado Erivelton Almeida. A defesa de Aleksandar Nesic não foi localizada. O espaço segue aberto para eventual manifestação.