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    O delegado Carlos Henrique Cotait durante depoimento no inquérito que investiga o policial civil Edison Luís Rodrigues

autos de denúncia

Um delegado contra a piauí

Como um agente da lei abusa do poder policial para cercear o trabalho da imprensa

| 28 maio 2025_09h47
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Na edição de 29 de agosto de 2024, o Diário Oficial do Estado de São Paulo trouxe uma notícia dura para o delegado Carlos Henrique Cotait: seu afastamento do posto que ocupava. Desde 2020, Cotait chefiava a Divisão Especializada de Investigações Criminais (Deic) de Araçatuba, no interior de São Paulo. Agora, estava afastado por ordem do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite. A decisão tinha uma razão objetiva: Cotait estava sendo investigado pela corregedoria da Polícia Civil por uso de serviços ilegais de um hacker numa ação policial, a Operação Raio X.

O caso tinha vindo a público havia mais de um ano. Em 2023, a piauí publicou uma reportagem revelando a relação entre Cotait e o hacker. O título já dizia tudo: O hacker e o delegado. Ao longo de seis páginas, a matéria detalhava como Patrick César da Silva Brito, o hacker, investigara os alvos da Operação Raio X invadindo computadores, celulares e contas em redes sociais – tudo, de acordo com ele, a mando do delegado e de sua equipe de onze policiais, todos lotados no Seccold, a sigla do setor que combate corrupção, lavagem de dinheiro e organizações criminosas. Ainda em dezembro de 2022, um delegado da Polícia Civil, Pedro Paulo da Costa Negri Garcia, pediu à Justiça que proibisse a publicação da reportagem da piauí por tratar, dizia ele, de fake news do hacker. Em um despacho incisivo, de apenas quatro linhas, o juiz Roberto Soares Leite, da 1ª Vara Criminal de Araçatuba, negou o pedido. A reportagem saiu em fevereiro de 2023.

Dois meses depois da publicação, dois investigadores do Deic, subordinados ao delegado Cotait, começaram a investigar a piauí no âmbito de um inquérito sobre o hacker. O inquérito, ao qual a revista teve acesso, reproduz a reportagem e transcreve o conteúdo de oito e-mails e mensagens de WhatsApp em que o repórter Allan de Abreu, autor da reportagem, pede a versão dos policiais envolvidos com o hacker. Só o delegado Cotait respondeu, parcialmente. A certa altura, os investigadores do Deic, Jair Santos Rocha e Rafael Fabiano Cerato, escrevem: “Em um dos contatos, o repórter chegou a ser advertido sobre o sigilo do procedimento no qual constam as informações que lhe foram passadas pelo investigado Patrick [refere-se ao hacker] e que se tratavam de informações inverídicas, que tão somente afetariam a imagem das pessoas mencionadas, bem como da instituição Polícia Civil, acaso sua veracidade não pudesse ser comprovada.”

Os investigadores também afirmam que a piauí havia comprometido “o sigilo da investigação em andamento”, mas não deixam claro se se referiam à investigação sobre o hacker ou sobre a Operação Raio X, que apurava desvios milionários na área da saúde em quatro estados. Por fim, o relatório dos investigadores traz dados públicos, disponíveis em fontes abertas, sobre a Editora Alvinegra, que publica a piauí, como CNPJ, composição societária e uma imagem do Google onde aparece a fachada da sede da piauí no Rio de Janeiro. Exibe ainda dados pessoais de Allan de Abreu – CPF, filiação, endereço residencial. Concluído, o inquérito foi enviado à Justiça Federal em outubro do ano passado, mas em 19 de maio o Ministério Público Federal solicitou ao juíz da 8ª Vara Federal Criminal de São Paulo que o inquérito retornasse à Justiça estadual.

O assunto parecia adormecido, até que, naquele agosto de 2024, quando Cotait acabou afastado do cargo, o caso renasceu em Bauru, cidade próxima de Araçatuba. O hacker – que desde 2021 estava morando no exterior, na Sérvia – prestara depoimento à Polícia Civil de Bauru dizendo que havia sido contratado pela prefeita da cidade, Suéllen Rosim (hoje no PSD), para espionar uma vereadora de oposição, Estela Almagro (PT), e também o jornalista Nelson Itaberá, cujo site, Contraponto, divulgava um noticiário crítico à gestão da prefeita. A Polícia Federal confirmou que, de fato, a rede social da vereadora petista fora hackeada em janeiro de 2022.

No depoimento, o hacker contou que o escrivão Felipe Pimenta, braço direito do delegado Cotait na Seccold de Araçatuba, foi quem indicou seus serviços para um assessor da prefeita, chamado Walmir Henrique Vitorelli Braga. Descobriu-se depois que Felipe Pimenta e Walmir Braga são meio-irmãos – e Felipe Pimenta tivera contato com o hacker durante as ações clandestinas na Operação Raio X. Um inquérito na corregedoria da Polícia Civil contra Pimenta descobriu que o escrivão pesquisou boletins de ocorrência contra o jornalista Nelson Itaberá no sistema interno da corporação – prova de que algum policial bisbilhotou a vida do jornalista. Apesar disso, a investigação acabou arquivada sem apontar culpados.

A notícia de que a prefeita usara os serviços de hacker resultou numa investigação pela Câmara de Vereadores de Bauru e, claro, reacendeu a polêmica parceria entre o delegado Cotait e o hacker. Pressionado pela má repercussão, o secretário Guilherme Derrite decidiu então afastar o delegado do cargo. (A CPI acabou em pizza.) Além disso, a sindicância sobre a relação entre o hacker e o delegado, que corria em Araçatuba, foi transferida a São Paulo para evitar interferências indevidas. Cotait não gostou e partiu para a revanche. Retomou seu trabalho contra o hacker, seu ex-aliado, e contra a piauí, envolvendo até um jornalista que colaborou com a revista.

No dia 6 de setembro do ano passado, uma semana depois da saída do delegado Cotait do comando do Deic, a Polícia Civil de Araçatuba cumpriu um mandado de busca e apreensão na casa do jornalista Roberto Alexandre dos Santos, dono do site de notícias RP10. Na elaboração da reportagem O hacker e o delegado, a piauí contratou Santos como freelancer para auxiliar o repórter Allan de Abreu com apurações em Araçatuba. Santos ajudou na obtenção de documentos e no agendamento de entrevistas com envolvidos na história.

Até então, Santos tinha uma relação profissional amistosa com Cotait. O delegado chegou a ajudar o jornalista na apuração de uma reportagem sobre tráfico de drogas que foi publicada no jornal Folha da Região, de Araçatuba, e ganhou o Prêmio Esso na categoria Especial Interior, em 2005. Mas a relação esfriou quando, em 2020, Santos foi visto entrando na casa de um dos alvos da Operação Raio X – em razão disso, houve um mandado de busca na casa do jornalista, mas ele não chegou a ser ouvido pela polícia, nem foi indiciado. A relação azedou de vez quando Cotait descobriu que Santos havia auxiliado na apuração da reportagem da piauí. (Para tentar evitar a perseguição que acabou acontecendo, Santos pediu para não assinar a reportagem O hacker e o delegado junto com Allan de Abreu. A revista atendeu seu pedido.)

Como exercer a profissão de jornalista não é crime, os policiais precisavam de um pretexto para obter um mandado de busca e apreensão na casa de Santos. O pretexto veio em um celular apreendido seis meses antes, em maio de 2024. O aparelho pertencia a um integrante da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), em Araçatuba, cujo nome é Igor Antonio Venâncio. No celular, aparecia uma conversa de Venâncio com o jornalista, na qual o membro do PCC falava sobre o fretamento de um ônibus que levaria mulheres de presos para uma manifestação em Brasília. No mês anterior, Venâncio havia incumbido um líder comunitário de um bairro periférico de Araçatuba a procurar empresários da cidade que pudessem arcar com o fretamento. Esse líder, por sua vez, conhecia Santos, e decidiu repassar o contato do jornalista a Venâncio, que então passou a pressionar o próprio jornalista a bancar o aluguel dos ônibus. Mesmo assim, o jornalista disse à piauí que não bancou o fretamento. O diálogo contido no celular não trazia suspeita de nada, mas serviu de base para os policiais apresentarem o pedido de busca e apreensão contra o jornalista. A Justiça acatou o pedido.

Na casa do jornalista, os policiais apreenderam seu celular e seu notebook. No telefone, havia conversas do jornalista com o hacker, nas quais eles comentavam a repercussão que a reportagem da piauí havia alcançado na mídia regional. Ficava claro que o hacker fora uma das fontes do jornalista – e a relação jornalista-fonte é sigilosa e conta com a proteção da Constituição brasileira. “A minha missão era levar esse caso pra piauí, entendeu?” diz Santos, em um dos diálogos. O hacker responde: “Sim, vc foi fundamental.”

No notebook do jornalista, os policiais encontraram um arquivo com cópia do texto da reportagem O hacker e o delegado, que ainda estava em fase de edição. A descoberta levou o investigador Paulo Henrique Ianella a uma conclusão inteiramente leviana, segundo consta em seu relatório. Concluiu que a reportagem tinha três autores verdadeiros: Santos, o hacker e um policial, Edison Luís Rodrigues, desafeto de Cotait. Para dar ares de consistência à sua tese, Ianella inseriu uma espécie de “organograma da reportagem”, no qual aparecem os nomes e as fotos de Santos, do hacker, do policial, de Allan de Abreu e do diretor de redação da piauí, André Petry. Por que um mandado motivado por uma conversa de Santos com um membro do PCC acaba resultando num relatório sobre supostos autores de uma reportagem que incomodou o delegado?

No relatório, Ianella chega a fazer referência a uma troca de comentários entre Abreu e Petry, escritos à margem do texto. No diálogo, repórter e diretor conversam sobre uma determinada informação que fora transmitida anonimamente à revista. Na prática, ao acessar esse diálogo, Ianella, mais uma vez, violou o direito constitucional do jornalista ao sigilo de fonte. Depois de qualificar a reportagem como “tendenciosa”, “aquém da realidade fática” e “publicada sem qualquer cuidado de fonte e checagem de informação”, Ianella fecha com sua conclusão de que “a construção da desinformação publicada na matéria ocorreu em conluio de Roberto [o jornalista Santos] com os comparsas de crimes Patrick [o hacker] e Edison [o policia desafeto do delegado Cotait]”.

Com base nesse relatório, o delegado José Luís Silva Abonizio, colega de Cotait, instaurou um inquérito contra o jornalista Santos – surpreendentemente, a acusação é “crime de obstrução de Justiça”, algo que sequer aparece no relatório da investigação. No dia 7 de abril passado, o delegado Abonizio tomou o depoimento do amigo Cotait, que demonstrou ter amplo conhecimento do que dizia o inquérito em andamento. Cotait disse que Santos financiou o PCC, qualificou o repórter Allan de Abreu como “descuidado, mas não desavisado”, além de “sensacionalista, irresponsável e inconsequente”. Também comentou a elaboração da reportagem. Disse que depois de um “encontro inesperado de provas”, se descobriu que “a construção mentirosa da matéria publicada na revista piauí foi realizada, do início ao fim, pelo jornalista Roberto Alexandre [dos Santos]”.

Na conclusão do seu depoimento, Cotait parece recitar o conteúdo do relatório dos investigadores. Também infere que “a fonte dos jornalistas Roberto Alexandre [dos Santos] e Allan de Abreu para escrever aqueles falsos relatos foram Patrick César da Silva Brito [o hacker] e o policial Edson Luís Rodrigues” e que o objetivo final dos quatro era afastá-lo do cargo, como aconteceu em agosto do ano passado. Dois dias depois, a advogada Marjori Ferrari, que defende Cotait, solicitou formalmente acesso à cópia do inquérito, que, segundo ela, “servirá como prova na apuração do possível crime de denunciação caluniosa, bem como em futura ação de indenização por danos morais”.


A tentativa de intimidação do trabalho jornalístico ganhou um novo capítulo naquele mesmo dia 7 de abril em que Cotait deu o seu depoimento. Nessa data, o repórter Allan de Abreu recebeu uma intimação policial para prestar depoimento no inquérito. Em resposta à intimação, o advogado Luis Francisco Carvalho Filho, que defende a piauí, escreveu que o inquérito do Deic de Araçatuba, conduzido pelos subordinados do delegado Cotait, é “um flagrante e inusitado ataque à liberdade de informação jornalística”. Acrescentou: “A portaria [que formalmente inicia a investigação policial] não descreve um efetivo delito de obstrução de justiça. É tentativa bisonha de criminalizar a atividade jornalística e de obstruir a liberdade de informação.”

Para Carvalho Filho, está claro que a investigação vem sendo instrumentalizada pelo delegado Cotait, razão pela qual pediu cópia do inquérito conduzido pelos seus próprios subordinados a fim de embasar possíveis ações contra a piauí. “A reportagem […] pode ser contestada judicialmente, seja pela propositura de ação penal por crime contra a honra, seja pela propositura de ação civil de reparação de danos morais, o que faria parte das regras do jogo, não pela instrumentalização ardilosa do poder policial que tenta transformar reportagem jornalística em delito de obstrução de justiça”, conclui Carvalho Filho. Allan de Abreu, por orientação do advogado, recusou-se a depor no inquérito.

A presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Katia Brembatti, entende que o caso engloba expressivos indícios de violação da atividade profissional resguardada por garantias constitucionais. “A polícia tem direito de investigar, mas agentes públicos não podem se valer de acessos privilegiados para promover intimidações e perseguições”, diz. Para ela, há evidências contundentes de quebra de sigilo da fonte. “É inadmissível que um delegado e policiais próximos a ele usem seus cargos para investigar jornalistas e veículos que publiquem reportagens que não sejam de seu agrado.”

Procurado pela piauí, Cotait não se manifestou. A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, por sua vez, informou em nota que “todas as diligências [do inquérito] foram conduzidas com respaldo legal e sob supervisão do Poder Judiciário e do Ministério Público”, mas que a pasta “não compactua com qualquer forma de abuso de autoridade e reafirma seu compromisso com a liberdade de imprensa, os direitos constitucionais – incluindo o sigilo de fonte – e a transparência dos procedimentos legais”.

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