Não me lembro. Ou melhor, tenho restos de lembranças daquele dia. As imagens que filmei em 29 de março de 1968 ajudaram a evitar a perda completa da memória do que testemunhei.
Na véspera, uma quinta-feira, no fim da tarde, espalhou-se pela cidade a notícia da morte de um estudante, abatido por um tiro em confronto com policiais militares, em frente ao restaurante do Calabouço, próximo ao aeroporto Santos Dumont, no Centro do Rio.
Fomos, Joaquim Pedro de Andrade e eu, ao velório realizado no saguão da Assembleia Legislativa, instalada no Palácio Pedro Ernesto, mais conhecido pelos cariocas, na época, como Gaiola de Ouro, por causa do alto custo de sua construção.
Quando chegamos, o corpo do menino estava estendido, inerte, creio que sem camisa. Parecia muito jovem. A comoção provocada pelo assassinato mobilizara muita gente que foi à Assembleia. Guardei impressão de termos ficado pouco tempo por lá. E é apenas a isso que se resumem minhas lembranças daquela noite.
Passados cinquenta anos, assisti há poucos dias a filmagem do velório que me foi enviada pela pesquisadora Patrícia Machado. Feita por um cinegrafista da TV Tupi, possivelmente para exibição no Repórter Esso, dura 2’13”.
São imagens em preto e branco, sem áudio, pouco definidas e em parte superexpostas. Registram, porém, o que Joaquim Pedro e eu deixamos de ver quando fomos embora cedo – o saguão do prédio tomado de pessoas; um rapaz discursando; um cartaz virado de frente para a câmera com os dizeres: “CALABOUÇO OBRAS PARALISADAS”; Vladimir Palmeira e Elinor Brito, líderes estudantis do momento, ao lado de um orador veemente; o menino morto, cercado de velas acesas, deitado sem camisa sobre o que parece ser uma cômoda de madeira pesada; em semicírculo, rodeando o corpo, os olhares dos circundantes voltados para a câmera; “CALABOUÇO ABANDONADO” pintado em uma faixa; um plano mais próximo do menino; em outro momento, a atenção dos presentes dividida entre o cadáver e a câmera. E do lado de fora, na praça Floriano, em frente à Assembleia, um discurso sendo feito para uma multidão atenta.
Além dessa, assisti a umas poucas imagens de agências de notícias estrangeiras que recebi do pesquisador Antonio Venancio. Incluídas em programa transmitido em 1978 pelo canal de televisão público francês, Antenne 2, são coloridas e duram 35 segundos. Incluem o plano mais próximo que conheço do menino, parecendo dormir; pessoas pondo flores sobre seu corpo e segurando uma cartolina, na qual está escrito: “AQUI ESTÁ O CORPO DE UM ESTUDANTE MORTO”; o caixão coberto pela bandeira do Brasil, durante o cortejo.
Depois que saímos do velório, a caminho de casa, conversando talvez sobre o roteiro de Macunaíma que Joaquim Pedro estava escrevendo, suponho ter partido dele a sugestão que eu filmasse o cortejo fúnebre que seria realizado no dia seguinte. Estava sob minha guarda uma Eclair NPR 16mm, com lente zoom 12-120 e 2 chassis, deixada comigo por Luiz Carlos Saldanha. Era uma câmera silenciosa, portátil e reflex – o melhor equipamento de filmagem profissional que havia na época. Por acaso, eu tinha também dois rolos de negativo 16mm, preto e branco, suficientes para filmar até cerca de 22 minutos.
De manhã, na sexta-feira, 29 de março, o nome do estudante morto estava na primeira página dos jornais, passando desde então a ser de amplo conhecimento público. O Correio da Manhã trazia a notícia da invasão do restaurante do Calabouço que resultou no “massacre de alunos e na morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, assassinado por um tiro de pistola calibre 45 […]”.
Os soldados teriam “disparado rajadas de metralhadoras, enquanto o tenente que comandava o choque gritava pelo megafone ‘parem de atirar, eu não dei ordem para ninguém atirar’. Pouco depois, o mesmo oficial sacou sua arma e fez os disparos, um dos quais atingiu Edson Luís de Lima Souto. […] Seus colegas, em seguida, levaram-no para o saguão da Assembleia Legislativa, onde se formou uma fila de populares para velar o corpo em meio a violentos discursos de vários líderes estudantis”.
Na mesma matéria do Correio da Manhã, há alguns dados de Edson Luís, sugerindo a possibilidade de que ele pudesse vir a ser mais do que apenas um nome: “residia na rua Cairuçu, 302, em Vila Valqueire. Nasceu em 24 de fevereiro de 1950 e há três meses veio para o Rio procedente do Pará. Cursava o artigo 99 de 1º ciclo no Instituto Cooperativo de Ensino, anexo ao Calabouço, onde passava a maior parte do tempo, inclusive auxiliando em serviços burocráticos da secretaria do colégio, pois não possuía emprego”.
A transformação de Edson Luís em mártir, porém, não tardou. Teve início nesse mesmo dia. A página do Correio da Manhã dedicada à tragédia da véspera, trazia também o artigo “Da Primavera ao Outono de Sangue”, de Arthur José Poerner, no qual ele afirma: “Edson Luís de Lima Souto não é o primeiro estudante que tomba, no Brasil, vitimado pelo esquema de repressão policial. Ele é sim, possivelmente o mais jovem de todos. O que não se pode adivinhar ainda é se ele será o primeiro a morrer em vão. Os outros contribuíram, com o seu sangue as suas mortes, para mudanças importantes na vida do país. […] O assassinato de Demócrito de Souza Filho decretou a sentença de morte do Estado Novo. E o que representará o sacrifício de Edson Luís de Lima Souto, o mártir deste Outono de Sangue?”
Um comunicado das faculdades da Pontifícia Universidade Católica, reproduzido no Correio da Manhã, declarava: “O atual regime instituído pelo golpe de 1º de abril acaba de demonstrar definitivamente a sua verdadeira face. Pena que isso custasse tão caro. Não bastava a repressão total, violenta, indiscriminada, a todas as ideias defendidas pelos estudantes; não bastava a supressão dos nossos órgãos de representação; não bastava nada disso. Cometem agora assassinatos. Não é forte a palavra. Quando matam estudantes indefesos, qualquer que seja o motivo de sua manifestação, é um assassinato que praticam. Esperamos que, a esta altura, ninguém tenha dúvida sobre o caráter odioso do regime de força da ditadura. Porque a ditadura está definitivamente desmascarada. Aí está a tão propalada abertura democrática. Aí está a boa vontade dos detentores do poder. Um regime que permite a morte de um estudante não merece mais que a nossa repulsa. […] Não temos medo de afirmar, sem tom demagógico, que este fato assinalou, objetivamente, a implantação do terror. O crime de pensar, de querer alguma coisa melhor, não será mais permitido com a simples violência cívica. Aberto o precedente, a morte poderá passar a ser, a qualquer momento, o castigo oficial. Diante disso, a PUC não se pode omitir. Ninguém se pode omitir. O protesto não é mais uma veleidade: é um dever. O DCE, conjuntamente com os diretórios acadêmicos da PUC decreta greve geral, e convoca suas Assembleias em caráter permanente.”
Chama atenção o nome de Edson Luís não ser mencionado no comunicado dos estudantes da PUC. Começara o processo de instrumentalização política dos mortos de que João Moreira Salles trata em No Intenso Agora.
Aos 22 anos, eu trabalhava em cinema desde 1965. Retomara os estudos no início daquele mês de março de 1968, cursando o ciclo básico da Faculdade de Sociologia e Política da PUC.
Não lembro de ter tomado conhecimento da greve geral decretada naquela sexta-feira, se é que ela ocorreu. Presumo ter assistido às aulas normalmente, de manhã, e ido com a câmera ao Centro da cidade no início da tarde.
Inexperiente, fui surpreendido. Deparei-me, ao chegar, com uma multidão compacta ocupando a praça Floriano, entre a Assembleia, o Theatro Municipal e a Biblioteca Nacional. Fiquei impressionado, e intimidado, com a extensão da massa humana, reunindo estudantes e diversos outros setores profissionais. Aquela deve ter sido a maior manifestação pública de protesto ocorrida desde o início da ditadura civil-militar, em abril de 1964.
As primeiras imagens que filmei do alto da escadaria de entrada da Biblioteca Nacional revelam meu deslumbramento diante da multidão. Custei a decidir atravessar aquele aglomerado de pessoas e me aproximar do prédio da Assembleia. Cheguei a tempo de filmar coroas de flores e o caixão descendo a escadaria frontal, nos ombros dos líderes estudantis. De um carro no qual subi, filmei Flávio Rangel, Mário Pedrosa, Norma Bengell, Odete Lara e Hélio Pellegrino em meio a muita gente não identificada, caminhando em direção ao Palácio Monroe, cercados de cartazes com frases pintadas à mão – “Intelectuais com estudantes” e “Artistas contra a ditadura”.
Mesmo sem qualquer ameaça ostensiva de repressão por parte da Polícia Militar, que um acordo do governo estadual tirara das ruas, era difícil filmar o cortejo, dada sua dimensão. Sozinho, carregando a câmera e dois chassis, segui a pé a maior parte do trajeto, preocupado em poupar filme para conseguir registrar em até 22’ a manifestação que acabou durando mais de três horas e, segundo alguns jornais, reuniu cerca de 50 mil pessoas.
Em frente à antiga sede da União Nacional dos Estudantes, na praia do Flamengo, José Carlos Avellar filmou a bandeira americana sendo queimada e os discursos de Elinor Brito e Vladimir Palmeira, ambos pendurados no janelão do prédio. Eu entrei no edifício vizinho, tomei o elevador, subi alguns andares, toquei a campainha de um apartamento e pedi licença para filmar da janela da sala. Avellar acertou ao escolher o que registrar naquele momento. Eu, sempre impressionado com a multidão, perdi a cena mais importante que estava ocorrendo.
Depois de me adiantar ao cortejo, esperei um bom tempo no Cemitério de São João Batista, em Botafogo, cada vez mais preocupado, à medida que acabava a luz do dia, em não conseguir filmar o enterro.
O féretro finalmente cruzou o portão principal, acompanhado de um grupo reduzido de pessoas. Já era noite nesse momento, mas para meu espanto, duas ou três luzes foram acesas e me permitiram filmar. Uma, parecia ser do próprio cemitério. Outra, talvez de algum cinegrafista de televisão. Para completar, surgiu um lampião a álcool levado junto ao caixão até a gaveta onde seria alojado.
Sem qualquer laivo de solenidade ritualística, quem foi capaz se encarapitou nas sepulturas para ver melhor. Eu, com minha câmera, inclusive. O corredor estreito por onde o caixão veio se esgueirando estava apinhado. Uma menina chamava atenção. Chorava muito. Parecia ser a única a lamentar a morte de Edson Luís. Alguém com um cartaz na mão onde estava escrito “ASSASSINOS” insistia em tapar a minha visão. A bandeira do Brasil foi jogada amarfanhada sobre o caixão, já parcialmente alojado na gaveta. Discursos indignados, cujas palavras se perderam, foram feitos nos momentos finais.
A filmagem resultou em um registro de 13’14” que, na época, não foi editado ou incluído em algum filme. Depositada, por medida de segurança, em outubro de 1969, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, o material foi dado como extraviado durante 44 anos. Mas, no todo ou em parte, as imagens chegaram, via Cuba, às mãos de Chris Marker, sem que se saiba exatamente como. Fragmentos das cenas do sepultamento de Edson Luís, identificados por Patrícia Machado, foram usados por Marker em seu filme de média-metragem On vous parle du Brésil: Carlos Marighella, de 1970.
A partir da década de 80, reconheci mais de uma vez trechos da filmagem em filmes brasileiros, usados sem meu conhecimento. Finalmente, em 2012, Gilberto Santeiro, na época curador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, telefonou dizendo que, com base na descrição que eu lhe fizera há tempos, havia identificado meu material em meio a uma miscelânea de outros sobre 1968. Ao examinar o negativo, dias depois, constatei que se tratava da filmagem integral, sem qualquer corte, preservada em bom estado durante 44 anos.
Os 2’17” disponíveis no YouTube são uma síntese da filmagem de 29 de março de 1968, editada por mim, mas também publicada na rede sem minha autorização.