Não houve pedido de licença. Nem sentimento de intimidação diante do ostensivo aparato do regime que controla quase todos os setores estatais ou privados do país há quase doze anos. Frente a frente com o presidente da Nicarágua, o estudante de comunicação social Lesther Alemán, de 20 anos, responsabilizou Daniel Ortega, na cara dele, pelas 58 mortes decorrentes da brutal repressão aos protestos que convulsionam o país desde meados de abril.
“Esta não é uma mesa de diálogo. É uma mesa para negociar sua saída. E sabes muito bem porque é o que o povo solicita”, disse Alemán, em tom assertivo, na quarta-feira, primeiro dia de um encontro entre manifestantes e o governo de Ortega, num seminário católico em Manágua, para tentar encontrar uma solução para a crise. As palavras de Alemán, sem sinal de reverência ao homem mais poderoso de seu país, mostram que não há saída fácil. “Não podemos dialogar com um assassino, pois o que se cometeu neste país é um genocídio e assim será qualificado.”
A fala do jovem de óculos de lentes grossas, com a bandeira nicaraguense amarrada ao pescoço, confrontando um caudilho perplexo com palavras duras como “renda-se ante o povo”, chama a atenção pelo destemor e pela clareza da mensagem. “Aceitamos participar desta mesa para exigir agora mesmo o fim dos ataques praticados em nosso país. O senhor é o chefe supremo da Polícia e do Exército da Nicarágua e por isso lhe pedimos que ordene imediatamente o fim da repressão e dos assassinatos pelas forças paramilitares, por suas tropas e pelas turbas adeptas do governo.”
Pouco se sabia do estudante antes de se levantar diante de Ortega e de sua mulher, vice-presidente da República, Rosaria Murillo, também à mesa no encontro promovido pela Conferência Episcopal da Nicarágua. Alemán não tinha histórico conhecido de dirigente estudantil, menos ainda de líder das manifestações contrárias a políticas do governo Ortega, que inclui um polêmico decreto de reforma da Previdência Social, a concessão a uma empresa chinesa para a abertura de um canal de navegação interoceânico e a condução da economia de um dos países mais pobres do continente.
Até a quarta-feira, Alemán era apenas um dos jovens que resistiam às ofensivas da polícia e de militantes da Juventude Sandinista – grupo que a oposição descreve como paramilitares – contra os manifestantes. À piauí, o estudante contou que recebeu ameaças logo depois de sair do seminário católico onde falou ao presidente. “Invadiram minha página no Facebook e copiaram minha foto. Uma pessoa dizia nas mensagens que estava no auditório, levava um revólver e poderia me matar ali mesmo, naquele recinto. Logo depois, outra pessoa dizia que ninguém poderia falar assim com seu presidente e se encarregaria de tomar medidas drásticas.”
O tom das advertências, contou o estudante, seguiam a linha do “quem você pensa que é?” para desafiar Ortega daquela maneira. Fora das redes, numa ameaça mais tangível, motocicletas e caminhonetes começaram a passar na frente da casa de Alemán, algumas vezes tirando fotos. “Como se estivessem me investigando”, disse.
Em mensagens pelo celular, Alemán prosseguiu seu relato. “De forma direta, a mim, apenas duas pessoas que eu não conheço passaram a recomendar de forma velada que eu me cuidasse, pois alguém poderia estar sob mira e que algo poderia acontecer se eu continuasse falando e participando [dos protestos]”, afirmou. “Considero que, apesar da pouca quantidade, as ameaças são fortes.”
Ele diz, porém, não estar alarmado com as reações violentas. “Essas ameaças podem ser reais ou vazias. Essas coisas de mensagens de violência e fake news são comuns em redes sociais. Achei melhor não dar muita atenção a isso. O certo é que neste momento estou em um local seguro, cercado de meus companheiros, que são os estudantes. Estamos juntos, mas sabemos que normalmente ninguém na Nicarágua tem muita segurança. E sabemos que, para o governo, ser universitário já é considerado um delito em si.”
O jornalista Carlos Dada, fundador do diário digital salvadorenho El Faro, esteve na Nicarágua para cobrir os protestos e classificou a mensagem de Alemán como “impactante e inesperada”. “Ao interromper o discurso de Ortega e tomar a palavra durante a reunião mediada pela Igreja Católica, Lesther Alemán enviou uma mensagem muito clara ao governo: a de que os estudantes não serão calados pelo medo”, afirmou Dada. “Foi uma intervenção tão espontânea quanto as manifestações que vêm abalando o país, sem líderes claros ou agenda político-ideológica.” A visibilidade que o estudante conquistou com a disseminação de seu discurso no YouTube e nas mídias sociais, para Dada, é sua principal garantia de segurança.
A internet converteu-se em protagonista dos atos políticos no país. Os protestos contra o governo de Ortega cresceram em volume e intensidade por meio de convocações pelas redes sociais, de forma semelhante às revoltas da Primavera Árabe ou às manifestações de 2013 no Brasil. “Esses movimentos horizontais têm justamente na ausência de liderança sua maior força, uma vez que isso confere a elas mais credibilidade e legitimidade. E são características que ampliam sua capacidade de atrair adeptos”, analisou Dada. “Ironicamente, a falta de líderes e de uma agenda política clara consistem também em sua maior fragilidade, pois não apresenta alternativas ao status vigente.”
Com o controle de boa parte dos meios de comunicação, apoio dos grandes empresários e poder quase absoluto no setor político, Ortega governava praticamente sem oposição até que os protestos ganharam corpo, em meados de abril. Até então, as revoltas de camponeses ameaçados da desapropriação de suas terras em razão da abertura do canal não causavam danos significativos. O decreto que estabeleceu uma reforma previdenciária com base no aumento da contribuição de trabalhadores, empresas e pensionistas, porém, levou o descontentamento à internet e, dali, aos centros urbanos. A repressão policial e o confronto entre manifestantes e grupos armados pró-governo acrescentaram combustível ao incêndio e as chamas tomaram conta do país, com bloqueios de estradas, saques e atos de vandalismo.
Se o “Homem-Molotov”, a foto do guerrilheiro com um fuzil em uma mão e um coquetel molotov na outra, tornou-se o símbolo da luta dos sandinistas de Daniel Ortega contra a ditadura de Anastasio Somoza, nos anos 70, a atual revolta contra o regime de Ortega acumula imagens icônicas. Na mesma quarta-feira em que o presidente foi desafiado cara a cara por Alemán, uma “Árvore da Vida” – estruturas de ferro de até 20 metros de altura adotadas como marca do regime e espalhadas pelas cidades do país – foi derrubada por manifestantes em Manágua e causou a morte acidental do documentarista guatemalteco Eduardo Spiegeler Szejner, que vivia na Nicarágua e fazia imagens dos protestos.
O emblema quase místico dessas árvores está presente também em fachadas de repartições públicas e documentos oficiais do país por imposição da vice-presidente. Eminência do regime, Rosaria Murillo é considerada a responsável pelo controle das milícias da Juventude Sandinista. Atribui-se a ela a ideia de atrelar o governo a uma doutrina que mescla elementos orientais com símbolos religiosos cristãos pentecostais e judaicos, e vinculam o regime à “missão divina” de conduzir o povo nicaraguense ao Nirvana político. Nada mais distante, como mostrou o desafio de Lesther Alemán ao presidente da República e a sua vice, do que se vê nas ruas do país.