Sentado no sofá de seu apartamento em Curitiba, o delegado Pedro Filipe Cruz Cardoso de Andrade zapeava pelos canais de televisão na tarde de domingo, 8 de janeiro, quando se deparou com uma cena que o deixou perplexo e preocupado: turbas de manifestantes invadiam o Congresso, o Palácio da Alvorada e a sede do Supremo Tribunal Federal (STF). Atônito, o policial passou a acompanhar os desdobramentos do caso, trocando, de quando em quando, mensagens com dirigentes do PT – partido ao qual é filiado desde o início de 2020. Ele só relaxou quando, já no fim daquela tarde, a invasão foi controlada.
“As imagens eram estarrecedoras. Aqueles são os principais símbolos da República. Foi um dos episódios mais simbólicos de ataque recente à democracia. Para quem tem uma vida dedicada à construção democrática, aquele ato atinge com toda certeza. Foram horas de apreensão”, definiu Pedro Filipe, como é conhecido. “Felizmente, a situação foi controlada, principalmente a partir da ação do [ministro da Justiça e Segurança Pública] Flávio Dino”, comentou.
Na ocasião, Pedro Filipe não poderia sonhar que se aproximaria de alguns dos principais atores da contenção do ato golpista – nem que ele mesmo figuraria no alto escalão da Segurança Pública. Ainda em janeiro, o delegado foi apresentado ao ministro Flávio Dino, com quem teve uma breve e protocolar conversa. O policial deve ter causado boa impressão, porque no início de março foi convocado para uma reunião com o braço direito de Dino – o secretário Nacional de Segurança Pública, Tadeu Alencar, que também é filiado ao PSB. Nem bem chegou, Pedro Filipe foi surpreendido com um convite à queima-roupa para se tornar coordenador-geral de Polícias Judiciária e Científica da Diretoria da Força Nacional de Segurança Pública.
Criada em 2004, a instituição é formada por quadros cedidos por forças policiais de outras unidades da federação – militares, policiais civis e bombeiros. Seu objetivo é prestar apoio ou atuar como força complementar em casos de crise a autoridades locais, estaduais ou federais, conforme o caso. Para isso, a Força Nacional tem um braço ostensivo, que realiza um trabalho semelhante ao da Polícia Militar nos estados; e um setor de polícia judiciária, de investigação, e científica, responsável por fazer perícias forenses e criminais. É esse que será comandado por Pedro Filipe.
Com o convite, o delegado de 35 anos, há nove nos quadros da Polícia Civil do Paraná, precisou que o governo do estado o cedesse para a Força Nacional. Com a cessão formalizada em 4 de maio, ele alugou um apartamento via Airbnb em Brasília e se bandeou para a capital federal, para aguardar os trâmites burocráticos. Na noite da última quinta-feira (11), Pedro Filipe recebeu uma ligação de Alencar, informando que a nomeação seria publicada no dia seguinte no Diário Oficial da União, como acabou ocorrendo.
“Agora vem a responsabilidade”, disse para si. “Calhou de o modelo de segurança que eu defendo estar alinhado à política do governo. Estamos falando de um modelo progressista, que pensa a segurança a partir de uma perspectiva cidadã, democrática, antirracista e antifascista”, disse Pedro Filipe à piauí.
Nascido em Itaocara, no estado do Rio de Janeiro, Pedro Filipe foi educado em uma família evangélica e, desde cedo, aproximou-se da fé cristã. Com seus pais – um profissional de turismo e uma funcionária de loja de roupas femininas –, frequentava a tradicional Igreja Metodista. Ele diz que os ensinamentos da Bíblia o fizeram ter comprometimento social e, por conseguinte, um posicionamento político progressista. A família se mudou para Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, e, ainda na adolescência, o garoto passou a ver a carreira jurídica como alternativa.
Na Faculdade de Direito de Campos, Pedro Filipe aproximou-se do movimento estudantil. Foi diretor da União Estadual dos Estudantes (UEE) no Rio e se habituou a participar de congressos e encontros interestaduais. Em 2007, após o lançamento do filme Tropa de Elite, ajudou a organizar um evento acadêmico com um debate entre o então deputado estadual Marcelo Freixo (que inspiraria, em Tropa 2, o personagem Fraga) e o ex-policial militar Rodrigo Pimentel (que baseou o Capitão Nascimento).
“Foi um debate muito interessante, com visões antagônicas. Eu acabei pendendo para o Freixo. Cheguei a ficar conversando com ele depois do evento”, contou. “O curioso é que na época eu queria ser defensor público. Ainda assim, tinha a polícia em grande conta, mas com a certeza de que era preciso fugir ao estereótipo do policial justiceiro, brutamontes e capitão do mato. É por esse lado que tento conduzir minha carreira”, acrescentou.
Tempos depois de se formar – já como delegado da Polícia Civil do Paraná –, Pedro Filipe protagonizou um episódio que ilustra sua forma de pensar a segurança pública. Em setembro de 2019, dois irmãos espancaram um homem que tentava furtar uma barra de ferro do portão da casa em que moravam, no bairro Fazendinha, em Curitiba. O delegado prendeu os irmãos em flagrante – um dos quais já tinha um mandado de prisão em aberto por falsificação de moeda. Em seguida, libertou o homem que tinha tentado furtar a barra, aplicando o princípio da insignificância. O próprio delegado, na época, divulgou o episódio em suas redes sociais, para fins pedagógicos.
“As pessoas têm que entender que não podem fazer justiça com as próprias mãos. Até existe a previsão de que você detenha alguém durante um crime. Mas a atitude correta pela lei, depois de fazer isso, é chamar a PM [Polícia Militar] ou levar a pessoa a uma delegacia, jamais fazer o que eles fizeram”, escreveu, na postagem. “Eu sempre via esses casos de justiçamentos e sempre acompanhei com indignação. Semanas atrás, vimos pela imprensa um casal sendo espancado em um supermercado por ter furtado leite em pó. É uma regressão da humanidade. Quando me vi em condições de atuar num caso desses, não hesitei. A tortura é um tipo penal muito mais grave que o furto”, disse à piauí.
Um pouco antes desse episódio, em junho de 2019, Pedro Filipe integrou o grupo que trouxe ao Paraná o movimento Policiais Antifascismo, ao lado do delegado Orlando Zaccone (filiado ao PDT e então líder da articulação em âmbito nacional) e do então deputado estadual Goura (PDT-PR). Partindo da perspectiva de que o policial – civil ou militar – devem ser reconhecidos como trabalhador, não como um “herói”, a articulação também contempla outras pautas prioritárias, como a desmilitarização das PMs e o direito à manifestação por parte dos agentes. Além disso, o movimento também propõe outros debates, como o antiproibicionismo de drogas, a inclusão da mulher, a igualdade racial e respeito aos policiais LGBTQIA+ dentro das corporações.
Em razão de uma atuação que destoava do padrão da corporação, Pedro Filipe acabou enfrentando resistência velada entre colegas da Polícia Civil. “Teve olho torto, preconceito, comentários, preterimento em algumas situações. Sempre teve, mas a gente supera. O Paraná é um estado conservador, e nas polícias não é diferente”, observou o delegado. Nas eleições de 2022, o Paraná teve 71 candidatos identificados como membros ou ex-membros de forças de segurança (PMs, policiais civis ou bombeiros), todos de partidos de centro ou de direita. Quatro foram eleitos deputados estaduais e dois, deputados federais. Apesar disso, o delegado diz que sempre soube dialogar com os colegas.
“Hoje o clima é outro. Me dou bem e sou respeitado por todos, inclusive com os colegas mais à direita e mais conservadores. A polícia ainda é muito bolsonarista e muitos perceberam que caíram em um estelionato eleitoral quando apoiaram [o ex-presidente Jair] Bolsonaro”, disse. “Por décadas, a esquerda deixou a segurança como pauta exclusiva da direita, o que foi um erro. Precisamos voltar a ocupar esse espaço, dentro de uma perspectiva progressista. Nas polícias de todos os estados, os próprios policiais já se deram conta disso”, afirmou.
A atuação do delegado acabou chamando a atenção de lideranças estaduais do PT, de quem Pedro Filipe se aproximou. Em fevereiro de 2020, ele se filiou ao partido. O ato teve a chancela de quadros antigos da legenda no Paraná, como os ex-deputados Angelo Vanhoni e Doutor Rosinha, e os deputados Arilson Chiorato, Professor Lemos e Luciana Rafagnin, todos do PT. Até o deputado Goura, do PDT, participou da cerimônia. Na ocasião, o delegado provocou ainda mais discussão na corporação: em meio ao governo Bolsonaro, ele posou para fotos de camiseta vermelha e fazendo o L em frente ao brasão da Polícia Civil. Naquele mesmo ano, Pedro Filipe foi candidato a vice-prefeito de Curitiba na chapa encabeçada pelo advogado Paulo Opuszka. Ficaram em oitavo lugar, com 2,45% dos votos válidos.
Ao longo da campanha, o delegado enfrentou um episódio que fez com que se afastasse de sua igreja. Como o pastor do templo que frequentava vinha recebendo candidatos para ouvir propostas, Pedro Filipe tentou marcar um encontro, mas o líder religioso não quis recebê-lo. O delegado rompeu com sua igreja e se engajou no Movimento Liberta, que congrega evangélicos que não têm um templo específico para professar a sua fé.
“É uma igreja muito tradicional de Curitiba, mas prefiro não revelar qual é”, disse. “O que está ocorrendo é complexo. Figuras populares do campo evangélico, como Edir Macedo, Malafaia e Valdomiro, se inclinaram ao nazifascismo. Creio que hoje muitos evangélicos tenham percebido que foi um erro se alinhar à extrema direita. Não há na Bíblia o que respalde essa aliança [com a extrema direita]”, apontou. “Ainda bem que hoje existem quadros que fazem oposição a isso”, pontuou.
Com a efetivação de seu nome na Força Nacional de Segurança Pública, Pedro Filipe passou o fim de semana tratando de questões práticas, principalmente relativas à mudança definitiva a Brasília. Paralelamente aos trabalhos, pretende continuar exercendo sua fé. Para isso, deve buscar orientação do pastor progressista Caio Fábio. “O evangélico não precisa de um templo, mas eu vou procurar me encontrar aqui em Brasília. É um aspecto importante para mim”, disse.
Questionado como agiria caso sua nomeação fosse contestada por adversários políticos, pelo fato de ser filiado ao PT, Pedro Filipe destaca que sua indicação também tem raiz técnica. Destaca seus nove anos de atuação como delegado no Paraná. “Além disso, é natural do processo político que, havendo mudança de governo, os quadros sejam substituídos em alinhando técnico e político a quem chega. Se estamos em um governo com perspectiva de esquerda, é natural que os quadros tenham essa inclinação”, disse. “E eu tenho visto críticas em sentido contrário: que demorou para acontecer substituições com esse perfil”, acrescentou.
De suas atribuições na Força Nacional de Segurança, a que tem sido mais destacada pela imprensa é a possibilidade de prestar apoio às investigações dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, cujas cenas o estarreceram. “Se nos couber fazer esse trabalho, faremos da forma mais técnica e profissional possível, tendo em consideração que a lei tem que ser cumprida, com independência e isonomia”, disse.