Falei com David Carr anteontem. Por e-mail, ele me deu instruções: “Na segunda-feira, eu dou aula. Então tenho que falar no sábado. Em trajetos longos só viajo de business. A United Airlines saindo de Newark.” Havia um ano, negociávamos sua vinda para o Festival piauí de Jornalismo. No evento anterior, em novembro passado, ele declinara do convite porque era seu primeiro semestre como professor de Estudos de Mídia na Universidade de Boston. Mas na próxima edição, em outubro, finalmente teríamos Carr. Não só o jornalista, mas também o professor. A ideia era que ele ministrasse uma aula. Sugeriria três grandes reportagens, discorreria sobre elas, apontaria erros e acertos para os alunos-plateia. Seu bilhete aéreo seria comprado na próxima semana.
A primeira vez que me encontrei com David Carr foi em fevereiro do ano passado. Mandei um e-mail pedindo uma conversa com ele em Nova York para falar sobre o festival e também sobre a piauí. A resposta veio no mesmo dia. “Ótimo falar sobre a participação no festival. Entretanto, a chance de eu escrever sobre o modelo de negócios de uma publicação brasileira é nula. Então, espero que não seja isso que você tenha em mente.” Precisão, clareza e objetividade sempre foram notáveis características de seu texto. Com ele, não havia mimimi.
Eu já o esperava no saguão da redação do , o melhor jornal do mundo, quando ele surgiu com um sobretudo salpicado de neve e uma echarpe estampada demais. Ele caminhava como se o terno ainda estivesse no cabide. Parecia usar ombreiras enormes, a roupa maior que ele. A espinha ereta, o pescoço fino e rígido, o queixo apontando para baixo, quase grudado no peito. Com uma expressão de poucos amigos, ele me estendeu a mão friamente e fomos até a cafeteria.
A imagem que eu tinha de Carr era a pescada no documentário Page One –Nos bastidores do New York Times. No filme, Carr aparece implacável, crítico, impiedoso e enciumado pela chegada de um novo colunista. Talvez por ansiedade, falei por muito tempo, sem parar, emendando um assunto no outro. Ele me encarava sem abrir a boca. Quando terminei, ele comentou: “Você é uma nerd do jornalismo.” Era um baita elogio.
Quando deixei Carr falar, ele também desembestou – ele, o pai dos nerds da profissão. Durante mais de uma hora, falou sobre internet (era um grande entusiasta das novas plataformas de comunicação), mencionou gente que estava fazendo coisas interessantes e insistiu que deveríamos chamar convidados do “papel”, e não apenas das iniciativas digitais. “A alma da piauí está no papel, vocês tem que ouvir quem também pensa assim”, disse com a voz fraca característica, como se lhe faltasse ar para finalizar cada sentença. E, por isso, convidamos o editor da revista americana de ensaios n+1.
Também falou da sobrecarga de trabalho. Perguntei se ele recebeu algum aumento salarial depois que passou a tuitar, escrever no blog do jornal, gravar vídeos. “Aumento simbólico”, disse. Segundo ele, nós, jornalistas, tínhamos que nos adaptar à nova encruzilhada: ampliar nossas possibilidades de escrita era inevitável “para a gente não desaparecer”.
Ele não quis café. Enquanto conversávamos, ele folheava alguns exemplares da piauí que eu havia levado. Perguntava com interesse genuíno sobre o teor das reportagens e sobre os personagens retratados. “É uma revista linda”, comentou.
Quando soube que eu estava de partida para Detroit, ele me contou que uma de suas filhas estudava ali perto, em Ann Arbour. E por outros quinze minutos discorreu sobre a cidade, a origem da decadência, o racismo pungente. Sem que eu pedisse nada, ofereceu o contato da filha, caso eu tivesse algum problema.
Minha lembrança de Carr é a de um colega muito, muito generoso. Apesar do olhar intimidador – de quem poderia levantar da cadeira no meio da conversa –, ele tinha uma rara capacidade de se doar. E mais: de fazer com que você se sentisse confortável. No meu caso, até relevante. Era uma celebridade no métier que gastava seu tempo, sua saliva, sua paciência com uma desconhecida do longínquo Brasil.
A partir dali, passei a escrever para ele com frequência. Quando demorava a responder, ele pedia desculpas. Todo mês eu enviava exemplares da piauí para sua casa em Monclair, em Nova Jersey. Uma vez, quis saber se ele havia aberto uma das revistas. “Já, mas pode parar de gastar o dinheiro do seu patrão e não precisa me mandar mais.” Sem mimimi.
O e-mail no qual ele me comunicou que não viria ao festival passado era longo e atencioso. “Digo ‘não’ com o coração pesado. Adoro você e a revista, mas é meu começo como professor contratado e não sei o que vai ser da minha vida. Tenho medo de me comprometer e, na última hora, não conseguir. Preciso manter o foco nesse mundo novo no qual estou me atrevendo a entrar”, escreveu em um dos trechos.
Em agosto, encontramo-nos na Feira Literária de Paraty, onde ele lançou seu livro A Noite da Arma, uma biografia corajosa e desconfortante sobre seu vício em cocaína e crack e como criou sozinho as filhas gêmeas, cuja mãe era a sua traficante.
A última vez que nos vimos foi em outubro, durante a festa da revista The New Yorker, na cobertura do hotel Standard, em Chelsea. Quando cheguei, ele estava sentado com um casal, que parecia lhe contar alguma coisa sem graça. Fui cumprimentá-lo. Ele se levantou, me abraçou efusivo e começou a me chacoalhar os ombros, como se quisesse me ressuscitar. “Me tira daqui.” Depois, passamos parte da noite falando mal dos outros ao relento sob um frio cortante. Volta e meia, ele era rodeado por um ou outro coleguinha de profissão. Conversava um pouco e, sempre com uma xícara de café preto na mão, logo se juntava a mim e à Raquel Zangrandi, secretária de redação da piauí.
Contou-nos ter ficado chateado com sua recente participação na Flip. Disse que não havia tido oportunidade de falar como gostaria, reclamou do formato da mesa, com dois convidados. Depois, disse que em sua primeira visita ao Brasil, anos antes, havia pedido para conhecer a cracolândia, em São Paulo, mas que havia sido orientado a desistir do passeio por ser “uma área muito perigosa”. “Eu falei: ‘Eu sou um deles!’ Mas mesmo assim não me levaram”, contou. Prometi: “No Festival da piauí, você vai falar quanto e o que quiser, e eu ainda te levo na cracolândia!”. E ele se virou para Raquel: “Ela é louca, só fala disso.”
Colunista de Mídia no , David Carr morreu quinta-feira, dia 12 de fevereiro, aos 58 anos. Havia acabado de mediar um debate sobre o documentário Citizen Four, da jornalista Laura Poitras, com ela, o ex-agente Edward Snowden – que falava via satélite do asilo na Rússia –, e o jornalista Glenn Greenwald. Passou mal em sua mesa no , chegou a ser levado a um hospital, mas foi declarado morto às nove da noite.
No final de seus e-mails, abaixo de sua assinatura e de seus contatos no jornal e endereço de twitter, ele costumava colocar frases randômicas. Certa época, valeu-se de Hunter S. Thompson: “Reze para Deus te ajudar, mas procure evitar os penhascos no caminho.” Recentemente, havia trocado. “Enviado para você até recentemente por pequenas criaturinhas de asas.” Um doce, esse David Carr.