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    O relatório da PF cita 105 vezes a palavra "execução", quase sempre no sentido de colocar em prática os planos orquestrados por Jair Bolsonaro, e algumas no sentido de "assassinato" Imagem: Diego Bressani

anais da intentona

Um golpe em execução: mais que planos, ações

O contexto dos atos “executórios” (e não apenas “preparatórios”) citados no relatório da Polícia Federal

Breno Pires, de Brasília | 28 nov 2024_11h07
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A investigação da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado no Brasil demonstra, com riqueza de detalhes, uma série de ações concretas com o objetivo de impedir a eleição e a posse de Luiz Inácio Lula da Silva e manter Jair Bolsonaro no poder. As descobertas da PF incluem planos e atos preparatórios, mas vão além: detectam uma série de atitudes já tomadas.

Os delegados da PF utilizaram a expressão “atos executórios” em seis diferentes momentos e “ações executórias” em outro trecho do relatório final sobre a tentativa de golpe de Estado no Brasil, submetido ao Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 21 de novembro, e enviado à Procuradoria-Geral da República e tornado público na terça-feira, 26.

No relatório da Polícia Federal, com suas 884 páginas, a palavra “execução” aparece 105 vezes, quase sempre no sentido de colocar em prática. Em alguns casos, o termo se refere ao “assassinato” do ministro Alexandre de Moraes, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice, Geraldo Alckmin. O documento destaca as muitas etapas em que os golpistas colocaram em prática os planos de ruptura institucional, tanto no período anterior à eleição como após a derrota nas urnas, com a atuação dos integrantes da cúpula do governo Jair Bolsonaro e militares aliados, sobretudo os Kids Pretos — aqueles que têm formação nas Forças Especiais (FE) do Exército.

Alguns destaques são a criação e disseminação persistente de desinformação para abalar a credibilidade do Poder Judiciário e do processo eleitoral no Brasil, para dar pretexto à ruptura institucional, envolvendo assessores palacianos, militares de alta patente e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem e sua “Abin Paralela”; a elaboração de versões de minutas de decretos golpistas, discutidas em reuniões com a participação de Bolsonaro, que pessoalmente “enxugou” o texto, segundo o ajudante de ordens Mauro Cid; e a tentativa de cooptar o Alto Comando do Exército, com a produção e disseminação da “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro”.

O exemplo mais claro de que a conspiração golpista estava em um estágio avançado foi a execução do planejamento “Punhal Verde e Amarelo”, que além do envenenamento de Lula e Alckmin previa a prisão ou mesmo o assassinato do ministro Alexandre de Moraes. O plano evoluiu para a prática com o início do monitoramento do ministro em meados de novembro de 2022, com financiamento de operações de campo, com a obtenção de equipamentos, com a impressão em dias diferentes pelo general Mário Fernandes do planejamento “Punhal Verde e Amarelo”, com as repetidas viagens do militar Rafael Martins de Oliveira de Goiânia a Brasília, e o mais importante: com os atos de 15 de dezembro de 2022, a data do golpe abortado. Naquela noite de quinta-feira, por meio de um grupo no aplicativo Signal, seis Kids Pretos efetivamente se posicionaram em locais estratégicos de Brasília para prender ou matar Moraes, por volta das 20h30. A ordem de abortar a missão só veio às 20h59, com um contexto que merece ser esmiuçado.

Com seu nome real escondido, um dos militares, identificado como “Áustria”, perguntou no grupo do aplicativo Signal, às 20h57: “Tô perto da posição. Vai cancelar o jogo?” Cerca de dois minutos depois, o militar identificado como “teixeiralafaiete230” respondeu: “Abortar… Áustria… volta para local de desembarque… estamos aqui ainda…” Os termos “cancelar” e “abortar” indicam que havia a autorização prévia, que a missão foi dada, e só não foi cumprida porque veio uma ordem contrária.

“A execução foi iniciada em meados do mês de novembro de 2022, com equipes formadas por militares das Forças Especiais (FE) que monitoravam o cotidiano e itinerários do ministro ALEXANDRE DE MORAES e do presidente LULA, inclusive com o emprego de recursos do Batalhão de Ações e comando-BAC”, escreveu a PF sobre o planejamento de prisão ou assassinato. Entre os alvos, portanto, ao menos Moraes não foi ameaçado apenas na teoria. O plano estava sendo colocado em prática, quando alguma ordem ou ruído mudou a conclusão de última hora.

A piauí contextualiza as sete vezes em que a PF mencionou “atos executórios” (em um dos casos, o texto diz “ações executórias”). As citações foram mantidas em sua redação original, preservando eventuais erros de concordância e ortografia.

Pág. 122 (Capítulo 2.5. DA DISSEMINAÇÃO DE CONTEÚDO FALSO POR FERNANDO CERIMEDO E OUTROS INVESTIGADOS): A análise também identificou o encaminhamento de mensagens entre os interlocutores, advindas de outros grupos de militares, que ratificam o conhecimento de atos executórios para um Golpe de Estado.

Contexto: Estratégia adotada desde o primeiro ano de governo, a disseminação de conteúdo falso não apenas semeava dúvidas, mas mobilizava grupos militares a reconhecer a necessidade da “virada de mesa”. A investigação destaca o papel de Alexandre Ramagem, então diretor da Agência Brasileira de Informação (Abin), que criou em 2021 um grupo técnico para investigar urnas eletrônicas, incluindo Angelo Martins Denicoli, ex-major da reserva. Em 4 de novembro de 2022, Fernando Cerimedo, um consultor argentino, publicou um artigo alegando fraude eleitoral no Brasil, baseado em disparidades entre as urnas fabricadas em 2018 e as de 2020, que, segundo ele, teriam causado a transferência de votos de Bolsonaro para Lula em 2022. A apresentação alcançou 415 mil visualizações e foi amplamente promovida por membros do grupo golpista, incluindo Tércio Arnaud e o tenente-coronel Guilherme Marques de Almeida. Uma semana depois, Cerimedo divulgou um link com acesso aos dados utilizados na pesquisa; e então se percebeu o golpe. Alguns arquivos tinham sido criados por Denicoli, que fazia parte do grupo chefiado por Ramagem. A Polícia Federal identificou que Denicoli editou esses arquivos, indicando uma tentativa coordenada de desacreditar o sistema eleitoral e justificar uma ruptura institucional. O argentino também colaborava com Eder Balbino, da empresa Gaio.io, que trabalhou para o Partido Liberal, de Bolsonaro, na ação do PL no Tribunal Superior Eleitoral que buscava melar as eleições.

Pág. 373 (Cap. 5. DAS REUNIÕES PARA APRESENTAÇÃO DO DECRETO DE GOLPE DE ESTADO): No transcorrer do áudio, MAURO CID confirma que o então Presidente estava redigindo e ajustando o Decreto, que já era de conhecimento de FREIRE GOMES, quando compareceu à reunião no dia 07/12/2022 no Palácio da Alvorada e JAIR BOLSONARO, juntamente com FILIPE MARTINS apresentou os “considerando” da medida de exceção. A mensagem ainda evidencia que os atos executórios já estavam em andamento.

Contexto: A Polícia Federal realça o significado das edições de diversas versões de minutas de decreto como evidências de que a organização criminosa liderada pelo presidente Jair Bolsonaro já estava tomando medidas para concretizar o golpe de Estado. A reunião de 7 de dezembro, citada no trecho acima, foi convocada por Jair Bolsonaro com os comandantes das Forças Armadas — Freire Gomes, do Exército, Baptista Júnior, da Aeronáutica, e Almir Garnier, da Marinha — um dia após a nova versão do planejamento “Punhal Verde e Amarelo” ser impressa por Mário Fernandes no Palácio do Planalto e levada ao Alvorada.

Pág. 375 (Cap. 5. DAS REUNIÕES PARA APRESENTAÇÃO DO DECRETO DE GOLPE DE ESTADO): Em seguida, MAURO CID diz: “Ele entende as consequências do que pode acontece”, se referindo sobre as consequências da decretação da medida de exceção. No mesmo sentido do áudio anterior, MAURO CID ratifica, agora de forma mais categórica, que o então Presidente da República JAIR BOLSONARO, no curso dos atos executórios do Golpe de Estado, alterou o decreto, reduzindo seu conteúdo, deixando-o mais “direto, objetivo, curto e limitado”. Diz: “É… hoje ele, ele, ele… ele mexeu naquele decreto, né. Ele reduziu bastante. Fez algo muito mais direto, objetivo e curto, e limitado, né”

Contexto: Ainda em torno das minutas, a investigação revela, nas trocas de mensagens, a busca por aprimorar o decreto que serviria como instrumento do golpe. As meticulosas edições, reedições, ajustes, demonstram o alto grau de meticulosidade na elaboração do decreto presidencial, para evitar reações contrárias. Estava tudo pronto para a publicação do decreto, mas Bolsonaro não tinha obtido o apoio que buscava. Quando Cid diz “ele entende as consequências”, revela que Bolsonaro estava ciente da ilegalidade de seus atos e dos riscos que corria se desse errado.

Pág. 484 (Capítulo 6.3. DA REUNIÃO DO DIA 12 DE NOVEMBRO DE 2022): Neste momento, evidencia-se a conexão entre o planejamento da ação operacional, descrita no documento denominado “Punhal verde amarelo”, a descrição logística e orçamentárias contida no documento denominado “Copa 2022” com as ações executórias que será a seguir descritas para prender/executar o ministro ALEXANDRE DE MORAES. Exatamente o nome “Copa 2022”, utilizado para nominar o arquivo em formato “word”, com “necessidades iniciais” e estimativas de gastos das operações a serem realizadas por “Kids Pretos” também foi utilizado para denominar a ação clandestina de Forças Especiais desencadeada no dia 15 de dezembro de 2022, para prisão/execução do ministro ALEXANDRE DE MORAES.

Contexto: À medida que os planos evoluíam, a conexão entre o planejamento e a execução se tornava cada vez mais explícita, com arranjos operacionais concretos para a prisão ou assassinato do ministro Alexandre de Moraes, identificado como o “centro de gravidade” pelos golpistas, representando um obstáculo à consumação do golpe que precisava ser “neutralizado”. A participação de militares com formação em Forças Especiais e experiência em operações clandestinas demonstra o nível de profissionalismo e de perigo envolvidos. Ainda no planejamento “Punhal Verde e Amarelo”, os militares já tinham calculado até o grau de “comoção nacional” que haveria com o assassinato dos integrantes da chapa presidencial.

Pág. 754 (Capítulo 11.3. DAS AÇÕES DO SENADOR MARCOS DO VAL): Uma das falas do ex-deputado Federal DANIEL SILVEIRA chama a atenção pela conexão com os fatos identificados no   presente procedimento. Em uma das mensagens enviadas ao Senador MARCOS DO VAL, DANIEL SILVEIRA diz expressamente que solicitou ao Senador que gravasse o Ministro ALEXANDRE DE MORAES admitindo que agiu fora da constituição, o que serviria para auxiliar a implementação de uma ação que estava desenhada e pronta para ser aplicada. Ou seja, DANIEL SILVEIRA tinha ciência dos atos executórios   que   estavam   sendo empregados para concretização da ruptura institucional.

Contexto: Em uma estratégia ousada para avançar no objetivo de desacreditar e desestabilizar o Judiciário, o deputado Daniel Silveira, revelando conhecimento do planejamento golpista, pediu ao senador Marcos do Val que coletasse evidências contra o ministro do STF, a fim de neutralizar as investigações da Corte. A preocupação com as investigações e a criação de uma narrativa falsa são evidentes também nas anotações de Mário Fernandes e nos diálogos entre outros participantes da trama golpista. Em diferentes diálogos, percebe-se a estratégia de atribuir a culpa dos atos de 8 de janeiro a “infiltrados” da “esquerda” e desviar o foco dos verdadeiros responsáveis. “Além disso, em mensagens enviadas pelo Senador MARCOS DO VAL à Deputada Federal CARLA ZAMBELLI, o congressista evidencia seu elemento subjetivo criminoso em embaraçar as investigações que envolvem a tentativa de golpe de Estado no país”, escreve a PF, apontando que a finalidade era culpar o novo governo eleito e demonizar Moraes, conforme evidenciado também em anotações do general Mário Fernandes — em suma, uma ampla coordenação para minar a credibilidade das instituições democráticas.

Pág. 841 (Capítulo 10. DOS INDICIAMENTOS. 21º. JAIR MESSIAS BOLSONARO): Os elementos de prova obtidos ao longo da investigação demonstram de forma inequívoca que o então presidente da República, JAIR MESSIAS BOLSONARO, planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos  executórios  realizados  pela  organização  criminosa  que objetivava a concretização de um Golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito, fato que não se consumou em razão de circunstâncias alheias à sua vontade.

Contexto: A página 841 do relatório da Polícia Federal detalha os indiciamentos no contexto das investigações sobre tentativas de golpe de Estado no Brasil, com foco específico no papel de Jair Messias Bolsonaro. O trecho sintetiza a conclusão de que Jair Bolsonaro era o líder da organização criminosa que planejava o golpe. Não apenas concordava com a ideia de um golpe, mas agia ativamente para que ele se concretizasse, tendo o controle direto e efetivo sobre as ações em andamento.  A PF conclui que a falha em realizar o golpe não foi por falta de tentativa ou desejo, mas sim por impedimentos que Bolsonaro e seus cúmplices não conseguiram superar. Como exemplo, a PF cita algumas páginas adiante, “a resistência dos comandantes da Aeronáutica, Tenente-Brigadeiro BAPTISTA JUNIOR, e do Exército, General FREIRE GOMES, e da maioria do Alto Comando que permaneceram fiéis à defesa do Estado Democrático de Direito, não dando o suporte armado para que o então presidente da República consumasse o golpe de Estado.”

A PF conclui que a falha em realizar o golpe não foi por falta de tentativa ou desejo, mas sim por impedimentos que Bolsonaro e seus cúmplices não conseguiram superar. Se houvesse se consumado o golpe, não haveria investigação.

Em um pronunciamento no Palácio da Alvorada, em 9 de dezembro de 2022, Bolsonaro falou diretamente a apoiadores pela primeira vez desde a derrota nas urnas. Na ocasião, disse que o povo deveria “decidir para onde as Forças Armadas vão”. “As decisões, quando são exclusivamente nossas, são menos difíceis e menos dolorosas. Mas quando elas passam por outros setores da sociedade, elas são mais difíceis e devem ser trabalhadas. Se algo der errado, é porque eu perdi a minha liderança.”

Pág. 883 (Capítulo 11. DA CONCLUSÃO): Diante do exposto, conforme todos os atos executórios descritos, a investigação reuniu elementos que permitiram a conclusão de que os investigados atuaram de forma coordenada, mediante  divisão de tarefas,  desde  o ano de  2019, com  o emprego de  grave ameaça  para restringir o livre exercício do poder Judiciário e impedir a posse do governo legitimamente eleito, com a finalidade de obter a vantagem relacionada a manutenção no poder do então presidente da República JAIR BOLSONARO. Os elementos de prova colhidos corroboram as hipóteses criminais enunciadas na presente investigação, demonstrando autoria e materialidade dos fatos apurados, fundamentando os indiciamentos descritos.

Contexto: A página 883 do relatório final da Polícia Federal encapsula as conclusões de uma extensa investigação sobre as tentativas de subverter o estado democrático de direito no Brasil. Em resumo, a investigação da PF revelou uma trama golpista complexa e perigosa, que contou com a participação de militares, políticos e civis. A investigação conduzida pela Polícia Federal do Brasil revelou um esquema complexo e coordenado, envolvendo atos não apenas preparatórios, mas efetivamente executórios, apontando para uma tentativa de golpe de Estado, envolvendo altos funcionários do governo Bolsonaro e militares.

O relatório finaliza apontando que, embora os planos de golpe não tenham sido completamente bem-sucedidos devido a circunstâncias externas, a tentativa em si e os atos realizados representam uma clara violação dos princípios democráticos. Ainda, o relatório da PF, ao revelar os atos executórios em andamento, dissolve a narrativa de que a ameaça golpista se resumia a bravatas e discursos inflamados.

As menções que a PF faz aos “atos executórios” se conectam a outros fatos graves revelados em conversas anteriores. A disseminação de desinformação sobre o processo eleitoral, orquestrada por diversos dos indiciados, como o tenente-coronel Marques de Almeida, criou o terreno fértil para a justificativa do golpe, fomentando a mobilização de apoiadores de Bolsonaro e a pressão sobre o Alto Comando do Exército. O plano para gravar clandestinamente o ministro Alexandre de Moraes, com o envolvimento do senador Marcos do Val e de Daniel Silveira, demonstra a intenção de obter informações comprometedoras ou manipular o ministro para favorecer o golpe. A elaboração de documentos como a “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro”, redigida e revisada por militares como o coronel Anderson Moura e o coronel Correa Netto, visava incitar os militares e pressionar o Alto Comando a aderir à ruptura institucional.

Da leitura do relatório e das provas obtidas pela PF, fica evidente que a resistência do comandante do Exército, general Freire Gomes, e da maioria dos integrantes do Alto Comando do Exército, foi fundamental para impedir a consumação do golpe.

Esses atos executórios, portanto, não foram apenas tentativas isoladas, mas parte de uma campanha orquestrada e executada por altos membros do governo e seus aliados, revelando ações contínuas e sistemáticas para a quebra da das instituições democráticas do Brasil.

Na sinfonia golpista, os instrumentos estavam afinados e os músicos a postos – quase todos. A cena não se concluiu porque alguns não seguiram a partitura. 

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