Você provavelmente já sabe que as eleições americanas são, para usar um termo extremamente técnico, uma bagunça. E bem difícil de entender para quem, como os brasileiros, raciocina com base numa eleição direta, em que cada eleitor tem um voto, e o candidato com mais votos vence.
O candidato democrata e ex-vice de Barack Obama, Joseph Biden, é apontado pelas pesquisas como favorito para derrotar o presidente Donald Trump. A apuração desta noite vai deixar muita gente de unhas roídas. Ela acontece estado a estado, e não nacionalmente, como no Brasil. Cada estado tem suas regras e um ritmo diferente para contar os votos. A pandemia de Covid-19 aumenta ainda mais a incerteza. Dificilmente o resultado oficial do pleito será conhecido até o fim do dia – mas já deveremos ter sinais claros de quem será vencedor. A seguir, algumas perguntas para ajudar a entender o sistema eleitoral americano e a forma como os votos são distribuídos entre democratas (cujo símbolo é um burro) e republicanos (cujo símbolo é um elefante).
Por que quem recebe mais votos da população nas eleições americanas não necessariamente ganha a eleição?
Porque os EUA não foram desenhados para ser uma democracia. Os autores da Constituição dos Estados Unidos morriam de medo da “ditadura da maioria”. Acreditavam em uma República governada por uma elite intelectual. Nesse sistema, o principal líder do país, o presidente, não seria eleito pelo voto do povo.
A ideia era que o eleitor de cada estado escolhesse alguns representantes para que comparecessem a uma conferência nacional, chamada de colégio eleitoral. Nessa conferência, esses representantes – os delegados – debateriam entre si e, juntos, escolheriam um sujeito que se tornaria presidente.
Mal se passaram trinta anos da promulgação da Constituição, em 1787, até que os delegados começassem a vincular seus votos no colégio eleitoral a candidatos específicos. Ou seja, em vez de dizerem que escolheriam o melhor homem (e, naquela época, era necessariamente um homem) para governar o país depois de longos e complexos debates, os delegados já se comprometiam de cara a votar num determinado candidato.
Os estados aprovaram leis obrigando todos os delegados daquele estado a votar no mesmo candidato – e esse candidato tinha de ser, obrigatoriamente, o que recebeu a maioria dos votos dos eleitores naquela unidade federativa.
Na década de 1830, já estava em vigor o sistema atual, uma mistura de voto popular nos estados com o colégio eleitoral que os autores da Constituição haviam pensado. Basicamente, o sistema atual funciona assim: ocorre uma eleição em cada estado, em que os eleitores votam nos seus candidatos favoritos para a Presidência. Mas, em vez de somarem a votação de cada estado para encontrarem o vencedor em todo o país, cada estado (e o Distrito de Columbia que, como o nosso Distrito Federal, não é um estado formalmente) calcula seus votos separadamente. Cada uma dessas unidades tem um número exato de delegados. No colégio eleitoral, esses delegados têm, necessariamente, de votar no candidato que recebeu mais votos naquele estado. É a soma dos votos de cada unidade federativa no colégio eleitoral que determina o vencedor das eleições presidenciais americanas.
Há duas exceções à regra de que o vencedor leva todos os delegados daquele estado: Maine e Nebraska. Neles, a votação é conduzida distrito a distrito. Vai um delegado para o vencedor de cada distrito e um, de bônus, para quem ganhou a eleição no estado inteiro. Há, também, casos de delegados que, quando chegam ao colégio eleitoral, se recusam a votar conforme o eleitorado do seu estado. Mas esses casos são raros o bastante para nunca terem feito qualquer diferença numa eleição presidencial.
Como é definido o número de delegados de cada estado?
Cada estado tem direito a tantos delegados quantos assentos tem no Congresso americano, somando Câmara dos Deputados e Senado. Por exemplo, a Califórnia tem 53 assentos na Câmara e dois no Senado. Tem, portanto, 55 delegados no colégio eleitoral. A exceção é o Distrito de Columbia, que não tem representação no Congresso mas tem três delegados, mesmo assim.
Os assentos na Câmara são distribuídos mais ou menos de acordo com a população de cada estado. Quanto mais populoso o estado, maior sua delegação. Mas há limites. Nenhum estado pode ter menos que um deputado, e o número máximo de deputados na Câmara é 435. O número de assentos no Senado não é proporcional à população. Cada um dos 50 estados tem dois senadores. Isso cria uma distorção, porque os estados mais populosos têm, no Senado, o mesmo número de representantes dos estados menos populosos – e isso vai se refletir na relação entre o total de eleitores representados por delegado no colégio eleitoral.
O colégio eleitoral tem 538 delegados, e vence quem tiver maioria absoluta, com pelo menos 270 votos.
O que são estados-pêndulo?
O sistema bipartidário americano faz com que a maior parte do eleitorado – dois terços, mais ou menos – saiba bem a que partido pertence. Normalmente, os americanos ou são Democratas ou são Republicanos, e dificilmente mudam seu voto de uma eleição para outra.
Mais ou menos a mesma coisa acontece com os estados. A maioria do eleitorado na maior parte dos estados vota no candidato do mesmo partido há várias eleições. Isso faz com que o resultado seja previsível nesses casos. Massachusetts, por exemplo, é famoso por sempre votar no candidato Democrata. Do mesmo modo, todo mundo dá como certo que Trump vencerá o pleito no Mississippi.
Por isso que a atenção das campanhas fica voltada para os poucos estados em que há um número grande o suficiente de eleitores indecisos. São os chamados estados-pêndulo.
Quais são os estados-pêndulo em 2020?
A lista de estados-pêndulo muda de uma eleição para outra. Os estados de Michigan, Wisconsin e Pensilvânia eram dados como apoiadores certos dos Democratas até 2016, quando Trump surpreendeu a todos e levou a maioria dos votos neles. Por isso, todos os olhares estão voltados para eles em 2020. Se Trump perder nesses estados, será praticamente impossível que seja reeleito.
Há outros estados que tendem a votar em Republicanos, mas que podem pender para os Democratas este ano: Ohio, Iowa, Arizona, Carolina do Norte, Geórgia, Flórida e Texas. Se Biden ganhar em qualquer um deles, é quase certo que se torne o novo presidente americano. Se ganhar na maioria deles, vai ser uma vitória de lavada.
Quem é o favorito em 2020?
Segundo as pesquisas, Joe Biden. Todos os modelos matemáticos que tentam prever o resultado da eleição, como o do jornalista e estatístico Nate Silver, do site Five Thirty Eight, ou o da revista The Economist, dizem que o democrata tem mais ou menos 90% de chances de ganhar. Não significa, claro, que a eleição dele seja certa. Eventos com uma probabilidade de 10% de chance de acontecer ainda assim acontecem com bastante frequência – obviamente, uma em dez vezes. Mas uma chance de 10% é o dobro das chances de tirar dois pares numa mão de poker. Todo mundo que já jogou poker sabe que isso acontece o tempo todo.
Dá para confiar nas pesquisas de intenção de voto?
Os principais institutos de pesquisa brasileiros (Ibope e Datafolha) entrevistam o eleitor pessoalmente, mas os americanos preferem o telefone ou mesmo a internet. Também usam amostragens menores, o que aumenta a margem de erro.
Não é incomum que as pesquisas americanas tenham resultado diferente das urnas em até 4 pontos percentuais. Foi o que aconteceu em 2016. Foi um erro – de 3 pontos, naquele ano – dentro da margem histórica. De qualquer forma, as pesquisas ao menos nos dão uma ideia de como está a corrida eleitoral hoje. Fique atento às pesquisas estado a estado, já que o voto nacional, no caso americano, não vale nada.
2020 pode repetir 2016?
A vantagem de Biden em relação a Trump é mais que o dobro da vantagem que Hillary tinha na véspera da eleição. Ou seja, ainda que as pesquisas errem em 2020 pelo mesmo tanto que erraram em 2016, Biden será o novo presidente dos EUA.
Além disso, os institutos de pesquisa tomaram medidas para corrigir os erros de 2016. O que parece ter acontecido naquele ano é que os eleitores com menor nível educacional favoreceram Trump. Ocorre que essas pessoas também são mais difíceis de responder a pesquisas de opinião pública. Os institutos, em 2016, não tentaram corrigir esse problema – seja entrevistando um número maior de pessoas sem diploma universitário ou dando peso maior àqueles que conseguiram entrevistar. Esse erro não deve se repetir em 2020.
Em 2016, havia muitos eleitores indecisos. Neste ano, pouca gente diz estar em cima do muro. Por fim, muita gente já votou em 2020, o que diminui a chance de as pessoas dizerem uma coisa para os institutos de pesquisa e se comportarem de outro jeito na urna.
Muita gente já votou. Como é possível?
Cada estado tem suas próprias regras para o pleito, e vários deles permitem que os eleitores votem antecipadamente. Em alguns, as seções eleitorais ficam abertas por até um mês antes do dia final da eleição. Muitos eleitores, portanto, já votaram. É melhor pensar no dia da eleição como um prazo final e não como efetivamente num dia em que todos os americanos vão às urnas.
Vários estados também permitem que o eleitor receba a cédula eleitoral em casa, a preencha manualmente, e a envie para o governo por correio. Esse sistema cresceu muito este ano por conta da pandemia. A fim de diminuir o número de pessoas nas seções eleitorais, alguns governos estaduais mandaram cédulas para a casa de todos os eleitores cadastrados.
Por que tanta gente fala em “supressão eleitoral”?
O voto nos Estados Unidos é optativo. Mas nem todo mundo tem as mesmas chances de votar. Pobres, negros, latinos e pessoas com menor nível educacional comparecem às urnas em proporção menor.
Ocorre que esses grupos também tendem a ser Democratas. Por isso, o Partido Democrata tem feito campanhas para aumentar o acesso do eleitor à urna, seja cadastrando essas pessoas como eleitores, seja encorajando que votem a distância, seja incentivando que compareçam às seções no dia da eleição.
Os Republicanos vêm tentando restringir a votação desses eleitores. Entre as medidas com este fim estão a criação de leis estaduais que aumentam a burocracia para se cadastrar como eleitor, o fechamento de seções eleitorais, a restrição da votação por correio, o encurtamento do período de votação antecipada ou, em casos mais extremos, a tentativa de suspender a contagem de alguns votos. No fim de semana passado, por exemplo, um juiz do Texas ligado ao partido determinou que cerca de 127 mil cédulas da cidade de Houston fossem jogadas fora sem que tivessem sido contabilizadas. A decisão foi suspensa pela Suprema Corte do estado, mas é um indício do que os Republicanos podem fazer caso a eleição seja muito apertada.
Afinal, há precedente para isso. Em 2000, George W. Bush havia ganhado a Flórida por apenas 537 votos. O candidato Democrata, Al Gore, pediu uma recontagem dos votos – um pedido que é previsto em lei quando a margem de vitória de um candidato é muito pequena. A recontagem já começara quando a Suprema Corte americana simplesmente a suspendeu e decretou a vitória de Bush.
Quando saberemos o resultado da eleição de 2020?
A apuração da eleição é feita pelos estados. Alguns são mais eficientes que outros. O aumento na votação pelo correio deve tornar o processo mais lento, já que essas cédulas demoram mais para serem contadas.
De qualquer forma, provavelmente haverá indícios de quem será o vencedor. Os estados da Flórida, Arizona, Geórgia e Carolina do Norte têm fama de contabilizar seus votos rapidamente. Se Biden ganhar em qualquer um deles, é quase certo que terá sido eleito.
Mas, se Trump sair vitorioso, então teremos de esperar o resultado em Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. O resultado nesses estados pode sair só na sexta-feira.
Basicamente, o resumo é o seguinte: se Biden ganhar confortavelmente, como preveem as pesquisas, o resultado deve ser conhecido logo no início da noite de hoje. Se a eleição estiver mais apertada, o resultado pode demorar bastante. Se for apertadíssima, então a briga vai para o Judiciário, onde os Republicanos tradicionalmente se saem melhor.
Onde acompanhar a apuração dos votos?
Você leu isso tudo e agora quer saber onde pode acompanhar a apuração dos votos em tempo real? Além do noticiário brasileiro, seguem algumas dicas para quem quiser acompanhar o noticiário em inglês.
Para os nerds como eu, recomendo começar pelo Five Thirty Eight (www.fivethirtyeight.com) que, desde 2008, tem previsto com sucesso o resultado das eleições americanas. O site tem vários mapas interativos que deixam o leitor brincar com os dados estado a estado. A Economist lançou um modelo parecido. Os jornalões terão ferramentas para acompanhar o resultado em tempo real. Eu vou com o New York Times: www.nytimes.com. E, no dia seguinte, correrei para o Vox para ler as análises dos jornalistas Matthew Yglesias e Ezra Klein – dois dos melhores analistas políticos do país. O Daily, podcast diário do New York Times, faz um resumo das notícias do dia anterior.