A paisagem é o Rio antigo, a Rua Lampadosa, que cruzava com a Rua do Hospício e onde se localizava a forca da cidade, e só bem mais tarde recebeu o nome atual, Avenida Passos. Nela, uma igreja de estilo neocolonial à primeira vista não chama muito a atenção dos passantes, espremida entre outros monumentos e em meio ao comércio popular da cidade. Mas esse pequeno enclave de tempos e espaços é a Igreja de Nossa Senhora de Lampadosa, cujas paredes contam uma história muito antiga de fé, de escravidão e de mar. No início do século XVII, alguns africanos escravizados foram trazidos da ilha de Lampedusa, na Itália, para o Brasil e trouxeram consigo a devoção à Nossa Senhora de Lampadosa. Fundaram no Rio de Janeiro uma irmandade e, em 1748, decidiram edificar o templo, demolido em 1930 e reconstruído em 1934.
A igreja é o amálgama de significativos elos entre Brasil, África e Itália. O trânsito desses indivíduos escravizados na Europa está relacionado à lógica da colonização: os viajantes partiram de Lampedusa rumo ao desconhecido – cruzaram o oceano, mudaram de língua, trocaram de continente. Mas nem tudo era novo: eles eram escravos, e assim permaneceram. O lugar de onde vieram, sem possibilidade de arbitrar sobre seu destino, hoje é um dos símbolos das migrações em massa. Para lá convergem africanos, árabes e asiáticos com o intuito de entrar na Europa – o que é, para muitos, uma tarefa impossível.
Em julho de 2013, o papa Francisco, na primeira viagem de seu pontificado, escolheu justamente visitar essa ilha. Lá, proferiu um sermão evocando o que chamou de “globalização da indiferença”, referindo-se à dramática situação dos migrantes. A preocupação é legítima: em Lampedusa (como em Calais, no norte da França, e tantas outras fronteiras), em vez de acolhimento, é mais provável que o migrante encontre cães farejadores, sensores de temperatura corporal, arame farpado e ostensivo aparato policial.
A importância do tema da migração exige do mundo contemporâneo constante esforço de compreensão, e o mar surge como epicentro desse debate, que, se não é novo, atinge agora alarmantes proporções. Ao longo dos séculos, o mar comparece como espaço político de disputas e de grande simbologia. Quem atravessa o mar, como, por que e, sobretudo, com que objetivo: essas são perguntas que convidam a problematizar um debate incontornável. Quase 2 milhões de migrantes chegaram à Europa pelo mar entre 2008 e 2016, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Como pensar o significado de águas que não cessam de produzir novos relatos, de nos contar sobre travessias épicas, feitas de medo e de morte? Sujeitos escravizados e marginalizados protagonizam essas terríveis narrativas.
Para tanto, vale pensar sobre um lugar simbólico, o Mediterrâneo, mar lendário e paisagem mítica, além de cenário de uma fantasia que inspira há séculos o imaginário ocidental – mediterraneus, “em meio às terras”, como evoca a origem latina do nome.
De acordo com o historiador francês Henry Laurens, o termo Mediterrâneo foi criado no século XIX para se referir a um espaço específico: a extensão de água entre Europa, África do Norte e Ásia. O nome nasceu no cruzamento de uma empresa diplomática e militar, sustenta Laurens, que situa o ano de 1830 como momento em que o Mediterrâneo passa a ser sobretudo um espaço geopolítico decisivo – e, “ao [se] construir uma ideia mediterranista, um traço de união aparece”, afirma o historiador, no livro Méditerranées Politiques (Mediterrâneos Políticos), lembrando que nessa nova perspectiva está implícita a importância da construção de um elo entre Ocidente e Oriente.
As águas do Mediterrâneo banham Espanha, França, Itália, Croácia, Grécia, Turquia, Síria, Líbano, Israel, Palestina, Egito, Argélia e Marrocos, entre outros países. Por causa dessa posição, está vocacionado para o comércio – como tal serviu aos gregos antigos e fenícios –, mas também estimula a rivalidade entre os povos. A tentativa de controlar os territórios que ele banha levou a uma série de disputas. Sua história é atravessada por uma tensão constante entre a real possibilidade de encontro entre povos e culturas e a ideia de dominação e reiteradas guerras.
Nomear algo não é uma ato banal. “A invenção do nome significa uma nova maneira de pensar. No caso, criar o substantivo [Mediterrâneo] de um adjetivo [mediterraneus] para falar de um espaço marítimo e de seus rios sublinha como os europeus veem e estabelecem de maneira diferente as relações com outras terras mediterrâneas”, escreve Laurens. Essa postura de dominação tem como consequência a forma de designar os espaços.
Para a Itália, o Mediterrâneo ganhou um significado ainda mais peculiar. Os romanos o chamavam de Mare nostrum (nosso mar). O sentido de posse definia a relação que tinham com aquelas águas, uma vez que todas as regiões banhadas por elas foram ocupadas pelo Império Romano. Durante a Unificação da Itália, no século XIX, a expressão Mare nostrum foi reapropriada pelos nacionalistas e, mais tarde, por Benito Mussolini, no delírio fascista de recriar a grandeza imperial – o Mediterrâneo seria um “lago italiano”, nas palavras do ditador. O fatídico mar sempre demonstrou que ele não é para todos e que o compartilhamento de suas águas está comprometido por uma geopolítica excludente. Alguns podem e alguns não podem transitar por ali.
Para o migrante, cruzar o mar é miragem entremeada de inúmeros sacrifícios. O antropólogo francês Michel Agier alude ao Mediterrâneo como um grande palco de acontecimentos, um teatro no qual se chegou em 2015 a um limiar da consciência europeia sobre a questão da fronteira e das migrações. Agier se refere ao ano do fechamento da rota dos Bálcãs – que permitia a passagem de imigrantes por terra, rumo à Europa – que tornou ainda mais aguda a falta de acesso aos países europeus. Para curdos, sudaneses, eritreus, afegãos e iraquianos, entre outros, a única via possível para se chegar ao território europeu passou a ser a das águas. Impossível esquecer o impacto causado pela foto do menino sírio Aylan Kurdi, de três anos, que se afogou em 2015 perto da praia de Bodrum, na parte do Mediterrâneo que banha a Turquia. A imagem provocou uma onda de comoção a favor da causa dos refugiados, mas a situação só se agravou desde então.
Apesar do intenso fluxo de mercadorias no mundo atual, sabe-se que as pessoas circulam cada vez menos livremente e que a desigualdade entre os povos é alarmante. Para muitos, faltam as “chaves de papel”, preciosa imagem criada pelo escritor cubano Alejo Carpentier para se referir aos documentos que permitem cruzar as fronteiras criadas pela burocracia. Não à toa, uma das narrativas recorrentes da atualidade fala em “fechar portas”. Sobre o assunto, Agier provoca: “Nosso mundo é, e será cada vez mais, móvel e ‘produzirá’ cada vez mais estrangeiros.” É preciso, de uma vez por todas, balizar a questão em outros termos, pois motivos econômicos e políticos se encontram na base das migrações. Migra quem precisa, se desloca quem vive alguma situação insustentável. Encarar essas pessoas como culpadas em função de sua mobilidade é uma visão no mínimo equivocada. E perigosa.
Na esteira do fechamento das referidas vias de acesso à Europa, o canal da Sicília, perto do qual fica a ilha de Lampedusa, passou a ser para muitos a única chance de acessar o continente. Uma entrada possível. No entanto, o mar disputado por tantos se associa no presente às imagens de sofrimento e de morte. O turista que se banha nas águas azuis de Lampedusa ou de Lesbos, na Grécia, ou viaja em um cruzeiro de luxo pelo Mediterrâneo não pode esquecer que nessas terras tentam desembarcar (se conseguirem) botes abarrotados de gente em completo desespero. “Nunca mais o Mediterrâneo será como antes. Ninguém poderá cancelar o sepulcro dos clandestinos que o Mare nostrum hospedou na sua profundeza”, afirma a pensadora italiana Donatella Di Cesare.
Ela destaca que a primeira fronteira de todas é a linguística – “Os pronomes não são indiferentes” –, lembrando que “nós”, a primeira forma gramatical da comunidade, pode facilmente se blindar contra o “não nós”. Uma gramática do ódio se instala, separando e hierarquizando. Não há lugar para todos, segundo essa lógica. Na sua base estão o medo de dividir o mercado de trabalho, o pânico da criminalidade, a imagem da desordem, o risco do contágio. O estrangeiro é o inimigo da vez, ainda que essa imagem não tenha nada de novo.
Sobre o assunto, volto a um relato bastante emblemático. O historiador brasileiro Ronaldo Vainfas, ao descrever a ameaça de naufrágio sofrida por um navio português no século XVI, na costa brasileira, conta que, para aliviar o peso do batel, marujos optaram por lançar carga humana ao mar. Escolheram um negro, um cristão novo e um louco. Mais de quinhentos anos nos separam dessa cena, mas essas vidas nuas – recorrendo a uma conhecida expressão do filósofo italiano Giorgio Agamben – eram e continuam sendo os indivíduos sem direitos, em situação de desproteção e estado de ilegalidade. Corpos facilmente jogados ao mar. Relatos de tragédias nos dizem muito, e continuam a dizer. Das velas portuguesas aos dramas contemporâneos, a relação entre alteridade e espaço marítimo navega junto com as narrativas coletivas. Em cada época, quem são os primeiros a serem atirados aos perigos do mar? Ou, dito de outra forma, quem são os que deixamos morrer?
A “carga extra” do batel quinhentista lembra que para alguns há gente demais nos navios e que o sol não é para todos. Muito menos que haja “terra à vista” – expressão que nunca pareceu tão cruel. O gozo da posse explícita dos antigos colonizadores ao avistar novos territórios revelava a euforia dos impérios, em um mar sempre de chegada. Aos que se deslocam agora, o desembarque se torna um suplício: não é demais recordar que muitos são provenientes de países espoliados economicamente pelos próprios europeus. O direito ao espaço da cidade se torna cada vez mais um tema explosivo para os migrantes e para aquelas pessoas que são vistas como descartáveis.
Em As caravanas, Chico Buarque se refere ao “mar turquesa à la Istambul”. Na canção, o astro-rei surge como culpado: “Sol, a culpa deve ser do sol/ Que bate na moleira, o sol/ Que estoura as veias, o suor/ Que embaça os olhos e a razão/ E essa zoeira dentro da prisão/ Crioulos empilhados no porão/ De caravelas no alto mar.” O mar de Copacabana assiste à chegada dos pobres e favelados, e a imagem das caravelas aparece como ritornelo, agora na forma de caravanas de “crioulos”. Afinal, lamenta a voz de alguém na música, não há barreira que contenha esses estranhos. Entre passado e presente, permanece uma voz autoritária que reclama da invasão da praia, de que essa gente não deveria circular por ali. Caravelas se transmutam em caravanas, irmanando-se em nosso imaginário, a reclamar mais uma vez um lugar para essas pessoas – Lampedusa também é aqui, pois está em toda parte.
A água dos mares, pelas quais se deslocam tantas pessoas, se justapõe hoje à persistente preocupação com o ar, por meio do qual se propagam os vírus. Elementos associados à liberdade, deslocamento e completude, água e ar adquirem contornos sombrios. Vivemos num tempo de muitos muros e cercas, em que o imaginário das fronteiras reacende um discurso de soberania, de fechamento e proteção.
Pode-se pensar analogias entre água e ar. É de Empédocles a conhecida teoria dos quatro elementos. Com ela, o pensador pré-socrático estabeleceu a formulação dos princípios estruturantes do mundo: fogo, terra, água e ar. Primordiais, eles seriam recombinados de acordo com forças opostas, philia (amor) e nekos (ódio). Dentre os quatro elementos, talvez a água e o ar sejam os que mais nos envolvem, trazendo sensações de prazer e liberdade. A proteção do ventre materno e o primeiro sopro de vida se conectam às memórias relacionadas à philia, relacionadas a experiências sensoriais muito antigas. Água e ar são também formados por um elemento químico comum, que hoje ganha novo significado: o oxigênio.
“Quando chego em casa, eu respiro. Meu país é minha respiração”, afirma uma migrante iraniana no documentário 7 Bilhões de Outros (2003), de Yann Arthus-Bertrand, Sibylle d’Orgeval e Baptiste Rouget-Luchaire, que recolheram em mais de oitenta países depoimentos sobre medo, morte, esperanças e deslocamento. Em relação ao tema estar em casa, é curioso perceber que muitos entrevistados associam o lar à respiração: “Meus pulmões crescem”, sustenta outro entrevistado, que vive na Suíça. Conforme essa visão, o ato de estar em casa relaciona-se à ação de trocar oxigênio, de se nutrir. Um gesto simples que hoje, com a pandemia do novo coronavírus, se torna emblemático: não só estamos na clausura como nos encontramos impedidos de sorver o ar que circula perto dos outros. Nesse ponto a philia dá lugar ao nekos.
No contexto da disseminação da Covid-19, representantes políticos de extrema direita da Itália, França e Espanha se uniram na propagação do medo assim que apareceram as primeiras notícias do vírus. Na Croácia, o ministro da Saúde Vili Beros afirmou que os migrantes representavam um risco potencial para disseminá-lo, enquanto Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, declarou que o verdadeiro perigo era a migração. Donald Trump insistiu em chamar a Covid-19 de “vírus chinês”, contrariando radicalmente as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que evita relacionar o nome das enfermidades aos locais em que surgiram.
Muitas vezes ao longo da história a figura do estrangeiro foi associada à peste. A escritora norte-americana Susan Sontag, no ensaio A Doença como Metáfora (1978), lembra que as calamidades seriam algo comumente atrelado ao que vem de fora, e o conceito de doença nunca é inocente. A pandemia nos coloca diante de um quadro de ameaça, e as formas de expressão têm papel fundamental no modo de pensar e de agir. Basta lembrar que metáforas militares proliferam nos discursos sobre a Covid-19 – guerra, defesa, inimigo e invasão. São palavras que remetem à militarização da própria linguagem. Curioso: os mesmos termos são utilizados com frequência para designar as migrações.
Daí o perigo dos nacionalismos em uma Europa conflagrada há tempos por tensões em suas fronteiras, agora ainda mais acirradas. Conceber a propagação da Covid-19 como invasão levou as nações europeias a dificultarem a entrada em seu territórios, suspendendo temporariamente a livre circulação de pessoas, como prevê o Tratado de Schengen, assinado por 26 países. Nesta semana houve inclusive a suspensão de voos para a Inglaterra, por causa de uma mutação muito periculosa do novo coronavírus encontrada no país.
Não somente os cidadãos europeus, mas praticamente toda a humanidade vive agora uma experiência excepcional, que até poucos meses atrás era norma para uma parte da população mundial: a proibição de acessar livremente outros países. O vírus barra todos e submete as pessoas a protocolos que já eram rotina para os migrantes – avaliar, checar, verificar, catalogar, fichar, ações absolutamente familiares aos que se deslocam sem o “passaporte certo”. Na atualidade, cessaram as viagens, e nos vemos (quase) todos destinados ao isolamento. Mas as diferenças são abissais. Há confinamentos e confinamentos, e a desigualdade social se reproduz dentro dos espaços de reclusão.
Para a população é prescrita quarentena, higiene rígida e cuidado extra, mas há muitas pessoas em estado de vulnerabilidade absoluta. Para elas, lavar as mãos várias vezes por dia ou usar álcool gel são metas impossíveis. Pedir a quem não tem casa que não saia dela é uma demanda perversa. Uma quarentena digna para quem vive em um acampamento se torna algo quase impossível. O campo de Moria, na ilha de Lesbos, na Grécia, é uma prisão em que se amontoam quase vinte mil refugiados provenientes de vários países: filas de horas para receber alimento, falta de água e condições insalubres compõem o cotidiano desse lugar. Sequer aos que ali prestam serviços voluntários é permitida a entrada, para evitar o contágio. No momento em que o mundo fecha fronteiras, os indivíduos em situação precária estão oficialmente desamparados.
As águas se associam ao longo da história a um campo de batalha, em que os perdedores são mais do que conhecidos. Hoje, o ar ganhou novos sentidos e se transformou igualmente em espaço de luta. Respirar passou a ser problema, preocupação e solução. Uma “catástrofe da respiração” se instala no mundo, segundo Di Cesare, que sustenta que respirar não é mais um ato inocente. Basta lembrar a imagem de indígenas na Amazônia chegando mortos em canoas que os levavam à cidade para tratamento contra a Covid-19. Essa imagem condensa a equação.
O vírus que circula pelo ar revela a inutilidade dos muros. Ele desconhece fronteiras, ignora nacionalidades. Mas disparidades sociais imensas mostram que os mais indefesos são certamente os mais sujeitos ao contágio, porque expostos à miséria, à guerra, aos conflitos. Muitos dos afogados na travessia do Mediterrâneo permanecem insepultos. Seus corpos se perderam nas águas. Mesmo quando o mar devolve à terra o corpo de alguém, é grande a dificuldade de identificá-lo e acessar algum parente. A pessoa é enterrada longe da terra natal e da família – as despedidas nunca acontecem, os ciclos não são encerrados.
Algo de semelhante se deu com as vítimas do novo coronavírus, enterradas de forma rápida para evitar contágios. O descarte apressado dos corpos, encarados como ameaça. A falta de contato da família com o paciente, as despedidas virtuais e os caixões fechados se tornaram a nova rotina. Como ocorre em tantas tragédias coletivas, as vidas mais vulneráveis parecem menos dignas de luto e menos dignas de serem vividas. A impossibilidade de realizar ritos fúnebres e fazer a partilha coletiva da dor resulta em traumas ainda mais difíceis de serem superados.
Se respirar é trocar energia vital com o meio, vale pensar que quem tem o poder insistirá no controle dos corpos e até do ar sorvido pelos pulmões, seja um coiote atravessando o migrante na fronteira, seja o Estado retirando o oxigênio de quem ousa se deslocar. Para esses sujeitos, o que resta é o sufocamento – nos campos de refugiados, nas ondas do mar ou por causa do novo coronavírus.
Sobreviver agora consiste também em perdurar dentro de uma crise de valores, em que vidas valem pouco, face aos discursos autoritários e a indiferença generalizada. Migrantes valem menos, indígenas valem menos, pobres valem menos, idosos valem menos. No contexto brasileiro, o desafio é também sobreviver à própria sorte, em um país cujo presidente não só nega como tripudia abertamente a morte de milhares de pessoas. Enlutados diante de tanta perda e dor, os brasileiros, além de chorar pelos mortos, precisam lidar com o sentimento de desamparo e a falta de perspectiva. A sensação é de sufocamento. Antes mesmo de adoecer, já nos falta o ar.
Daí a necessidade de pôr em palavras nossa indignação. Na Roma antiga, a população expressava anonimamente sua revolta, pois os ataques ao poder político eram punidos com severidade. Um dos meios que tinha era depositar, na calada da noite, escritos mordazes atacando líderes religiosos e políticos ao pé de estátuas, como a de Pasquino, um guerreiro, e de Marforio, divindade que simbolizava o oceano. Eram as “estátuas falantes”, atributo que ganharam por causa dos bilhetes.
Diferentemente da estátua de Pasquino, que continua exposta ao ar livre (em um local perto da Embaixada do Brasil), a de Marforio foi encastelada em um museu no Capitólio romano e já não recebe as mensagens do povo. Essa divindade, em sua estonteante beleza, agora está isolada e surda às histórias que se desenrolam atualmente em seus domínios aquáticos. Pasquino e Marforio, fazendo jus à sua vocação para a comunicação, precisam se abrir a essa escuta. Pois não apenas em Roma, mas em tantas outras cidades, há muitos novos relatos e lamentos a serem ouvidos.