“Quando vi que eu teria um orçamento de 4 milhões de reais, pensei: ‘Tô rica! Vou mudar o país’”, brincou a ministra Anielle Franco, relembrando o momento em que chegou a Brasília para participar da transição de governo. Logo que se ambientou à máquina pública, percebeu que a situação era de austeridade. Recriado por Lula, o Ministério da Igualdade Racial tem pouca verba e poucos servidores para dar conta de uma tarefa histórica, enorme e complexa. “Eu tive que dar os meus pulos”, explicou Anielle na mesa de encerramento do evento Encontros piauí, promovido pela revista em parceria com o YouTube nesta terça-feira (13), em Brasília.
A transversalidade da pauta antirracista, sempre defendida pela ministra, se tornou um imperativo diante do baixo orçamento. “Sei que meu ministério tem que ser transversal e que para isso tenho que me movimentar”, disse Anielle, entrevistada por Breno Pires (revista piauí) e Tiago Rogero (Rádio Novelo). “Conversei com o Camilo [Santana] sobre a revisão da Lei de Cotas e educação antirracista. Falei ‘Camilo, você tem a oportunidade e o orçamento para fazer uma revolução na educação’. Ele topou e estamos conversando.”
Um dado apontado pela ministra dá dimensão do desafio: apesar do compromisso de Lula com políticas de combate ao racismo, a equipe do governo de transição teve apenas 1,3% de integrantes negros. Está em curso neste momento um censo feito em parceria com o Ministério da Gestão para traçar o perfil racial do governo Lula, uma iniciativa inédita. A expectativa é de que o levantamento seja concluído na primeira semana de julho.
A lista de parcerias inclui também o Ministério da Cultura, responsável por administrar a Fundação Palmares. Anielle diz conversar com Margareth Menezes, titular da Cultura, quase diariamente. As duas trocam informações sobre o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, antigo porto por onde chegaram centenas de milhares de escravos ao Brasil nos tempos do Império e que hoje é um sítio arqueológico. Há anos, discute-se criar no local um “museu da escravidão” – embora Anielle rejeite esse nome, marcado por uma carga negativa. “Ainda estamos pensando num nome melhor”, afirmou a ministra. “O que nós queremos, além de tudo, é ajudar a população que mora ali. É um sonho meu.”
Anielle conta que, por vezes, ainda é alvo de racismo em Brasília. No dia de sua posse como ministra, ouviu comentários a respeito de suas tranças. “Algumas pessoas dizem ‘ah, que cabelo diferente…’” Outras vezes lidou com a desconfiança de porteiros em prédios públicos. “Acontece de perguntarem: ‘Você, ministra? Mas jovem, com essa aparência?’”
A vida na capital obrigou Anielle a se curvar à política. Reúne-se com deputados, senadores, cobra projetos de ministros. “Não sou filiada a partido, nunca fui candidata a nada, mas decidi fazer da maneira que eu aprendi a fazer. Tenho uma frase que levo como símbolo: eu não vou mudar para caber na política. É a política que tem que mudar e cada vez mais ser transformada para que pessoas como eu caibam nela”, afirmou a ministra.
Anielle contou que vem atuando de forma direta no caso Vinícius Jr., desde que o jogador foi alvo de novas ofensas racistas na Espanha durante um jogo do Real Madrid. Por meio do embaixador brasileiro na Espanha, o governo brasileiro cobrou explicações de La Liga — a primeira divisão do futebol espanhol. “Não tivemos resposta até hoje”, disse Anielle. Enquanto isso, a ministra fez contato com autoridades da Espanha em busca de medidas mais duras de combate ao racismo. “A gente conseguiu auxiliar na discussão de uma Lei Antirracismo lá, que estava há muito tempo no papel e agora voltou à pauta”, afirmou.
O caso envolvendo o jogador brasileiro serviu para impulsionar um grupo de trabalho em parceria com o Ministério dos Esportes. O projeto que resultará dessa parceria ainda não é claro. Segundo Anielle, diferentes iniciativas têm sido discutidas, como punições mais graves a clubes de futebol por casos de racismo nos estádios e bolsas de apoio a atletas negros. “Como vai ser? Vamos punir o clube em pontos, em dinheiro? Estamos avaliando. Por isso é o programa que mais está demorando a ser anunciado”, explicou a ministra.
Anielle frisou que o racismo no esporte não se manifesta só por meio de cânticos nos estádios. É também uma questão de classe. “É algo que perpassa as crianças que querem ser jogadoras de futebol, mas não tem dinheiro para isso.” A ministra citou sua própria experiência como jogadora de vôlei no Rio de Janeiro. “Eu muitas vezes saía de Bonsucesso para o Flamengo, onde eu treinava. Eram quarenta minutos em um ônibus e quarenta em outro”, relembrou. “Às vezes minha quentinha estragava, eu tinha que comer na rua. As meninas da Zona Sul faziam um trajeto curto, não passavam por isso e jogavam muito melhor do que eu. O racismo também se demonstra nessas coisas.”
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