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    Maria Lucidalva Monteiro Feliciano mora na Viela do Trailer, no Jardim Papai Noel, em São Paulo - Foto: João Batista Jr.

anais da miséria

Um Natal de fome no Jardim Papai Noel

Na periferia da maior cidade do Brasil, catadora disputa comida no lixo com animais e líder comunitária vê gente desmaiar por não ter o que comer

João Batista Jr. | 13 dez 2021_13h30
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Todo dia a catadora Maria Lucidalva Monteiro Feliciano, de 59 anos, pegava seu carrinho de mercado para recolher lixo e sobras de comida em caçambas na Zona Sul de São Paulo. Perto das cinco da manhã, ela saía do barraco na Viela do Trailer, no Jardim Papai Noel, para buscar no lixo itens que pudessem ser convertidos em alimento ou dinheiro. Há duas semanas, parou: com a hérnia inflamada, não consegue andar 3 km de ida e outros 3 de volta. Sem falar no peso de arrastar o carrinho pelas ruas, algumas delas sem asfalto. A hérnia lhe causa dores fortíssimas na região lombar, fazendo com que ande arqueada para minimizar as pinçadas nas costas quando pisa no chão.

É das caçambas que a catadora tira seu sustento completo: roupa, sapato, pano de prato, lata de alumínio, ferro e comida. “Tem gente que joga coisa do prato, não come tudo. Então, se vejo uma sacola com restos de carne, feijão e arroz, pego e trago para casa; esquento tudo, jogo água. Faço uma reforma para poder comer”, diz ela. Quando dá sorte, pega ossos e gorduras de mercadinhos e açougues. “A gordura dá gosto no arroz, coloco por cima como se fosse um molho”, diz. Nem sempre é arroz novo; muitas vezes ela se alimenta com as sobras encontradas no lixo.

Mãe de três filhos, a catadora mora com uma pata de dois anos, a Chiquinha, para quem dá a sobra da sobra da comida. A pata fica sentada em uma cadeira logo na entrada de seu barraco, como se desse boas-vindas a quem chega. A ave foi encontrada sozinha na mata, e Maria Feliciano decidiu levá-la para ter uma companhia. Na mesma viela, mora a sua filha Glaucia com seus quatro filhos, de 13, 12, 9 e 2 anos. Glaucia recebe 350 reais por mês de auxílio emergencial. A mãe recebe 102 reais do mesmo programa. Analfabeta e sem aposentadoria, ela não tem outra renda.

Seu barraco tem três cômodos – banheiro, sala e quarto. Cama, cômoda, varal, privada, panelas e árvore de Natal com pisca-pisca, tudo ali foi encontrado no lixo. Há um mês, a catadora construiu o que chama de “fogão”: colocou grelhas em cima de blocos de sobras de obras. Essa cozinha improvisada fica a céu aberto, do lado de fora do barraco. Dentro de casa, ela tem um fogão a lenha, que não tem usado muito por não conseguir sair para recolher galhos para serem queimados.

Do lado de fora do barraco, Maria Feliciano tem um fogão improvisado a céu aberto – Foto: João Batista Jr.

 

Distante a 38 km da Praça da Sé, em um caminho que de ônibus pode levar mais de 3 horas, o Jardim Papai Noel é uma área quase rural. Maria Feliciano disputa comida em lixeiras com cavalos, gatos e cachorros. No dia em que a reportagem de piauí visitou o local, havia na viela onde ela mora dois cachorros famintos com as costelas à mostra procurando por comida.

As costas travadas e a impossibilidade de buscar comida no lixo fazem com que a catadora dependa da ajuda da Associação Unidos Comunitária Jardim Papai Noel. Fundada por Maria de Lourdes dos Anjos Pereira em 1998, hoje a entidade de 200 m2 é tocada por suas duas filhas: Ellen, de 29 anos, e Eidy Anne, de 32. Maria de Lourdes morreu em junho deste ano em decorrência de complicações após contrair o coronavírus – ela ficou 23 dias intubada, recebeu alta e, então, sofreu insuficiência renal. “Embora usasse máscara e tomasse todos os cuidados, a minha mãe não parou um minuto: ia levar cestas, leite e amparo para as pessoas que precisavam”, conta Ellen.

A entidade se mantém com doações e venda de roupas e sapatos por valores que vão de 1 a 10 reais, além de promover rifas de objetos doados, como jogo de esmaltes. Antes da pandemia, o número de pessoas cadastradas para receber doações era de 1 mil. Agora, saltou para 3 mil. “Estamos em uma região carente, mas passar fome e não ter o que comer… essas reclamações nunca foram tão fortes”, relata Ellen. “Tem gente que desmaia de fome.” O Jardim Papai Noel tem uma escola municipal e uma UBS. Há uma única quadra esportiva sendo construída, a menos de 300 metros do barraco de Maria Feliciano, onde se lê uma placa de agradecimento ao deputado federal Alexandre Leite e ao estadual Milton Leite Filho. Os dois são filhos de Milton Leite, presidente da Câmara Municipal de São Paulo, em parte eleito com votos amealhados entre os 232 mil eleitores de Parelheiros, de acordo com os dados do Tribunal Regional. “A fome choca e a total falta de infraestrutura também. Por isso, entre as prioridades do meu mandato estão as pavimentações e a construção de quadras, como tenho feito no Jardim Papai Noel e por toda Parelheiros. Esses espaços são os únicos locais de lazer que essas comunidades têm”, escreveu o vereador Milton Leite por meio de nota. Ele está em seu sétimo mandato; Maria Feliciano vive no mesmo barraco há vinte anos. 

 

Ela não está sozinha dentro da crise humanitária causada pela pandemia e aprofundada por ineficazes políticas governamentais. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional, 43,4 milhões de brasileiros não contam com quantidade suficiente de alimentos (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões passam fome (mais de 24 horas sem ter o que comer).

Nem todas as ruas do Jardim Papai Noel têm calçadas ou são asfaltadas. Há poucos comércios no bairro, a maioria deles são pequenas vendas, quitandas e oficinas mecânicas. Quem quiser comer em um self-service precisa andar 2 km. O sinal de celular ou de internet não existe. Se o morador não tem wi-fi, precisa subir em um morro para fazer a ligação.

O bairro de 20 mil moradores fica em uma área de proteção ambiental. Até os anos 1980, a região era uma área preservada de Mata Atlântica. Começou a surgir na metade dos anos 1980, quando uma imobiliária chamada Lote Legal, de Santo Amaro, passou a vender terrenos de 300 m2 por lá. O loteamento se chamava “Papai Noel”, daí a origem do distrito. O único sinal de ligação com a cidade era a linha de trem – por ali passava uma ferrovia que ligava a Estação Júlio Prestes, no Centro da capital, até Santos. A linha foi desativada em 1976. O trajeto dos trilhos se transformou em um córrego. “Minha família foi a quinta a chegar; em geral, vinham para cá migrantes de Minas e do Nordeste que estavam começando a guardar um dinheiro”, conta Abismael Pereira, vendedor de caixotes de madeira e pai de Ellen e Eidy Anne.

“Nunca trabalhamos tanto na vida como na pandemia”, conta Ellen. Ela nasceu e mora no Jardim Papai Noel há 29 anos. “Essa associação nasceu para capacitar e emancipar pessoas, de forma que tenham chance de trabalhar e se sustentar. Mas quando a fome bate, é a doação a coisa mais necessária.” Às quintas, o governo estadual envia 448 litros de leite integral para a entidade distribuir. Eidy Anne, sua irmã, formou-se em secretariado executivo bilíngue, administração de empresas e transporte e distribuição. “Volto todos os finais de semana no Papai Noel para fazer trabalho voluntário”, conta.

A Associação Unidos Comunitária Jardim Papai Noel se mantém com doações e venda de roupas e sapatos – Foto: João Batista Jr.

 

“Na cidade de São Paulo, 70% dos empregos se concentram no Centro expandido e na Zona Oeste, que juntos formam uma ilha onde moram apenas 20% dos paulistanos. Os outros 80% da população são jogados nas zonas Leste, Norte e Sul, sendo esta última a que mais cresce e onde fica Parelheiros. Esse crescimento se dá, muitas vezes, em áreas de preservação ambiental”, explica o jornalista Raul Juste Lores, especializado em urbanismo e arquitetura e autor do livro São Paulo nas Alturas. A atual população de São Paulo é de 12,4 milhões de habitantes, segundo o IBGE. “O desemprego tem muito a ver com fome, até por uma questão de distribuição. Servir alimentos em uma área tão espalhada, distante e sem infraestrutura como Parelheiros faz com que entregar insumos por lá seja mais difícil e custoso.”

Só este ano, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do município distribuiu 578 mil cestas básicas. No ano passado, foram 395 mil. Também tem ofertado 260 mil refeições por dia. São Paulo nunca teve tantas pessoas morando nas ruas, e o secretário Carlos Bezerra Júnior diz que planeja remodelar os abrigos para essas pessoas. “Se antes o perfil era majoritariamente masculino e solteiro, hoje vemos famílias inteiras, muitas delas com crianças pequenas, morando em barracas”, reconhece o secretário.

Previsto para acontecer apenas em 2023, um censo foi realizado em novembro para revelar o número de moradores de rua, seu perfil e as principais características. O resultado sairá no final de janeiro, mas a estimativa é de um crescimento de ao menos 20% (o censo de 2019 mostrava que 24.344 pessoas moravam nas ruas de São Paulo). “Vamos remodelar toda a forma de receber as pessoas nos abrigos. O modelo de juntar muita gente em um mesmo espaço, tratando pessoas de perfis diferentes como da mesma forma, não dá certo.” A prefeitura vai criar um sistema chamado de “housing first”, construindo vilas com casas de 12 m2s (para pessoas sozinhas) e 25 (para famílias), com tempo determinado entre entrada e saída para que possam ter autonomia. 

Além da fome, o Jardim Papai Noel sofre com as moradias precárias. Existem casas de alvenaria, mas muitas, como o barraco de Maria Feliciano, são de ripas de madeira. No banheiro sem esgoto, fezes e urina vão da privada para o córrego que corre a céu aberto do lado de baixo da casa. O sonho da moradora é construir uma casa de alvenaria, para parar de acordar durante a madrugada com barulho de cobra, rato e gambá pelo chão do barraco de terra batida. 

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