A garoa no comecinho da manhã de 26 de novembro – último sábado do mês – não espantou as dezenas de pessoas em frente à Capela Nossa Senhora Aparecida, na Vila das Torres, em Curitiba. Às 10 horas começaria a entrega de 150 cestas básicas a moradores da localidade, uma área de vulnerabilidade social onde predominam famílias que vivem da reciclagem. Uma senha recebida previamente de líderes comunitários garantia ao portador a entrega dos mantimentos. Quando viu a pequena aglomeração, o coordenador da ação, o padre Joaquim Parron Maria, fez sinal para que entrassem e, ao lado de seminaristas e voluntários, adiantou a distribuição dos alimentos. “A fome é uma necessidade urgente. Muitos já não tinham o que comer em casa, por isso vieram mais cedo. Quem tem fome, tem pressa”, disse o padre Parron, de 63 anos, repetindo o bordão com o qual o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou nos anos 1990 a Ação da Cidadania contra a Fome.
A ação na capital paranaense faz parte do projeto S.O.S Vila Torres, iniciado em março de 2020, quando a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil. Parron percebeu que o óbvio: os mais pobres sofreriam mais os efeitos da crise sanitária. Numa articulação com com líderes comunitários e voluntários, passou a arrecadar cestas básicas para distribuir às famílias mais necessitadas. A ideia inicial era de que o trabalho ficasse restrito à comunidade. Logo, no entanto, a iniciativa extrapolou os limites da Vila das Torres, passando a atender outras áreas periféricas de Curitiba, sobretudo ocupações em que vivem cerca de novecentas famílias em risco de despejo, como a Vila Marielle Franco.
Mesmo quando o ritmo de contágio do novo coronavírus começou a arrefecer, Parron se sentiu obrigado a estender o S.O.S Vila Torres. Se as consequências da pandemia já não eram tão severas, fenômenos como o aumento da inflação e o desemprego continuavam a atingir com mais força as famílias. Em dois anos e oito meses, o projeto já distribuiu mais de 56 mil cestas básicas. Em 2022, a média é 2 mil cestas doadas por mês. Dois galpões da capela servem de depósito aos pacotes de alimentos não perecíveis. “Isso aqui ficou parecendo um supermercado”, comparou o padre. Em outras ações, o projeto também distribuiu cobertores – nos períodos de frio – e marmitas.
Na manhã de 26 de novembro, enquanto via as famílias saindo com os fardos de alimentos em carrinhos, em bicicletas ou no braço, Parron esboçava um sorriso. “A fome foi uma presença muito concreta na pandemia. Pessoas que viviam ‘da mão para a boca’, ou seja, que mal tinham [dinheiro] para comer, sentiram um impacto muito duro e imediato. A fome é um assombro real para essas pessoas. Esse nosso trabalho da igreja, com entidades e voluntários, aliviou esse choque”, avaliou o missionário. “Nas ocupações, tínhamos casos de crianças que tomavam água para enganar a fome antes de dormir, porque não tinham o que comer. Era desumano. Quem diz que não existe fome, eu convido a visitar uma dessas comunidades. Vai ver famílias que simplesmente não conseguem comprar comida. Pergunte aí”, disse, apontando a fila de moradores que retiravam alimentos.
Entre eles, estava Vânia Aparecida dos Santos, de 41 anos. Ela e o marido vivem da coleta e venda de materiais recicláveis, atividade que lhes dá uma renda média de 1,1 mil reais por mês. O problema é que o rendimento vai quase todo para pagar o aluguel de 1 mil reais da casa em que moram e que serve de depósito de reciclagem. A cesta básica que puxava no carrinho de feira representava a possibilidade de pôr comida no prato pelas próximas semanas. Outra catadora, Nair Galdino, de 68 anos, também celebrava a ajuda. Apesar das dores provocadas “pela idade”, ela sai para catar papel duas vezes por dia, mas o dinheiro não tem sido suficiente nem para o essencial.
“Trabalhamos de sol a sol, mas o aluguel come todo o nosso dinheiro. Não tem jeito. Se não fosse a cesta, essa ajuda toda, a gente já tinha morrido de fome. A gente não tá conseguindo nem comprar o básico”, disse Santos. “O papel para reciclagem tá com o preço lá embaixo, mas a comida tá muito cara. Só sobe. Você viu quanto custa o leite, um pacote de arroz? Se não fosse isso [a cesta], ia ser muito difícil”, disse Galdino, apontando o fardo de mantimentos que levava para casa. Segundo o S.O.S Vila Torres, cerca de 80% das famílias da comunidade vivem da reciclagem.
Apesar da magnitude das doações, a ação coordenada por Parron não se restringe a distribuir cestas básicas às famílias em condição de vulnerabilidade. O projeto se estruturou em três degraus sequenciais: primeiro, saciar a urgência de quem tem fome; em seguida, dar autonomia às famílias, a partir do encaminhamento ao mercado de trabalho – por meio de cursos e feirões de empregos; e, por fim, estimular a conscientização social, por meio de ações de estímulo à cidadania.
“Como se diz, nós damos o peixe, mas também atuamos no sentido de dar a vara, para que eles possam pescar. São os nossos dois primeiros pilares. Mas para que o lago não se feche – porque o capitalismo selvagem é cruel –, é preciso dar mais um passo: fazer com que tenham consciência social e participem na sociedade. Às vezes, é preciso abrir esse lago onde outros irmãos vão pescar”, detalhou. “Nós aliamos essas três pontas, lembrando que fé, educação e consciência social são a chave para a libertação das pessoas”, acrescentou.
Em dois anos, o projeto encaminhou cerca de trezentas pessoas para vagas de trabalho, a maioria com carteira assinada. As ações são variadas: são desde cursos de informática e de mecânico a aulas com noções gerais para trabalhar no comércio ou como doméstica. No caso mais recente, doze jovens que fizeram um curso para aprender a instalar cabos de fibra óptica saíram contratados por uma empresa de internet. Em outra ponta, Parron faz a ponte com empresários e chega a promover feirões de emprego.
Muitas vezes a falta de qualificação é um entrave. No início do ano, uma rede de farmácia ofereceu quarenta postos de trabalho a serem preenchidos por jovens indicados pelo S.O.S Vila Torres. “Dessas, só oito vagas foram ocupadas. A rede exigia segundo grau completo e a maioria dos nossos jovens, pela realidade social desanimadora, não consegue ir além do 1º ou no 2º ano do Ensino Médio. A exclusão educacional também é gigantesca. Depois disso, em maio, fizemos uma parceria com o Sesi, que tem um programa para eles concluírem o segundo grau no ensino remoto”, contou o missionário.
Outro problema é que, como têm necessidades urgentes, muitos moradores não conseguem frequentar os cursos ou não veem como prioridade tentar uma formação. “Se a pessoa não tem o que comer, ela não vai querer assistir aula. Ela vai pegar o carrinho, sair para catar papel e ganhar 20 ou 30 reais por dia. É um dilema”, apontou Parron. A partir do ano que vem, o padre pensa em estruturar a ação, de modo a cobrar contrapartidas dos beneficiários mais jovens – com até 45 anos: para receber a cesta básica, eles terão que frequentar algum curso do projeto. “Mas precisamos criar condições para isso”, ressalvou.
O projeto também estimula o engajamento da comunidade. Parron promove uma série de encontros periódicos com lideranças e moradores. Em regra, há uma “formação bíblica”, em que o padre parte de textos que tenham a ver com a realidade local. Na última reunião, por exemplo, leu o capítulo 3 do livro Êxodo, que diz: “De fato, tenho visto a opressão sobre o meu povo no Egito, tenho escutado o seu clamor, por causa dos seus feitores, e sei quanto eles estão sofrendo”. A partir das leituras, o missionário aborda problemas concretos da localidade sobre uma perspectiva social, apontando que a condição de exclusão em que se encontram só será superada com a participação de todos. Com isso, têm surgido novas células de liderança. Quem conseguiu emprego a partir de iniciativas do projeto costuma participar, para apoiar os vizinhos. “Meus olhos brilham quando um faminto consegue um prato de comida ou quando um desempregado consegue trabalho. Mas o nosso terceiro degrau é o que me dá mais alegria: é quando a pessoa passa a ter consciência de sua condição e compreende que precisa participar para transformar a realidade”, disse o missionário.
Nascido em Presidente Prudente, no interior paulista, Joaquim Parron Maria provém de uma família de católicos não praticantes. Seus pais eram comerciantes, donos de uma pequena hospedaria e de um armazém de secos e molhados. Parron começou a trabalhar aos 14 anos, como contínuo em um banco. Nessa época, passou a fazer parte de um grupo de jovens da Igreja Católica, atraído pelas práticas esportivas e atividades musicais. Foi o atalho para que encontrasse sua fé e sua vocação. Convicto do caminho, decidiu tornar-se seminarista na Congregação do Santíssimo Redentor.
Já em Curitiba, como seminarista, ao longo da graduação em teologia, “ouviu os ensinamentos de Cristo” e se aproximou dos pobres: com dois colegas, foi morar em um casebre de madeira, no bairro Xaxim, que na época – na primeira metade da década de 1980 – era uma das mais remotas áreas periféricas da capital. Ingressou em movimentos populares e passou a participar das pastorais Operária e da Juventude. Com outros seminaristas, conseguiu organizar as famílias em um movimento que culminou com a prefeitura construindo moradias populares e uma creche na localidade.
Tinha – e tem até hoje – convicção de que a religião não podia se dissociar de propósitos de transformação social. “A minha ideia, na época, era experimentar a luta e o sentimento dessas pessoas, junto com elas. Eu estava me preparando não para atuar em sacristias e igrejas, mas para ter uma inserção nos meios populares e ajudá-los a ter uma vida digna. Meu encontro com Deus faz com que eu me preocupe com o meu irmão”, disse. “Se você pega o Evangelho, Jesus nunca esteve com imperadores. Ele foi ao encontro dos pobres, dos excluídos, dos doentes, dos mais vulneráveis. Hoje, Jesus certamente estaria com as pessoas da periferia, com os que estão em subempregos”, acrescentou.
Em 1987, após ter sido ordenado padre, Parron foi enviado por sua congregação a Bodoquena e, posteriormente, a Miranda, no Mato Grosso do Sul. Foi viver numa comunidade formada por camponeses sem terra em extrema vulnerabilidade. Pela pastoral, o missionário arrendou terrenos, que foram transformados em hortas comunitárias – cada uma administrada coletivamente por dez famílias. Parron também ajudou a comunidade na negociação que levou à constituição dos assentamentos Canaã e Sumatra, e os títulos da terra foram entregues aos moradores. “Foi um aprendizado. Muitos agrônomos das universidades se voluntariaram e passaram a levar saberes técnicos às famílias, que passaram a produzir de modo mais eficiente. Agregamos o conhecimento científico e a fé em um ato de solidariedade”, definiu.
De volta a Curitiba nos anos 1990, Parron concluiu mestrado em educação e, em seguida, ganhou uma bolsa de estudos para cursar doutorado nos Estados Unidos, na The Catholic University Of America. Após retornar ao Brasil, o padre foi encaminhado a Paranaguá, no litoral do Paraná, onde voltou para perto dos excluídos: promoveu um programa para levar capacitação a pessoas que moravam na faixa portuária. “A vantagem de ter feito mestrado e doutorado foi que a vivência acadêmica me ajudou a estruturar melhor o trabalho. Já não eram ações artesanais, mas profissionais. Na região do porto, levamos cursos de balanceiro, atendente, logística portuária e inclusão digital. O projeto se tornou referência”, relembrou.
Depois de ter passado oito anos como superior provincial dos Redentoristas no Paraná e Mato Grosso do Sul – um posto em que coordenava todos os cerca de cem redentoristas da congregação nesses estados –, Parron passou a morar no Seminário São Geraldo, a poucas quadras da Vila das Torres. Mesmo não sendo o responsável pela paróquia, foi inevitável a aproximação dele com a comunidade. Voltou com tudo ao trabalho de base.
O alcance do S.O.S. Vila Torres deu projeção a Parron, que se tornou uma espécie de padre Júlio Lancellotti paranaense. Na pandemia, eles passaram a trocar mensagens por WhatsApp e a se falar por telefone. Segundo Parron, o colega de batina costuma lhe dar dicas importantes de mobilização. Eles planejam fazer uma live em janeiro de 2023, compartilhando as respectivas experiências. “ É uma pessoa carismática, que tem uma disposição admirável. Uma noite, liguei para ele depois das 10 horas. Ele tinha acabado de chegar da rua. Um homem com quase 75 anos, que doa a vida pelos empobrecidos e que está sempre disposto a ouvir”, diz Parron sobre o colega. “Acho que só temos uma diferença. Ele também faz política partidária. Apesar de eu ter um lado, eu não levo isso para a luta”, observou.
Assim como Lancellotti, Parron também já começa a ser alvo de críticas por suas ações junto aos vulneráveis. Vez ou outra, lhe chegam mensagens ácidas por redes sociais ou algum recado enviado por algum interlocutor. Em ambas as modalidades, ele faz que nem ouve. O padre também já entrou em rota de colisão com agentes públicos. No começo do ano passado, o prefeito de Curitiba, Rafael Greca (PSD), enviou à Câmara um projeto de lei que previa multas a quem “distribuir alimentos em desacordo com os horários, datas e locais autorizados” pelo poder público. Na ocasião, o S.O.S. Vila Torres distribuía trezentas marmitas por semana a famintos e seria impactado pela decisão. Parron se levantou contra a proposta da prefeitura. Em entrevistas na tevê, disse que a iniciativa era uma tentativa de “criminalizar a caridade”.
“O prefeito achava que nosso trabalho mostrava algo que não existe. Que não havia fome em Curitiba. O projeto de lei era uma tentativa de não deixar meios para fazermos nosso trabalho”, afirmou. Posteriormente, o projeto foi retirado pela prefeitura. “Eu costumo dizer que a nossa obrigação principal é ensinar o povo a rezar. Se acabamos fazendo esse trabalho social é porque o Estado se ausentou das periferias. Nosso trabalho é supletivo ao poder público”, definiu.
O S.O.S. Vila Torres não é a única ocupação de Parron. Ele também leciona ética no Seminário Claretiano. Apesar de gostar da sala de aula – onde ele permanece no período da manhã –, sonha em ser liberado pela congregação exclusivamente para o trabalho social. “A Igreja se afastou das periferias. Precisamos voltar com urgência”, disse. “Como conduzo essa luta no contraturno, às vezes, chego em casa tarde da noite. Seria bom se pudesse ficar só no trabalho missionário. Essas ações criam um sentido de uma verdadeira missão. É como dizia madre Teresa: o que fazemos é uma gotinha no oceano, mas sem isso, o oceano teria uma gotinha a menos”, concluiu.