Cumpro tudo que prometo, sobretudo as represálias
Fala do personagem O Chefão, em Rainha Lira, de Roberto Schwarz
A fúria destruidora da administração de Jair Bolsonaro dirigida contra as instituições culturais e ao aparato que protege e incentiva a vida cultural no Brasil tem método próprio. Não é difícil identificá-lo, embora mesmo os detratores instalados no governo não o reconheçam, uma vez que a incompetência faz parte desse método: em meio ao desmantelo induzido da cultura, também a inépcia, inerte ou ativa, opera e destrói. Refiro-me aqui em especial ao tratamento dado à cultura pelo “bolsonarismo”, seja isso o que for: um movimento sociopolítico, um amálgama de ressentimentos nacionais, uma súmula de elementos deletérios de nossa cultura – como o “cafajestismo” –, uma bravata de personagens autoritários e toscos que tomam a brutalidade como atributo da liderança, a exemplo do Chefão citado na epígrafe deste texto.
No que diz respeito à administração da cultura pelo poder público, à extrema direita “falta pessoal”, como faltava no Portugal de Eça de Queirós. O fato de não dispor de “pessoal” nem de linhas programáticas elaboradas para a cultura, entretanto, não impediu o governo Bolsonaro de liquidar as políticas existentes, interromper projetos e adulterar programas – intencionalmente, por omissão ou por estupidez. A falta de objetivos e de pessoas capazes deu lugar a várias iniciativas destrutivas, inspiradas ora por surtos ideológicos, ora por vagas de ressentimento contra os “privilegiados” que supostamente estariam se beneficiando de recursos públicos para se projetar no campo da produção cultural.
Uma frase atribuída ao historiador Arnold Toynbee diz: History is just one damn thing after another (história é apenas uma maldita coisa atrás da outra). Vamos acompanhar o caminho de nossa maldição.
Tão logo começou o governo Bolsonaro, o Ministério da Cultura, criado em 1985, foi rebaixado ao status de Secretaria de Estado. Não era propriamente um fato novo. O presidente Fernando Collor tomou a mesma providência, em 1990, e foi até mais drástico: extinguiu repartições e serviços inteiros do ministério, e forçou à aposentadoria uma boa parte de seu corpo funcional. Collor, porém, manteve a secretaria vinculada à Presidência, enquanto Bolsonaro a fez peregrinar por vários ministérios antes de pendurá-la na pasta do Turismo.
Segue-se a tragicomédia da sucessão dos secretários da Cultura. Foram seis, escolhidos “aos soluços” por Bolsonaro, obedecendo à lógica de seus arranjos partidários (como Henrique Pires, jornalista ligado ao então ministro Onyx Lorenzoni), à marca da celebridade (como no caso de Regina Duarte) ou aos apelos dos chamados ideólogos (como ocorreu com Roberto Alvim). Alguns duraram semanas no cargo. O penúltimo secretário, Mário Frias, foi o mais longevo: permaneceu quase dois anos, talvez por ser o mais “sem noção”, sem brilho e sem opinião. Não oferecia nem confronto nem escândalo considerável, mas apenas o espetáculo constrangedor de seus erros ortográficos (ele agradece com “c” cedilha) e sua carência de cultura geral (em 2021, quando representou o Brasil na Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza, disse desconhecer quem era Lina Bo Bardi, arquiteta ítalo-brasileira cuja obra era homenageada no evento).
Com o tempo, aprendemos que a nulidade tem função essencial na administração Bolsonaro: é um modo de reverência ao poder. Por meio dela, procura-se eliminar ou neutralizar os programas, áreas de serviço e servidores indesejáveis. Sendo o bolsonarismo um projeto negativo, dirigido contra o que já existe, é algo de fácil execução: a simples negligência, a inação administrativa aliada à vigilância contra os inimigos internos, dá conta da maior parte do recado. Foi o que tomou conta de todo o sistema cultural (e não só).
Veja-se o caso da Lei Rouanet, que, por sinal, foi concebida no governo Collor (1990-92), na aurora da chamada abertura liberal, pelo então secretário de Cultura, o diplomata e ensaísta Sérgio Paulo Rouanet. Essa lei foi escolhida pelo bolsonarismo como o símbolo máximo da malignidade no patrocínio da cultura brasileira, um mecanismo de distribuir recursos aos privilegiados do mundo da criação (quase todos esquerdistas, na visão da extrema direita), em detrimento dos criadores iniciantes e de poucos recursos.
Ora, a Lei Rouanet não foi feita para atender determinado grupo de criadores ou agentes culturais – fossem eles famosos ou novatos, fossem de esquerda ou de direita –, mas sim para dinamizar a produção cultural em geral e ampliar o acesso da sociedade à cultura. Em uma visada liberal, a lei inclusive limitou a intervenção do Estado ao criar o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), com suas três linhas de incentivo à cultura.
A primeira foi o Fundo Nacional de Cultura (FNC), cujos recursos provieram do Tesouro Nacional, da arrecadação de concursos e loterias federais, dentre outros. Esses recursos teriam como finalidade atender o fazer artístico de caráter não comercial e seriam direcionados aos agentes culturais depois do planejamento e da decisão colegiada de todas as unidades vinculadas à Secretaria Especial de Cultura, como a Fundação Biblioteca Nacional, a Fundação Casa de Rui Barbosa e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A segunda forma de incentivo foi o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart), estruturado e regulado a partir de recursos privados, obtidos por meio da Comissão de Valores Mobiliários. A terceira foi o incentivo a projetos culturais por meio de renúncia fiscal, também denominado mecenato.
Mas nem tudo funcionou como desejado desde que a Lei Rouanet foi promulgada em 23 de dezembro de 1991. O FNC teve seus recursos desviados para suprir necessidades de investimento de órgãos vinculados ao governo federal que deveriam normalmente ser financiados pelo Orçamento da União. O Ficart, por sua vez, revelou-se incapaz de oferecer atrativos rentáveis para o investimento privado. Das três iniciativas, apenas o mecenato ganhou consistência e continuidade. E, por consequência, a Lei Rouanet é identificada exclusivamente com essa forma de incentivo.
A regulação do mecenato é simples: o interessado em obter um financiamento para um produto cultural inscreve seu projeto na Secretaria de Cultura, apresentando orçamento e cronograma de produção. O projeto é repassado à Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic), presidida atualmente pelo ministro do Turismo e composto por representantes do setor empresarial e do mercado cultural, tais como entidades de artistas e produtores, além dos presidentes das entidades vinculadas ao ministério: o Iphan, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) e a Fundação Casa de Rui Barbosa.
O principal papel da Cnic é atestar a viabilidade da proposta, ou seja, se as suas estimativas de custos e de execução são apropriadas e se o projeto tem relevância cultural e contrapartidas sociais adequadas. De posse desse atestado, o proponente procura um patrocínio no mercado, pois a Secretaria de Cultura não emite ordem de pagamento. O patrocinador é ressarcido indiretamente pelo Tesouro, ao ter abatido de seu imposto o patrocínio empenhado.
O volume dos recursos aportados pelo mecenato indica que promoveu uma verdadeira dinamização da economia da cultura. Um estudo da Fundação Getulio Vargas divulgado no Exame Fórum Cultura e Economia Criativa em dezembro de 2018 mostra que, entre 1993 e 2018, a lei gerou 31,2 bilhões de reais em renúncia fiscal (em valores corrigidos), soma que não somente retornou aos cofres públicos como gerou outros 18,6 bilhões de reais, causando um impacto econômico total de 49,8 bilhões de reais. Dados da Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura e da Receita Federal (obtidos por meio de relatórios do Tribunal de Contas da União) mostram que entre 2006 e 2020 a captação de recursos não ultrapassou, em média, 86% da renúncia fiscal disponível, o que indica que não foi por falta de recursos que a Cnic rejeitou projetos.
Certamente a Lei Rouanet, tal como foi formulada, dá lugar a desigualdades. De imediato, vê-se que ela favorece as iniciativas que têm condições de apresentar um projeto dentro dos padrões definidos pela Cnic e que seja mais atraente ao patrocinador. Produtores culturais que operam nos grandes centros econômicos dispõem de um número maior de eventuais financiadores e são provavelmente mais qualificados para responder às exigências legais. Não é por acaso que boa parte dos beneficiários da Lei Rouanet estejam localizados no Sudeste do país.
A um grande financiador, certas iniciativas parecem mais aptas a serem adotadas e identificadas à sua marca, como a de algumas celebradas companhias de dança ou de teatro. Por outro lado, alguns trabalhos de restauração e conservação de edificações (prédios históricos, jardins, museus) têm mais dificuldade de encontrar apoio. Para tais projetos, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) direcionou verbas especiais durante os governos Lula e Dilma Rousseff, o que vale a pena destacar.
A Lei Rouanet existe e funciona há quase três décadas e tem contribuído para expandir e dinamizar a criação e produção cultural. Não deveria ter sua amplitude diminuída, sobretudo por grupos esquentados por ideologias ou ressentimentos. Mas foi o que aconteceu: em abril de 2019, logo no início do governo Bolsonaro, em uma demonstração de força, o presidente reduziu de 60 milhões para 1 milhão de reais o valor máximo permitido de captação para cada projeto. O valor máximo que pode ser captado por empresa, que também era de 60 milhões, passou para 10 milhões de reais à época. Neste ano, o valor a ser captado por empresa caiu para 6 milhões de reais. Já o valor limite para captação por projeto passou a levar em conta o tipo de atividade cultural. Os valores que podem ser pagos aos artistas foram também afetados para bem abaixo do permitido pela Lei Rouanet, que seguia de perto a escala do mercado. No caso de apresentações de orquestras, por exemplo, o limite que pode ser pago ao músico por apresentação passou de 2,25 mil para 3,5 mil reais, e para o maestro caiu de 45 mil para 15 mil reais.
Essas medidas foram anunciadas por Mário Frias e Bolsonaro como um corretivo aos privilégios das elites intelectuais e artísticas. Na verdade, as medidas subvertem o sentido e a escala da Lei Rouanet, que deixa de ser um mecanismo central da política de dinamização dos investimentos culturais e se transforma em um programa diminuto, similar às concessões de bolsas de estudo.
A Secretaria Especial de Cultura assumiu o conjunto de administrações do antigo ministério, que basicamente se estrutura em quatro fundações: Funarte, Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), Fundação Cultural Palmares (FCP) e Fundação Biblioteca Nacional (BN). E três autarquias: o Iphan, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).
Todas essas entidades foram atravessadas pela faina da demolição da cultura do bolsonarismo, mas o único dirigente que se notabilizou por tornar explícita sua política destrutiva foi Sérgio Camargo, ex-presidente da Fundação Cultural Palmares, que se exonerou em março passado para ser candidato a deputado federal. Ele se dedicou a combater ou a subverter radicalmente o que determinava o artigo 1º da Lei de 22 de agosto de 1988 que criou a fundação, dizendo que ela deve “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”.
Camargo agiu sempre de maneira agressiva e atabalhoada, sem programa ou direção claros, se preocupando sobretudo com negar que o racismo seja uma marca da história brasileira e criticar as conquistas realizadas pelos movimentos negros e seus expoentes. É da lavra dele uma série de enunciados de almanaque que emitiu durante a sua gestão, como “A escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes” ou “O Brasil tem racismo nutella; racismo real existe nos Estados Unidos”. Mas Camargo não é um mero frasista. Sua violência contra a própria raça chegou ao ponto de retirar da lista de Personalidades Negras da fundação os nomes do músico Milton Nascimento, da ex-ministra Marina Silva e da deputada Benedita da Silva (PT-RJ).
A violência também atingiu o Iphan, atacado pelo próprio presidente Bolsonaro, que em dezembro do ano passado declarou na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, num atentado de plena consciência à memória e ao patrimônio brasileiros:
Tomei conhecimento que […] uma pessoa conhecida, Luciano Hang, estava fazendo mais uma loja e apareceu um pedaço de azulejo durante as escavações. Chegou o Iphan e interditou a obra. Liguei para o ministro da pasta, né? ‘Que trem é esse?, porque eu não sou tão inteligente quanto meus ministros. ‘O que é Iphan?’, com ‘ph’. Explicaram para mim, tomei conhecimento e ripei todo mundo do Iphan.
A construção de uma filial da rede de lojas Havan, do empresário Luciano Hang, foi suspensa em 2019 no município de Rio Grande (RS) por ter sido descoberto no local das obras um conjunto de objetos de grande interesse arqueológico. Após a reclamação de Hang, apoiador de Bolsonaro, ele demitiu a presidente do Iphan, Kátia Bogéa. Antes, funcionários já haviam sido afastados de certas funções e alguns dos serviços interrompidos. Também o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, órgão máximo do Iphan, ficou paralisado durante meses.
O uso habitual do verbo “tombar” e suas variantes não é fato trivial. É sinal da popularização de um ato de poder governamental outorgado ao Iphan quando foi criado, em 1937, e que lhe concede o direito de reconhecimento e proteção do patrimônio cultural. “Tombamento” tornou-se sinônimo de valor, de bem público. Os bens culturais tombados são na sua maioria compostos de coisas produzidas pelo homem – edificações, monumentos etc. –, mas podem igualmente ser espaços naturais que tenham, por exemplo, ressonância na história brasileira, como a Costa do Descobrimento e a Reserva da Mata Atlântica nos estados da Bahia e do Espírito Santo. O poder regulatório do Iphan nesta matéria o coloca frequentemente em oposição a agentes econômicos importantes, como investidores imobiliários e produtores agrícolas, cujos projetos são obstaculizados por entraves derivados dessas medidas de proteção.
Os dois exemplos citados – o do presidente da Fundação Cultural Palmares e o do presidente da República com relação ao Iphan – dão a medida do descaso e descalabro que atingiram a cultura do país nos últimos anos.
Enquanto isso, durante todo o governo Bolsonaro, os organismos ligados à Secretaria Especial de Cultura mantiveram em geral uma distante e inútil postura, como no verso de Joaquim Cardozo: “Passaram como a nuvem sobre a batalha”. De onde vieram os seus dirigentes? Parecem ter saído de uma velha história nordestina: ao ser perguntado por que não vendia umas de suas fazendas de terras “tão ruins que não davam nem pra criar cabra”, um coronel do interior respondeu: “Fazenda não se vende, fazenda pode ser muito útil: serve pra esconder amigo, serve pra criar filho bobo”. As instituições da Secretaria de Cultura são hoje similares a essas fazendas, onde se guardam os bobos, no caso como dirigentes. Nelas, a inércia improdutiva se combina perversamente com o assédio moral constante. O resultado é a dissolução progressiva, modorrenta, quase silenciosa desses organismos, como está ocorrendo com a Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.
A Casa Rui, como é chamada pelos seus funcionários, nasceu em 1930, no governo Washington Luís, ao apagar das luzes da República Velha. Entre os percalços da nossa vida política, andou um bocado de caminho no velho solar situado no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Viveu a Revolução de 1930, alcançou o Estado Novo, chegou à ditadura militar e vem percorrendo agora o tempo já razoavelmente longo da redemocratização.
No início, a instituição tinha como objetivo precípuo a divulgação da obra e vida de Rui Barbosa, a preservação da sua antiga residência, inclusive a biblioteca e o arquivo do grande brasileiro, e a publicação de seus escritos. O historiador Américo Jacobina Lacombe, que dirigiu a entidade de 1939 até 1993, ano em que morreu – imprimiu um sentido mais amplo a essa missão. De simples museu, a Casa Rui se transformou progressivamente no que é hoje: uma fundação cultural que congrega iniciativas de reflexão e debate acerca da cultura brasileira, por meio de um importante centro de memória, que reúne acervos de importantes escritores, como Cruz e Souza, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e muitos outros.
O quadro funcional de dirigentes da fundação contou com pesquisadores e intelectuais de renome, como os cientistas políticos Mário Machado e Wanderley Guilherme dos Santos, que foram seus presidentes, e os historiadores José Murilo de Carvalho e Francisco de Assis Barbosa. Assim, a Casa Rui se tornou também um centro de pesquisa, cujos trabalhos são respeitados por toda a comunidade acadêmica e intelectual, e criou uma aura própria, capital apreciável em meio à crise de credibilidade que atinge o setor público no Brasil.
Em vista de tais antecedentes, a designação pelo governo federal de Letícia Dornelles – que se apresenta como teledramaturga – para dirigir a Casa Rui caiu como uma surpresa terrível. A nomeação, em 2019, foi acompanhada de uma série de pequenas notas que Dornelles publicou nas redes sociais, alardeando que estudara “a fundo” Rui Barbosa e a instituição nos meses precedentes. Ela contou também ter feito aulas de administração pública, inclusive um curso (de algumas semanas) sobre corrupção com Marcelo Bretas, o juiz da Lava Jato no Rio de Janeiro. Uma manifestação tão pueril de autoconfiança não favorecia a sua apresentação.
Logo que Dornelles assumiu a presidência da Casa Rui, sinais mais inquietantes foram aparecendo: filtragem dos eventos que deveriam ser postados no YouTube da fundação, obsessão pelo detalhamento dos temas cogitados para os seminários do ano seguinte, controle pessoal das redes sociais da entidade, com o apagamento de comentários do público que não a favorecessem, comprometendo a liberdade de expressão.
Em 8 de janeiro de 2020, menos de três meses depois da sua posse, por conivência com o (ou orientação do) então secretário especial de Cultura, Roberto Alvim – conhecido pela encenação nazista em sua primeira aparição pública –, a nova presidente promoveu a degola da cúpula do Centro de Pesquisa da Casa Rui. Exonerou, além de seu diretor, todos os chefes de setores, sem negociação prévia e sem apresentar nomes alternativos, compatíveis para o desempenho das funções. No mesmo dia e seguindo o mesmo molde, ela demitiu a chefe da Divisão de Planejamento e Orçamento da fundação.
A ação gerou comoção entre representantes e colegas de instituições parceiras, aos jornais de grande circulação e à comunidade acadêmica. A Associação de Servidores da Fundação Casa de Rui Barbosa organizou, então, no dia 13 de janeiro, um ato em defesa da casa, no qual servidores se reuniram no jardim da instituição. A participação de apoiadores externos na manifestação foi impedida por Dornelles, que mandou fechar os portões dos jardins. A partir de então, a administração adotou uma ofensiva mais sistemática e agressiva.
Em julho de 2020, a presidente assinou uma portaria que proibia a participação de servidores em assembleias convocadas pela Associação de Servidores da Fundação Casa Rui Barbosa, no horário das 8 horas às 18 horas, bem como quaisquer reuniões nas dependências da instituição. Em outubro, foram publicadas portarias definindo as comissões externas que lidariam com quatro processos administrativos disciplinares contra servidores – algo sem precedentes em toda a história da fundação.
À época, ocorreu o desmantelamento quase total do Centro de Pesquisa. Depois da demissão das suas chefias, foi extinto o Centro de Proteção a Refugiados e Imigrantes (Cepri), uma clínica jurídica gratuita para refugiados e migrantes no Rio de Janeiro, que era também um lugar de estágio e treinamento de estudantes interessados no tema. Em colaboração com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o Cepri havia assinado um convênio com o Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados, por meio da qual as duas instituições passaram a integrar a Cátedra Sérgio Vieira de Mello.[1] Ocorreu também a liquidação de fato do Setor de Políticas Culturais. Sua dirigente foi destituída e os pesquisadores da questão, que estavam ali como convidados, foram devolvidos às suas repartições de origem. Vale lembrar que esse setor construiu o projeto de criação de uma cátedra Unesco de políticas culturais, aprovada pela agência da ONU em 2017.
Em seu primeiro ano de mandato, Letícia Dornelles promoveu um total de quinze exonerações. Em um pouco mais de dois anos de gestão, a Casa Rui já teve três diretores executivos, sete coordenadores de Gestão e Administração e seis assessores de gabinete. Quando a atual presidente assumiu, a fundação tinha pouco mais de uma centena de servidores permanentes – que hoje são 77 (considerando-se também o número de pessoas afastadas por aposentadoria, licença médica e outros motivos).
Na gestão de Dornelles, tudo que depende de decisão administrativa acontece de forma arbitrária, sem consulta às chefias e servidores envolvidos, sem estudo prévio, e, sobretudo, sem consultar os objetivos maiores da instituição.
Toda essa roda-viva administrativo-persecutória lembra o poema O Gaúcho, do pernambucano Ascenso Ferreira:
Riscando os cavalos!
Tinindo as esporas!
Través das coxilhas!
Sai de meus pagos em louca arrancada!
– Para quê?
– Pra nada!
O resultado do trabalho substantivo da Casa Rui durante a presidência de Dornelles foi pífio. Caracterizou-se pela ausência do quadro de pesquisadores permanentes da instituição, pelo amadorismo da preparação, pela trivialidade com que os temas eram tratados. As mesas-redondas sobre autores brasileiros (Clarice Lispector, Cora Coralina e Mario Quintana), comandadas pela presidente, tiveram um nível constrangedoramente escolar.
O jornalista Guilherme Fiuza, bolsonarista de primeira hora, foi convidado a dar uma conferência sobre “o que esperar do país em 2020”. Membros do Ministério Público compareceram a uma mesa-redonda sobre “Ética no serviço público”, onde sugestivamente a ênfase era em como enquadrar servidores. Outra conferência, anunciada desde o começo da nova gestão como um debate sobre o liberalismo de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, se deu como mera exibição de imagens, narrada por Dornelles. Após a apresentação, uma banda brasileira executou um repertório de músicas norte-americanas nos jardins.
E por aí vai.
Resta saber se, no processo destrutivo inoculado na Fundação Casa de Rui Barbosa, a incompetência não pesa tanto quanto o furor militante.
[1] A cátedra Sérgio Vieira de Melo da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) pode ser obtida por instituições de educação superior que prestam no mínimo três tipos de serviços de ensino, pesquisa e extensão sobre e para os refugiados. A instituição creditada com a cátedra passa a participar em parceria com a ONU de atividades exercidas em prol dos refugiados no país. O Cepri foi criado no intuito de ser uma clínica jurídica para formar estudantes universitários na prática do direito do refugiado.