Seu Quiqui transformou o fundo do quintal em um paraíso. No punhado de terra que herdou de seus familiares, ex-escravizados fugidos de engenhos do Maranhão, o quilombola de 57 anos plantou macaxeira e pés de manga, graviola, cupuaçu, laranja-lima, café e limão. “Se eu não conseguir colher tudo dessa roça, um dia meus netos irão”, costumava dizer, satisfeito.
No vilarejo onde vivia, batizado de Cedro, os moradores preparam a comida em fogareiros de carvão. Para evitar que a fumaça tomasse conta de sua casa, Quiqui instalou o dele num casebre de tábua, revestido com telha de fibrocimento e construído no quintal, perto da roça. A edificação não é perfeita: tem colunas tortas e feixes de madeira por onde quem está fora consegue ver o que se passa dentro. Como o quilombola não instalou uma rede de iluminação nos arredores, o lugar fica um breu à noite. Por isso, seus familiares aproveitam o dia para fazer as refeições. Quando o sol se põe, recolhem-se imediatamente em casa.
Na noite de 3 de janeiro passado, Seu Quiqui – uma espécie de líder comunitário – fugiu da rotina e ficou com uma neta no casebre depois do anoitecer. A menina de 10 anos, assim como todas as crianças do povoado, o chamavam de “papai”. Foi justamente o que ela gritou naquela segunda-feira, por volta das 20 horas, quando um tiro de pistola atravessou uma das brechas do casebre e atingiu o tórax de Seu Quiqui. Atordoada, a garota não percebeu que, de sua perna direita, também jorrava sangue.
As balas que atingiram avô e neta partiram da roça. Dois homens estavam escondidos ali, no meio das árvores, e bateram em retirada logo após os disparos. A neta arrastou o avô para casa, onde outros nove familiares viam tevê. Ligaram para o Samu e, pouco mais de duas horas depois, a menina estava em um hospital de Arari, no interior do Maranhão. Mais grave, o quadro de Seu Quiqui exigia intervenção cirúrgica. Ele foi transferido para o Hospital Municipal Dr. Clementino Moura, em São Luís, a 154 km de sua casa.
Cedro é um dos diversos vilarejos situados no município de Arari. Desde 1991, integra a Área de Proteção Ambiental da Baixada Maranhense, que pertence à Amazônia. Quando tentam listar as belezas do povoado, os cerca de trezentos moradores mal sabem por onde começar, mas nunca deixam de mencionar uma particularidade: no inverno, cai tanta chuva que os lagos transbordam e inundam os caminhos extensos que cortam o lugarejo, transformando-os em finas artérias de terra. De ambos os lados da área inundada, os peixes pulam fora da água. Começa, então, a temporada de fartura.
No entanto, faça chuva ou faça sol, predomina ali um clima de medo. Isso porque as terras historicamente ocupadas pelos quilombolas são disputadas e invadidas por fazendeiros. Entre janeiro de 2020 e outubro de 2021, quatro líderes dos camponeses foram assassinados em Cedro. Ninguém sofreu punição. Às 7h30 do último dia 8 de janeiro, o número de vítimas saltou para cinco. José Francisco Lopes Rodrigues, o Seu Quiqui, morreu no hospital.
“O caso de Arari escancara a inoperância do governo maranhense diante da violência no campo”, diz Marcia Palhano, coordenadora estadual da Comissão Pastoral da Terra. Segundo um levantamento do grupo, o Maranhão acumula mais mortes ocasionadas por conflitos fundiários que qualquer outro estado. Apenas em 2021, nove camponeses foram assassinados por lá. Três eram quilombolas. Desses, dois moravam no mesmo povoado que Seu Quiqui. “São mortes presumíveis”, lamenta Palhano. “As autoridades recebem sucessivas denúncias, mas não fazem nada, e as pessoas continuam morrendo.”
As terras de Arari começaram a ser apropriadas por pecuaristas em meados da década de 1970. À época, a região ainda não havia sido reconhecida como uma Área de Proteção Ambiental, embora já fosse ocupada por quilombolas, que nunca conseguiram demarcar oficialmente o território como um quilombo. Nem esse histórico, nem as autoridades impediram que os fazendeiros recém-chegados instalassem cercas elétricas no campo e, pouco mais tarde, levassem búfalos para ocupar as partes inundáveis da Amazônia maranhense.
O que se seguiu foi um pesadelo. Os animais reproduziram-se rapidamente, gerando uma série de impactos negativos para os moradores, a fauna e a flora locais. Os rebanhos destruíram roças de subsistência e quebraram canoas de pescadores, além de esmagar os peixes e poluir as lagoas com fezes. “Dezenas de famílias quilombolas passaram fome”, lembra o advogado ambientalista Luís Antônio Pedrosa, que há 28 anos acompanha a situação de Arari. “Para as crianças chegarem à escola, os pais tinham que levá-las em lombos de cavalo. Do contrário, os pequenos corriam o risco de ser atacados por búfalos no meio do caminho.”
Em 2017, depois de se reunir com ambientalistas, a administração do governador Flávio Dino (PSB) criou a Operação Baixada Livre para impedir a instalação de novas cercas ilegais e suprimir as já existentes nos campos da Baixada Maranhense. O plano mencionava as consequências da ocupação irregular e reiterava a necessidade de responsabilizar os invasores por infrações à legislação ambiental. Naquele mesmo ano, agentes do governo foram aos povoados e retiraram algumas cercas. Pouco tempo depois, desapareceram, sem deixar qualquer sinal de que voltariam.
Em 2018, porém, houve uma reviravolta. É comum que os camponeses de Arari circulem pelo Maranhão para vender a farinha de mandioca que produzem nas roças. Em viagens a Anajatuba, município vizinho, eles ouviram falar do movimento social Fóruns e Redes de Cidadania, que promove a retirada de cercas ilegais na região. Uma fagulha de destemor se alastrou por Cedro e outros vilarejos. Em poucos meses, os quilombolas se articularam com líderes do movimento social e destruíram parte dos cercados, o que forçou os fazendeiros a levar embora dezenas de búfalos.
“A região nunca mais foi a mesma”, afirma Pedrosa. “Os camponeses recuperaram um pouco da qualidade de vida que tinham perdido havia anos e, por isso, não pretendem recuar. Os fazendeiros ficaram enfurecidos.” Dali em diante, começaram a pipocar denúncias de invasões aos povoados e histórias de quilombolas assassinados.
Todos os dias, religiosamente às 14 ou 18 horas, um carro da Polícia Civil transita por Cedro. Com o veículo em movimento, os policiais correm os olhos pelo lugarejo e seguem a viagem. A ronda diária é o único contato usual que os quilombolas têm com as autoridades de segurança. Desde o início da pandemia, em março de 2020, até o segundo semestre de 2021, Arari ficou sem delegado e investigadores. Apenas um escrivão continuou na delegacia. Os demais agentes só retornaram depois que a Promotoria do município acionou a Justiça. Na noite do ataque contra Seu Quiqui, dois policiais compareceram ao quilombo, mas se recusaram a entrar na mata para procurar os atiradores. Disseram se sentir inseguros.
Aos advogados e militantes que acompanham a situação de Cedro, a polícia explica que as mortes de camponeses locais ainda não foram investigadas por causa do tempo que a cidade permaneceu sem delegado. Ao longo de 2021, dois vizinhos de Seu Quiqui, os agricultores Antônio Gonçalo Diniz, de 70 anos, e João de Deus Moreira Rodrigues, de 51, também foram assassinados. Em dezembro, três homens armados invadiram a casa do irmão de um dos mortos. O lavrador conseguiu se esconder e sobreviveu. Todas as cinco vítimas fizeram parte do levante para retirar as cercas dos fazendeiros no povoado.
A Polícia Civil do Maranhão informa que já instaurou inquéritos para apurar os casos de Seu Quiqui, Diniz e Moreira Rodrigues. Também diz que, por ora, as investigações apontam que pelo menos um dos assassinatos não está relacionado a questões fundiárias. Seria justamente o de Seu Quiqui. Uma desavença entre ele e o autor do crime teria levado ao homicídio, mas a família da vítima não avaliza essa versão.
Em visita ao Brasil no fim do ano passado, um representante da Organização das Nações Unidas, Jan Jarab, esteve com moradores de Cedro e soube das sucessivas ameaças à vida dos quilombolas. Semanas depois, no dia 24 de janeiro, a ONU divulgou um comunicado em que condena os assassinatos de ambientalistas no Brasil e pede urgência na investigação dos crimes. Como exemplos, citou os casos de Seu Quiqui e de uma família morta em São Félix do Xingu, no Pará, em 9 de janeiro. Os corpos de pai, mãe e filha foram achados pelo primogênito do casal nos arredores de onde viviam. As três vítimas tocavam um projeto de criação e soltura de quelônios no Rio Xingu. Em nota, a Polícia Civil do Pará afirmou que está realizando todos os procedimentos cabíveis para a elucidação do crime e que o inquérito sobre os assassinatos será concluído “dentro do prazo necessário”. A corporação, no entanto, não especificou tal prazo.
A Promotoria de Arari recebeu, em agosto de 2019, uma representação criminal com os nomes de mais de cinquenta pecuaristas que ocupam irregularmente a Área de Preservação Ambiental da Baixada Maranhense. O documento solicitava a abertura de um inquérito sobre as possíveis violações à lei. “Foi mais uma das nossas tentativas de chamar atenção para o caos que se instaurou em Cedro, mas nada aconteceu”, diz Iriomar Teixeira, signatário do documento e assessor jurídico do movimento Fóruns e Redes de Cidadania. O advogado acredita que as denúncias não surtem efeito porque os fazendeiros têm conexões com funcionários do Judiciário maranhense. “Há um jogo político que impede o Estado de cumprir o seu dever.”
Relatos como o de Teixeira coincidem com os de Luís Antônio Pedrosa e moradores de Cedro que falaram à piauí sob a condição de anonimato. Eles dizem que as terras foram indevidamente concedidas aos fazendeiros por um subprocurador e uma desembargadora do Maranhão. “Quando a Operação Baixada Livre começou a se aproximar dessa gente poderosa, o governo estadual imediatamente suspendeu as inspeções e retiradas de cercas”, diz Teixeira.
A Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular rechaça a declaração do advogado e explica que ações judiciais, e não o governo, interromperam a operação. Por sua vez, a pasta de Meio Ambiente e Recursos Naturais enfatiza que, quando recebe denúncias de ilícitos em regiões de proteção ambiental, logo destina equipes para realizar a fiscalização.
A Secretaria de Segurança Pública não explicitou quais medidas tomará com o intuito de proteger os familiares das vítimas e os moradores de Cedro que se sentem em perigo. O governador Flávio Dino nunca se manifestou sobre os assassinatos dos quilombolas da região. A piauí perguntou se ele gostaria de deixar um recado aos parentes dos mortos, mas não obteve nenhuma resposta. A Associação dos Criadores do Estado do Maranhão tampouco se pronunciou a respeito dos homicídios.
No dia 7 de janeiro, pela primeira vez depois do atentado, Seu Quiqui conseguiu falar com a família por videochamada. Ainda se encontrava no hospital e demonstrou esperança. Disse que melhoraria em breve e voltaria para casa. Também quis saber como estavam os cinco filhos biológicos e os sete de criação, os oito netos, os dois bisnetos e os vinte afilhados. “Cadê a minha guerreira? Você continua corajosa?”, perguntou à neta que o acompanhava no dia do crime. Mas a menina não estava por perto durante a ligação. Depois do ataque, ela não teve coragem de retornar à casa em que cresceu. Embora se sinta bem fisicamente, segue abalada e com medo. Na derradeira conversa com o avô, no dia 3 de janeiro, ele estava prestes a entrar na ambulância e partir para o hospital de São Luís.
Poucas horas após a videochamada, já no dia 8, o quilombola morreu. A causa oficial da morte foi insuficiência respiratória.