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Um remédio que evita a internação

Eli Lilly anuncia que, em testes clínicos, um anticorpo monoclonal criado pelo laboratório reduziu em 72% internações por Covid-19; chineses também avançam nessa terapia

| 30 set 2020_17h55
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No 52º episódio do podcast Luz no fim da quarentena, José Roberto de Toledo e Fernando Reinach falaram sobre a terapia com anticorpos monoclonais, realizada pelo laboratório Eli Lilly, que reduziu em 72% as internações por Covid-19. Ouça o episódio completo aqui.

José Roberto de Toledo: O tratamento com anticorpos monoclonais contra a Covid-19 entrou em fase de testes clínicos e os primeiros resultados foram bem promissores. Houve uma redução de 72% no número de pacientes que precisaram de internação hospitalar em comparação ao grupo de controle que recebeu placebo – uma substância inócua em vez dos anticorpos. Esse foi o resultado anunciado pela Eli Lilly no estudo com 450 casos de Covid. Porém, o laboratório ainda não divulgou os dados detalhados da pesquisa, o que é sempre motivo de preocupação. Mas Fernando Reinach está animado com essa terapia e explica como ela funciona, para quem ela se aplica e quanto ela pode custar.

Olá, doutor Fernando Reinach. Vamos falar então sobre esse estudo que você destacou, que saiu na edição do dia 18 de setembro da revista Science. É um estudo feito por pesquisadores chineses, que trata de um tema que a gente já abordou, mas que agora parece que avançou sensivelmente, que são as terapias com anticorpos monoclonais. É isso?

Fernando Reinach: É isso, Toledo. O que aconteceu é o seguinte: conversamos sobre esses anticorpos que bloqueiam a entrada do vírus na célula lá atrás, e agora os chineses, e outros trabalhos também, mostraram como ocorre exatamente esse bloqueio, deram todos os detalhes de como se faz o anticorpo, como ele bloqueia e tudo mais.

José Roberto de Toledo: O que é importante na ciência, porque não é só uma relação de correlação, não é só uma questão estatística, é uma relação causal mesmo.

Fernando Reinach: Exatamente. E a gente sempre sabia, todo mundo sabia, que isso mais cedo ou mais tarde ia virar um medicamento. E hoje, por coincidência, a Eli Lilly anunciou os primeiros resultados de um teste clínico com um anticorpo desse.

José Roberto de Toledo: Eli Lilly é um laboratório, né?

Fernando Reinach: É um dos laboratórios grandes. E os resultados são muito promissores. Para adiantar, para que as pessoas não fiquem nervosas, reduz em 72% o número de pessoas internadas quando se trata com uma única dose.

José Roberto de Toledo: Bom, vamos começar então pelo mecanismo, vamos explicar como é que funciona esse anticorpo monoclonal.

Fernando Reinach: Funciona assim: lembra que a gente já sabe que transfusão de plasma de uma pessoa para outra protege contra doenças?

José Roberto de Toledo: Lembrando que o plasma é a parte branca ou incolor do sangue.

Fernando Reinach: Depois que você tira as hemácias, os glóbulos brancos. E sabíamos também que, se você pegar anticorpos contra Sars-CoV-2 produzidos em cavalo, eles também protegem. Então todo mundo sabia que as pessoas que pegam a doença produzem anticorpos que bloqueiam a entrada do vírus.

José Roberto de Toledo: Quer dizer, bloqueia a entrada na célula, né? O vírus pode até entrar no nariz ou na boca da pessoa, mas não consegue penetrar a célula e se reproduzir.

Fernando Reinach: Exatamente, porque o vírus só se reproduz dentro da célula.

Agora, quando uma pessoa tem uma resposta imune, quer dizer, quando se é infectado pelo vírus ou se injeta o vírus num animal, o sistema imune produz uma coleção de anticorpos. Milhares de anticorpos diferentes. Funciona por tentativa e erro. Vamos supor que a espada, a lança do Sars-CoV-2, tenha o formato de um corpo humano que está em pé na bolinha, que é o vírus. Tem um monte de gente em pé ali, o que forma aquelas espadas. Nosso sistema imune produz anticorpos para todo lado, produz para o pé, para o joelho, para o tórax, para as costas. É assim que o sistema imune testa, porque ele não sabe qual vai funcionar.

José Roberto de Toledo: Ele testa tudo, vai na geração pela força.

Fernando Reinach: É, bruta força. Produz um monte de anticorpos, e a gente sabe que uma parte desses anticorpos bloqueiam a entrada. Então o que esse pessoal vem fazendo há muito tempo é usar uma tecnologia chamada anticorpos monoclonais. Eles são monoclonais porque vêm de um clone só, de uma célula só. Essa diversidade de anticorpos que o corpo produz vem do fato de que o nosso corpo tem milhares de células ou milhões de células, cada uma produzindo um anticorpo diferente. E você pode isolar cada célula dessa e fazer um clone. E então você isola o gene do anticorpo desse clone, ou você consegue fazer esse clone crescer usando uns truques de genética. Então quando você consegue ter uma cultura de células em que todas vêm de uma única que produz o anticorpo, todas aquelas células vão produzir exatamente o mesmo anticorpo.

Se eu isolo um clone que produz um anticorpo contra meu ombro, todas as células vão produzir contra meu ombro. E por aí vai. Então eles vão examinando clone a clone até achar um que bloqueia a entrada do vírus. Ele incuba o vírus junto com a célula, põe um anticorpo e vê se bloqueia. Então o primeiro não bloqueia, o segundo não bloqueia, o terceiro não bloqueia, o quarto bloqueou – então esse é um anticorpo neutralizante. Eu tenho uma linhagem de células que produzem anticorpos neutralizantes. Então eu continuo, faço uma coleção de anticorpos, cada um num vidro separado, e os classifico. Nisso, acho um que bloqueia. Entre os que bloqueiam, o que o pessoal da China fez: procurou os que bloqueiam com maior eficiência, que precisam de menos anticorpos para bloquear. Eles procuraram e acharam alguns que são muito eficientes, que com quantidades minúsculas de anticorpos é possível bloquear. No passo seguinte, eles falaram: “Bom, agora que eu já sei que ele bloqueia, vamos ver onde na lança esse anticorpo liga.” E eles conseguiram mapear olhando no microscópio onde o anticorpo liga e descobriram que o anticorpo que bloqueia melhor que todos liga bem na ponta da lança, que seria o equivalente à nossa cabeça. Imagina que nós somos a lança, na verdade é a nossa cabeça que encosta no receptor da célula, e na hora que a nossa cabeça, a ponta da lança, encosta no receptor da célula, isso permite ao vírus entrar na célula.

José Roberto de Toledo: É aquilo que eu chamei de cinto de castidade contra o vírus.

Fernando Reinach: É. Daí eles foram ver exatamente como funciona esse cinto de castidade, o que exatamente ele tampa. No cinto de castidade, a gente sabe o que precisa tampar para a coisa não acontecer. Mas no Sars-CoV-2 eles não sabiam exatamente. Eles descobriram que o anticorpo que bloqueia se liga na ponta da lança numa área muito específica. E, na hora que ele se liga ali em cima, ele funciona como uma espécie de capacete, como uma bola grande que gruda ali, porque o anticorpo é uma molécula grande, e na hora que esse anticorpo liga, ele impede que a lança grude na superfície da célula e, portanto, não entra.

Eles testaram isso, nesse trabalho, com vários métodos. Caracterizaram tudo sobre esse anticorpo de modo a garantir que ele deve funcionar em seres humanos. Eles modificaram o anticorpo para poder injetar em seres humanos e o trabalho desse pessoal, junto com vários outros (tem três ou quatro grupos desenvolvendo esses anticorpos) termina dizendo assim: “Olha, isso aqui é ótimo, está tudo em ordem. Podemos começar a testar em humanos, em animais etc.”

José Roberto de Toledo: Fazer os tais testes clínicos. Por exemplo, as vacinas mais avançadas estão na fase 3.

Fernando Reinach: Então, até hoje de manhã era aqui que ia acabar esse Luz no fim da quarentena, dizendo: “Olha, está quase pronto para começar os testes clínicos” e, hoje de manhã, uma empresa farmacêutica, a Eli Lilly, falou: “Eu já estou testando faz alguns meses, algumas semanas, um desses anticorpos monoclonais que já tinham sido caracterizados dessa maneira, e o que eu fiz foi injetar esses anticorpos em 450 pacientes.”

José Roberto de Toledo: Pacientes diagnosticados com Covid?

Fernando Reinach: Diagnosticados com Covid, mas ainda em um caso relativamente leve, antes de precisar hospitalizar. E foram examinar, dessas pessoas que foram injetadas com esse anticorpo, quantas precisaram ser hospitalizadas e quantas não precisaram ser hospitalizadas.

José Roberto de Toledo: E também fizeram o grupo de controle?

Fernando Reinach: Fizeram o grupo de controle, tudo certinho. E eles descobriram que, nas pessoas que receberam só uma injeção desse anticorpo monoclonal, diminuiu em 72% as que precisam ser hospitalizadas. Normalmente, nesse grupo, aproximadamente 6% das pessoas precisam ser hospitalizadas. Então eu imagino que eles devem ter injetado isso em pessoas mais idosas ou com comorbidades, pessoas que tinham uma preocupação de que podia ficar grave. Mas eles injetaram antes de a doença ficar grave e foram ver o que acontecia, se ainda assim as pessoas precisariam ser hospitalizadas ou não. 6% das pessoas que receberam placebo precisaram ser hospitalizadas. E só 1,7% das que receberam anticorpo monoclonal precisaram ser hospitalizadas. E eles vão continuar esses estudos até chegarem a oitocentas pessoas, então está mais ou menos na metade do estudo.

José Roberto de Toledo: Mas é promissor.

Fernando Reinach: É promissor porque é um resultado muito melhor do que qualquer outra coisa. Até agora, é uma análise relativamente grande, são 450 pessoas. A diferença não é que diminuiu em 10%, 20%, entendeu? Diminuiu mais da metade, 72%.

José Roberto de Toledo: Ainda não é a fase 3, né?

Fernando Reinach: É fase 3 combinada. Porque eles estão vendo os efeitos colaterais e já estão vendo se funciona.

José Roberto de Toledo: Entendi. De efeitos colaterais eles não registraram nada grave?

Fernando Reinach: Pelo menos não reportaram nada grave. Claro que agora vai ter que aumentar o estudo e vão ter vários outros anticorpos de outras empresas que estão sendo desenvolvidas para o mesmo tipo de coisa.

José Roberto de Toledo: Agora vamos para as más notícias. Estou vendo que eles dizem que os anticorpos duram cerca de um mês. É só para quem está doente mesmo, quem já pegou…

Fernando Reinach: Não é preventivo. É uma coisa do seguinte tipo: paciente de grupo de risco, mais velho, com comorbidades, pegou. Com esse cara você está preocupado, porque se ele tiver que ser internado, tem chance maior de ele morrer. Então você injeta nesse sujeito. Como o anticorpo foi injetado, ele dura um mês na circulação, porque ele não está sendo produzido pela pessoa, como é o caso de uma vacina, ele está sendo injetado. Então ele acaba desaparecendo depois no sangue. Mas um mês é mais do que o suficiente para a própria pessoa reagir e recuperar, então um mês é um tempo muito longo. Quer dizer que uma dose só funciona.

José Roberto de Toledo: A Eli Lilly disse que produziu, por conta, 100 mil doses. Mas a gente já vê a diferença de escala, porque para a vacina eles falavam em 100 milhões de doses, as fábricas, a capacidade de produção anual.

Fernando Reinach: Anticorpos monoclonais são muito caros em geral. É uma droga difícil de produzir, cara de produzir.

José Roberto de Toledo: Não é uma panaceia, quer dizer, não vai ter anticorpo monoclonal para todo mundo, até porque, como você já disse, é caro.

Fernando Reinach: E nem justifica, porque a maioria do pessoal mais jovem, saudável, se cura sozinho.

Esse estudo é para pessoas que teriam o potencial de serem hospitalizadas. Lembra que a gente falou que mais ou menos 6% das pessoas que dão positivo são hospitalizadas. E esse número aumenta mais com pessoas mais velhas ou com comorbidades. Eles reduziram esse número de 6% para 1,7%. Reduziram em dois terços. Então, provavelmente, isso vai ser uma coisa que, quando for aprovada, passar nos testes, for comercializada, produzida etc., vai ser para o grupo de alto risco que pega a doença.

José Roberto de Toledo: É bom fazermos essas diferenciações e mostrar em quais circunstâncias essa droga deve vir a ser usada, as limitações dela, porque é mais uma daquelas que é uma ótima notícia, mas que compõe um arsenal, digamos assim, de medidas que já são adotadas hoje ou que estão em estudo para serem adotadas e que ajudam a controlar a pandemia. Desde deixar a pessoa de bruços na UTI, para respirar mais fácil, até o remdesivir e outras drogas que mostraram algum efeito positivo.

Fernando Reinach: É verdade, Toledo, mas você tem que ser um pouco mais otimista. É o seguinte: 40% dos casos são assintomáticos, então não precisa se preocupar, a pessoa vai sarar sozinha.

Aí se tem um número enorme de casos que têm sintomas, você passa duas semanas em casa e você sara. Qual o medo mesmo, por que a gente acha que essa doença dá medo e é perigosa? Porque 6% dessas pessoas acabam no hospital. E desses 6%, um, dois, meio por cento acabam morrendo. Então, se você tiver uma droga que diminui muito a taxa de letalidade da doença, ela só precisa ser aplicada em um número pequeno de pessoas. E eles vão ter que estudar se ela também funciona depois que você for internado, se você poderia dar só nas pessoas internadas, se ela funcionar assim. Mas ela é, no fundo, a solução para transformar uma doença séria numa doença com que a gente não precisa se preocupar.

Se você conseguir reduzir o número de pessoas que morrem em dez vezes, o Sars-CoV-2 fica meio parecido com uma gripe mesmo.

José Roberto de Toledo: Faz sentido intuir que internando menos, vai morrer menos. Mas, por enquanto, eles ainda não calcularam o efeito sobre a letalidade. Esse cálculo é o efeito sobre a internação, o que já é uma grande coisa porque tira os hospitais e UTIs do sufoco.

Fernando Reinach: É. E eles fizeram um estudo só com pessoas que ainda não foram internadas. O mais interessante vai ser você tratar logo que o cara for internado, se funcionar também nesse caso. Mas se você conseguir diminuir o tempo de internação e diminuir a letalidade, transforma o coronavírus em uma doença mais comum.

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