Na redação da piauí, sempre tem alguém falando de um livro, uma peça, uma exposição. E esse é o tema da newsletter mensal com a curadoria do editor Alejandro Chacoff. Abaixo, o conteúdo da última, enviada em 1º de novembro. Clique aqui para receber as próximas gratuitamente.
Um romance
OS SUBSTITUTOS
De Bernardo Carvalho
A inclinação que precede a leitura de Os substitutos é relacioná-lo a Nove noites, romance que Bernardo Carvalho publicou em 2002 e no qual explorou, numa narrativa notável pelo arrojo e inventividade, a trajetória do antropólogo americano Buell Quain, que se suicidou em 1939 enquanto fazia trabalho de campo no Brasil central.
De maneira semelhante ao livro anterior, em Os substitutos Carvalho fala de indígenas, de Amazônia, do Brasil, de homossexualidade e dos desafios presentes em qualquer esforço para compreensão da identidade e da alteridade. Removido na solidão da fazenda, o protagonista do romance, um garoto, lê um livro de ficção científica protagonizado por outro garoto, também desalojado. “É a história de um menino que não sabe o que está fazendo ali”, o protagonista diz, sem ter consciência de que fala de si mesmo, e que a extensão do “ali” ultrapassa a fazenda para alcançar as dimensões do mundo. Assombrado pela figura do pai, homem enigmático e fugidio, aparentemente insensível à peculiaridade do próprio filho, o garoto cresce, estuda antropologia, e escreve sobre a metafísica dos Okano e seu sistema universal de substituições.
Em Nove noites, Carvalho usou um viés autoficcional para abordar a trama. Se há alguma autobiografia em seu livro mais recente, ela aparece na forma de personagens ambíguos e fraturados, incompletos e por isso verossímeis. A complexidade da relação entre o garoto e seu pai parece contaminar tudo – a memória é “uma armadilha”, e quando se trata de explicar as relações humanas, “a conta não fecha”. As figuras reencarnam umas nas outras, em inúmeras instâncias de deslocamento e substituição imperfeita. É justamente nessa resistência a explicações lineares e narrativas fechadas que reside a fortuna desse romance, e seu sucesso como literatura.
Dois livros de não ficção
QUEM MATOU MEU PAI E LUTAS e METAMORFOSES DE UMA MULHER
De Édouard Louis
O escritor francês Édouard Louis só teve esse nome no registro civil quando completou 21 anos. Até essa idade, seu nome de nascença fora Eddy Bellegueule. “Eddy” foi escolha de seu pai, um fã da televisão americana que achava que esse era o nome de “um cara durão”. Acontece que, enquanto o homem esperava a dureza do menino, ele gostava de fingir ser uma cantora e dar shows na sala de casa. O pai respondia à decepção com o silêncio, se levantando do sofá para fumar um cigarro na varanda da casa.
Mudar de nome foi a segunda atitude tomada por Louis para tentar romper com as projeções do pai. A primeira foi se tornar escritor. Pouco a pouco, conquistou um lugar entre os mais proeminentes autores gays da atualidade. Hoje, Louis é elogiado pela vencedora do Nobel Annie Ernaux, e circula pelo meio intelectual francês com o escritor Didier Eribon, que conheceu quando era estudante universitário.
A Todavia publicou neste ano dois pequenos livros de Louis que conversam entre si. Em Quem matou meu pai, o narrador elenca memórias da infância para tentar entender o que tornou seu pai uma figura homofóbica e autoritária. Lembra, por exemplo, do dia em que a mãe flagrou o filho dançando no quarto e disse que, dançando, era quando ele mais se parecia com o pai. O pequeno Louis demorou para absorver aquela informação. Por vezes escrevendo como se endereçasse uma carta ao pai, Louis diz: “O fato de que seu corpo já tivesse feito algo tão livre, tão bonito e tão incompatível com sua obsessão pela masculinidade me fez entender que talvez um dia você tivesse sido outra pessoa.”
Louis analisa a formação social e familiar do pai, tentando identificar a origem do comportamento violento que, a certa altura, descreve como “sua loucura masculina”. O pai (que no livro não tem nome) deixou a escola na juventude porque entendia que estudar não era coisa de homem. Cresceu sendo orgulhosamente alcóolatra, racista e antissemita, e terminou a vida como um incapaz, depois de um acidente na fábrica em que trabalhava. “A masculinidade o condenou à pobreza, à falta de dinheiro”, analisa o escritor.
Aquele ambiente também era hostil para a mãe de Louis, que deixou o marido quando o filho ainda era criança e se mudou com ele para outra cidade. Ela é a personagem de Lutas e metamorfoses de uma mulher, o segundo livro traduzido pela Todavia. É o olhar terno de um filho para uma mãe extremamente pobre, responsável pelo sustento da casa e dos filhos. Os detalhes comoventes da história são silenciosos, como no trecho em que Louis aprecia a caligrafia da mãe enquanto ela preenche, pela quarta vez, o formulário de um sorteio que promete deixá-la rica. O leitor acompanha a transformação da personagem enquanto os filhos crescem e apresentam para ela uma nova França, um novo mundo e um novo modo de se relacionar com quem diz amá-la.
Uma exposição
VISITA ÍNTIMA
De Vanderlei Lopes
Em tempos de censura a obras de arte, de cunho religioso, político e erótico, há sim respiros no circuito de arte no Brasil. Atua dessa forma a exposição Visita íntima, do artista Vanderlei Lopes, já em sua última semana após breve temporada que teve início no dia 30 de outubro, na galeria Millan, em São Paulo.
Uma das obras que se destacam é Espelho, 2023, uma escultura em alto relevo, de bronze polido. Tem 3,5 toneladas e está presa ao teto do espaço expositivo, graças a uma reforma na galeria feita para comportá-la. As dimensões do trabalho, que tem o formato de uma elipse, são soberbas: 6,2 metros de largura, 3,9 metros de altura e 38 centímetros de espessura. Nela, corpos se fundem em uma cena de bacanal explícito. A priori, os falos que despontam da massa de formas capturam a atenção. Depois, os rostos, seios e coxas dos personagens vão sendo identificados, pouco a pouco. Isso se dá junto a outro movimento do olhar: a superfície refletida coloca o visitante dentro da cena, quer ele queira ou não. Dessa forma, a imagem do voyeur também é parte do jogo. Afinal, trata-se de um espelho.
A opulência do trabalho se relaciona com o barroco, e, assim como os tetos das igrejas mineiras, a escultura parece nos envolver. A expografia da sala onde está o trabalho, com paredes brancas, atua na contramão deste desejo imersivo – um ponto negativo, que, ainda bem, a obra consegue contornar com as expressões faciais dos personagens, que levam a percepção daquela orgia para longe de um tom asséptico. Lopes bate, dessa forma, num ponto conhecido: prazer e dor se misturam. Mas ele não soa repetitivo, porque o “sofrimento” daquelas figuras vem acompanhado do fascínio da superfície de bronze reluzente. Aquela amálgama de corpos é em certa medida também aflitiva. Não há o que romancear, no sentido clássico da palavra.
Como a exposição acontece em uma galeria, o fluxo de visitantes é bastante espessado. O nome da exposição, “Visita Íntima”, que remete à rotina de apenados em presídios, também se dá ali – em outro tom, curiosamente, já que não é estranho que você se veja sozinho no espaço expositivo. Uma visita silenciosa à obra e aos desejos.
Um portfólio
ENCONTROS POLÍTICOS
De No Martins
No Martins é um dos expoentes de uma geração de artistas que têm se destacado ao fazer uma pintura figurativa na qual pessoas negras são protagonistas. A série Encontros políticos começou a ser pintada em 2019, retratando cenas da vida cotidiana de pessoas negras na rua, em bares da praia. O título do trabalho indica o quanto há de político nesses momentos de ócio, conversa e convivência com familiares, amigos ou amores. “A conquista do lazer é algo muito importante para a população afro-brasileira, que tem jornadas exaustivas de trabalho”, diz o artista. Na edição de outubro, a piauí publicou oito telas da série cuja “paisagem” é a praia. Mas a paisagem não comparece nas telas apenas para criar um cenário agradável: é também um ambiente político. “As pessoas escravizadas foram trazidas ao Brasil por mar, em navios, e os fortes militares ficam na praia”, afirma o artista.
Poesia
PARA TODOS E PARA NINGUÉM
Age de Carvalho
Na seção de poesia da edição de outubro, a piauí publica seis poemas inéditos de Age de Carvalho. Os poemas fazem parte do livro De-estar, entrestrelas, ainda sem data para publicação. Nascido em Belém do Pará em 1958, Carvalho vive atualmente em Viena, e já teve parte de sua obra traduzida para o alemão por Curt Meyer-Clason, o célebre e já falecido tradutor de Guimarães Rosa, Machado de Assis, e Clarice Lispector. Apesar de Carvalho ter emigrado para a Europa há quase quarenta anos, sua obra segue conectada não só a seu país natal como também a seu estado de origem. Numa apresentação do autor e de seus seis poemas escrita pelo cineasta Carlos Adriano e publicada pela piauí, Carvalho menciona o declínio da floresta Amazônica. “O Pará tem pautado o noticiário como um estado infestado de garimpos ilegais, fazendeiros grileiros próximos do bolsonarismo, assassinos políticos de aluguel, terra geral dos sem lei – o que, infelizmente, é tudo verdade”, diz. Ainda que se considere recluso e diga se sentir não pertencente tanto à cena literária europeia como brasileira, Carvalho encontrou ao longo das últimas décadas admiradores ilustres nos dois territórios (Drummond elogiou seu primeiro livro, e se tornou seu correspondente), construindo uma poética em que, segundo Adriano, “a arquitetura rigorosa se faz por um laconismo misterioso”.
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