Quinzenalmente, os leitores da newsletter cultural da piauí recebem uma cuidadosa seleção de livros, filmes, exposições e discos feita pelos jornalistas da redação com a curadoria do editor Alejandro Chacoff. Abaixo, o conteúdo da última edição. Clique aqui para receber as próximas gratuitamente.
A morte súbita de Gal Costa em novembro de 2022 deixou todo mundo meio desconcertado. Homenagens à cantora tomaram conta das redes sociais, se estenderam para as ruas e ganharam os palcos, através de tributos feitos por músicos de várias gerações. Houve boas tentativas de celebrar Gal, mas a maioria falhou em tentar repetir o seu desempenho vocal sui generis. Apenas um tributo se provou acurado e original: o da cantora gaúcha Filipe Catto.
Catto levou as músicas de Gal para o palco pela primeira vez há um ano, no Sesc de São Paulo, e pouco tempo depois lançou o disco Belezas são coisas acesas por dentro, com um repertório que abarca várias fases da carreira da artista. Algumas gravações soam sujas de propósito, com ares de indie rock. Outras soam dessa forma por causa da produção pouco refinada. Uma vez no palco, tudo – a voz e o comportamento da intérprete, os arranjos, o figurino, a setlist – prova ao espectador que Catto entendeu e incorporou o espírito libertino que transformou Maria da Graça Costa Penna Burgos em Gal Costa.
No corpo de uma mulher trans, com voz de natureza andrógina, Filipe Catto apresenta uma setlist que vai da experimental Não Identificado à romântica Chuva de Prata. Sua verve roqueira coloca o público em êxtase. Quem ainda não assistiu, que assista: atualmente, a cantora tem shows marcados em São Paulo, Belo Horizonte e Lisboa (Porto Alegre estava na lista, mas o show foi cancelado em razão da tragédia que afeta o estado.) Os anúncios geralmente são feitos em sua conta do Instagram, @filipecatto.
Oito em cada dez brasileiros estão endividados. A maioria absoluta, por causa de pequenas quantias. Mesmo assim, em 2022, uma pesquisa do Serasa mostrou que 83% dos endividados tinham dificuldade para dormir, 62% sentiam o impacto do endividamento no relacionamento conjugal e 31% tinham parado de frequentar reuniões familiares. A dívida externa de países pobres continua colocando limites aos sonhos de indivíduos que tiveram a falta de sorte de nascer em países sob políticas de austeridade. Isso tudo porque, afinal, a ideia de que “é preciso pagar as próprias dívidas” é onipresente — o que é estranho, já que sabemos que nem todos precisam pagar suas dívidas. Na verdade, só alguns pagam.
Por isso, o antropólogo americano David Graeber – falecido em 2020, aos 59 anos – defendia que nada mais justo que passar uma borracha nisso tudo, tanto na dívida internacional quanto na do consumidor, e começar do zero. “Não só porque aliviaria muito o sofrimento humano, mas também porque seria um modo de nos lembrarmos de que o dinheiro não é algo inefável, que pagar as próprias dívidas não é a essência da moral, que todas essas coisas são acordos humanos”, escreveu. Em Dívida: os primeiros 5 mil anos, o antropólogo mostra que esse jubileu não seria inédito na história da humanidade. Na verdade, não seria nem raro.
Graeber participou do movimento Occupy Wall Street e foi um dos criadores do slogan “Somos os 99%”. Antes disso, organizou protestos contra o FMI em 2002. Dívida foi publicado em 2011 nos Estados Unidos, e traduzido no Brasil pela editora Três Estrelas em 2016, numa edição que se esgotou rapidamente. A mesma tradução, de Rogério Bettoni, foi republicada pela Zahar no fim de 2023. A nova edição inclui um prefácio inédito do economista francês Thomas Piketty, escrito em 2021, pouco tempo depois da morte de Graeber. “O prematuro desaparecimento de David em setembro de 2020 deixou um enorme vazio. ‘Antropólogo anarquista’, David era sobretudo um daqueles pesquisadores em ciências sociais que transcendem as disciplinas e os públicos”, escreve Piketty. Graeber também é autor do agora já famoso O despertar de tudo (Companhia das Letras), coescrito com David Wengrow e lançado depois de sua morte.
Em Dívida, Graeber segue uma tradição antropológica de questionar os fundamentos básicos da economia clássica – assim como fez Marcel Mauss em Ensaio sobre a dádiva (1925), que argumentou que sociedades totalmente estabelecidas na base do escambo jamais existiram. No entanto, Dívida pode ser lido não apenas como tratado iconoclasta, mas também como um bom livro de história cultural. Embora o título seja tão específico, o que se encontra ali é uma longa meditação sobre a humanidade. Graeber disseca a relação de seres humanos com a dívida desde vestígios deixados em 3500 a.C. pelos sumérios, até os dias atuais. O que ele nos mostra é que talvez nossas certezas sobre questões elementares de nossa humanidade – a busca pelo lucro, liberdade, interesse – estejam equivocadas.
A escrita de Graeber é direta, sedutora e bem-humorada. No prefácio, Piketty fala da “felicidade intelectual” que é ler Dívida pela primeira vez. Felicidade é um bom termo. O antropólogo faz uma pesquisa robusta se tornar absolutamente envolvente, apresentando formas mais criativas de olhar para o mundo. O grande trunfo de Graeber é fazer o leitor se dar conta que não há motivo para achar que vivemos do jeito que vivemos porque sempre foi assim – e nem para achar que sempre será assim. Ele nos lembra que “se a democracia tem algum sentido, esse sentido é a capacidade de todos concordarem em reorganizar as coisas de maneira diferente”.
O novo álbum de Duquesa não é sobre a angústia – passa longe disso, aliás. Mas é justificado que a angústia seja o ponto de partida da faixa que apresenta o novo trabalho da rapper baiana. Em Ela (Intro), Duquesa se arrisca a descrevê-la: “Ela vem como a mulher branca me olhando feio na loja/Ela vem como a velha branca sempre segurando a bolsa/Ela vem como o segurança me seguindo em toda loja/Ela vem como um enquadro: se vier, não tenho escolha.” Em uma rede social, a cantora escreveu sobre a necessidade de fazer esse desabafo na canção. São versos que descrevem uma ansiedade – “os olhares paralisam e me deixam sem autoestima”. É a partir dessas dores que Duquesa reafirma sua humanidade: “Por outro lado, sou feliz brilhando perto dos meus. Não adianta me demonizar, o efeito da minha existência é irreversível.”
E perto dos seus, Duquesa brilha, como vem confirmar Taurus, Vol. 2. O trabalho consolida o talento da rapper e reafirma seu domínio sobre o flow num conjunto de treze faixas que abordam temas relacionados à autoestima, passando por gêneros como o rap, o trap, o disco e o R&B. Lançada pelo selo Boogie Naipe, de Mano Brown, a sequência de TAURUS, de 2023, chegou às plataformas digitais no último 10 de maio. Aos 24 anos, Duquesa – que nasceu Jeysa Ribeiro – vem fazendo seu nome.
Afiada, ela critica a exaltação de artistas masculinos insossos: “O seu rapper não é um gênio, ele só copia o flow.” Em Primeiro de Maio (Gostosas Inteligentes), lembra que beleza e intelectualidade não são excludentes. Vale destaque também a canção Disk P@#$%&!, em parceria com as gêmeas Tasha & Tracie, artistas que se mostram, junto a MC Luanna, Ajuliacosta e a própria Duquesa, as mais proeminentes mulheres negras na cena.
Duquesa fez sucesso nas redes sociais no ano passado com o hit 99 Problemas, em parceria com MC Luanna, reverberando uma estética que faz sentido para muitas mulheres negras – vide as centenas de postagens contendo a canção como trilha sonora. Estética essa que prega um autoamor quase que cego. E qual o problema nisso? Depois de tê-lo tido negado por tanto tempo, faz sentido desfrutar desse sentimento. Em Big D!!!!!! Pt. 2, ela deixa o recado: “Queriam te assistir chorando/ Mas vão ter que te ver rica.”
(Ilustração: Reberson Alexandre)
Levanta-te animal das estepes,
bicho feito de errâncias!
Segue o sol caro ao sonho
e a paixão sem isenção
de impostos
Esse pequeno trecho de Border – um de quatro poemas inéditos de Salgado Maranhão publicados na edição de maio da piauí – dá um gosto de quão versátil é a potência lírica do poeta, cujos poemas transitam fluidamente entre muitos registros distintos, passando às vezes de evocações ominosas (“Já era tarde quando a noite sulfúrica trouxe a luz. Só aí veríamos os morcegos a venderem-se de anjos”) a uma autoconsciência metaficcional, similar em tom ao confessionalismo universal de Walt Whitman ou Fernando Pessoa (“Acordo para recolher as sementes que não nasceram. Eu, este broto de eclipse; eu, esta elipse de espelhos”). A versatilidade poética de Maranhão, cujo nome de nascença é José Salgado Santos Costa, parece às vezes uma destilação da variedade de sua própria trajetória. Nascido no estado homônimo, se mudou na adolescência com sua família para Teresina, no Piauí, onde começou a trabalhar cedo como faz-tudo numa cadeia de lojas – depois mudou-se para o Rio de Janeiro, onde chegou a cursar Comunicação Social e Letras, e participou do movimento da poesia marginal nos anos 1970. Compositor da MPB – Maranhão já fez canções com Ivan Lins, Paulinho da Viola, e Zeca Baleiro, entre outros – o escritor destila em sua poesia essa multiplicidade de experiências, e deixa no leitor a sensação de acesso a uma consciência ímpar.