A tensão era quase palpável na ampla sala do segundo andar do prédio Minas, um dos dois edifícios ondulados que formam a Cidade Administrativa, sede do governo mineiro em Belo Horizonte, naquela manhã de 10 de junho passado, uma sexta-feira. De um lado da mesa, cinco integrantes da direção da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Semad), incluindo Charles Soares de Sousa, então chefe da superintendência central, subdivisão da Semad responsável pela fiscalização ambiental na capital e cidades do entorno; de outro, cinco fiscais da pasta.
Sousa, um homem de 31 anos, corpo esguio e cabelo cortado muito rente ao crânio (herança dos tempos em que era soldado da Polícia Militar mineira), estava visivelmente contrariado com o trabalho dos fiscais. Dias antes, em 30 de maio, dois dos cinco servidores haviam determinado a suspensão das atividades da mineradora Gute Sicht e multado a empresa em 107 mil reais por extrair minério de ferro ilegalmente de uma área protegida na Serra do Curral, encravada ao Sul de Belo Horizonte e cartão-postal da capital mineira. Desde 2021 a empresa de origem alemã tinha uma autorização provisória para extrair 1,5 milhão de toneladas de minério de ferro por ano nas imediações da serra, mas em um local diferente de onde vinha operando. Daí a autuação.
Em 3 de junho, antes mesmo de a empresa se defender no processo administrativo, Sousa cancelou o auto de infração contra a mineradora baseado em parecer da Semad que afirmava não haver “certeza absoluta” se a extração minerária ocorria dentro de área protegida. Três dos técnicos rebateram o argumento com um extenso estudo comprovando, por meio de georreferenciamento, que a mina da Gute Sicht estava dentro da área protegida da Serra do Curral.
Diante do impasse, Sousa convocou a reunião na Cidade Administrativa. A simples convocação já soou insólita, já que, historicamente, o corpo técnico da Semad tinha total autonomia para autuar empresas por infração ambiental. Irritado, Sousa ignorou todos os argumentos dos fiscais e manteve o cancelamento da autuação, “pois não considerava oportuno, naquele momento, manter o auto [de infração]”, conforme informa a ata do encontro (em protesto, nenhum dos cinco fiscais assinou o documento). Além disso, o superintendente determinou sigilo sobre o processo administrativo contra a Gute Sicht. Três meses depois, a servidora Priscilla Martins Ferreira, que encabeçou a ação contra a mineradora, foi nomeada para um posto burocrático, bem longe da fiscalização ambiental. Procurada pela piauí, ela não quis se manifestar.
No governo de Romeu Zema (Novo), órgãos ambientais têm sido ocupados por pessoas ligadas direta ou indiretamente a mineradoras, que respondem por 16% do PIB do estado, de acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Pelo menos dois dos doze membros da Câmara de Atividades Minerárias do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) são ligados ao setor, segundo reportagem da revista Carta Capital, enquanto a subsecretária de Regularização Ambiental da Semad, Anna Carolina da Motta dal Pozzolo, presente na reunião com os cinco fiscais na Cidade Administrativa, já advogou para dezenas de mineradoras no estado. Um claro conflito de interesses, em que o caso de Charles Soares de Sousa é exemplar.
Graduado em engenharia ambiental, Sousa tornou-se soldado da PM mineira em 2017. Três anos depois, licenciou-se do posto para trabalhar como consultor na Fleurs Global Mineração, empresa de capital indiano. Em relatório de investigação sobre o setor minerário em Minas, a Polícia Federal aponta indícios de que a Fleurs e a Gute formem, na prática, uma única empresa, já que tiveram ao menos um sócio em comum e compartilham alguns consultores terceirizados.
Como funcionário da Fleurs, Sousa aproximou-se do deputado estadual Noraldino Júnior (PSC), aliado de Zema na Assembleia Legislativa de Minas. Conhecido lobista tanto da Fleurs como da Gute Sicht, o parlamentar tem emplacado várias indicações para cargos na Semad (a subsecretária Pozzolo é uma delas). Em julho de 2021, por indicação de Noraldino, Sousa tornou-se superintendente de fiscalização da Semad. Mas a nomeação gerou constrangimento na Polícia Militar: no novo cargo, o soldado Sousa, da mais baixa hierarquia da PM, passaria a coordenar ações de fiscalização em conjunto com o setor de meio ambiente da PM. Assim, na prática, teria poderes superiores aos oficiais da corporação, em uma instituição fortemente hierarquizada. Após pressão da PM, Sousa acabaria exonerado dois meses depois.
Mas, segundo servidores da Semad ouvidos pela piauí sob condição de anonimato para evitar retaliações, o soldado Sousa continuou a trabalhar clandestinamente na pasta. Um relatório de fiscalização da Semad na mineradora Fleurs, aquela em que Sousa havia trabalhado como consultor em 2019, cita o policial militar como “assessor” do superintendente. Ou seja: Sousa fiscalizou seus antigos patrões.
No dia 1º de junho último o policial foi formalmente nomeado para outro cargo na área ambiental: tornou-se chefe de um braço regional da Semad, a Superintendência Regional de Meio Ambiente (Supram) Central, responsável pela capital mineira e o entorno. Um de seus primeiros atos no novo posto foi anular a autuação da Gute Sicht, ignorando o fato de que a mineradora vinha explorando minério de ferro em área protegida.
Mas esse não seria o único ato de Sousa em favor da mineradora. Entre 11 e 14 de julho deste ano, a Semad fez uma grande operação de fiscalização na Serra do Curral. No total, foram oito autos de infração, um deles contra a Gute, desta vez por desmatamento ilegal de 1,34 hectare. Mais uma vez as atividades da mineradora foram embargadas. Mas não por muito tempo. Na semana seguinte, Sousa assinou um aditivo no acordo com a Gute para explorar minério de ferro na Serra do Curral, ampliando a área de lavra com o objetivo de abarcar o terreno onde houve o desmatamento. Na prática, era uma tentativa de se legalizar um crime ambiental.
Enquanto favorecia algumas mineradoras, Sousa atrapalhava a vida de outras. Quando um dos sócios da Mineração Alto Palmital discutiu com um aliado do deputado Noraldino Júnior, o ex-PM passou a atravancar o andamento de um pedido de licenciamento ambiental da Palmital para a extração de minério em uma região de Mata Atlântica. O processo administrativo só voltou a tramitar na secretaria nesta semana.
Em 15 de setembro, a Procuradoria do Município de Belo Horizonte protocolou no Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de revogação da decisão do Tribunal de Justiça de Minas impedindo que o Conselho Estadual de Patrimônio Cultural (Conep) deliberasse sobre o tombamento da Serra do Curral. No pedido a Procuradoria cita as ações controversas de Sousa em defesa da Gute Sicht como exemplos dos riscos a que a Serra do Curral está submetida devido à desproteção legal da área. Cinco dias depois, em 20 de setembro, Sousa foi exonerado da superintendência.
Na quinta-feira, 29, dias após parlamentares de oposição a Romeu Zema e ONGs de defesa do meio ambiente protocolarem representação contra Sousa no Ministério Público, a Semad decidiu revogar o cancelamento da autuação contra a Gute Sicht feito pelos cinco fiscais em 30 de maio. Assim, a empresa voltou a ter as atividades suspensas na Serra do Curral.
Em nota, a assessoria da Semad disse que no currículo de Sousa, apresentado no ato da nomeação para o cargo de superintendente, “não constava nenhuma relação” com a Gute Sicht ou a Fleurs. A assessoria também ressalva que não houve nenhuma decisão administrativa do ex-servidor em processos de regularização da Fleurs Global Mineração. Em relação a integrantes do Copam ligados a mineradoras, a Semad limitou-se a dizer que o órgão “observa a representação paritária entre o poder público e a sociedade civil” e que em 2020 o conselho ganhou um novo assento, destinado a entidades ligadas à defesa do meio ambiente. Sobre a subsecretária Pozzolo, a secretaria afirmou que a advogada “possui mais de 20 anos de experiência jurídica com atuação em diversas áreas do direito, principalmente ambiental, regulatório e administrativo” e que “tem vivência organizacional na iniciativa pública e privada”.
Procurados pela piauí, o PM Sousa e o deputado Noraldino Júnior não se manifestaram, bem como as mineradoras Gute Sicht e Fleurs. O espaço segue aberto para eventual pronunciamento.