Acompanhei por alto a celeuma que o vídeo recente da BBC para as Olimpíadas do Rio causou nas mídias sociais. Grosso modo, a batalha se concentrou entre, de um lado, aqueles que o dispensaram de chofre, sob a alegação de que o filme reforça (ainda que de modo fofo) o estereótipo do Brasil como país eternamente condenado a um “estado de natureza” – ou seja, eternamente condenado a ser um fornecedor de matérias primas baratas, o país das bananas, do papagaio, do exótico, do índio bonitinho, nunca o país das patentes.
Do outro lado da contenda estariam aqueles que consideram que esse ponto de vista aparentemente crítico já é fruto (talvez o mais insidioso) de uma colonização mental, de uma aceitação passiva de critérios e valores do Ocidente moderno. Em um mundinho pra lá de Bagdá (oscilando entre o desencanto, o terrorismo e o desemprego), deveríamos estar felizes e orgulhosos de ainda poder oferecer pelo menos a utopia de um “povo da floresta”, de uma civilização fundada na harmonia multicolorida, multiétnica, multicultural, multietc… entre humanidade e natureza. Se não o fazemos, é porque nos deixamos impregnar excessivamente pela ideologia do progresso, considerando como marcas de atraso o que hoje se apresenta, justamente, como nossa maior virtude.
Sem ter tido tempo de me aprofundar na polêmica, fiquei com a impressão de que as duas partes possuem uma parcela de razão. Na verdade, o vídeo me deixou indiferente. Pareceu-me antiquado e sem vida qual uma peça publicitária. Aquele “realismo de computador”, estabelecido por certo padrão Disney, é a marca da cafonice pasteurizada de nosso tempo. Difícil pensar num clichê maior do que o close-up feito no olho do crocodilo.
Além disso, como acontece cada vez mais com as peças publicitárias, paira sobre o vídeo uma grande aura de mentira. É mentira. Que o mundo queira nos ver desse modo, na simbiose magnífica entre cidade e floresta, tudo bem (e qual país não faz, malandramente, uma publicidadezinha de si?). No entanto, nós sabemos que somos uma cultura sem nenhum respeito pela natureza.
Vi recentemente outro vídeo muito mais esclarecedor de nossa relação com o meio ambiente: sem firulas tecnológicas, ele mostrava, do alto, o espantoso assassinato de lagoas, mangues e restingas na Barra da Tijuca – no coração da cidade-sede das Olimpíadas. Lembro também de um comentário da escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, dizendo que a visão de montanhas inteiras devassadas no Norte do país, com as vísceras escancaradas para a extração de minérios, havia mudado profundamente sua percepção sobre o Brasil.
O curioso é que, tendo o Brasil sua identidade intimamente vinculada à sua história natural, fica difícil prever o que seria do país sem as matas e os bichos. Eis o paradoxo: nossa fundação nacional está a um só tempo ligada à percepção de uma natureza exuberante e à mais vil mentalidade extrativista. A história do Brasil se confunde com a história de sua relação com a natureza. Seu destino (ou não) está cifrado nessa relação. Tomamos o nome de uma árvore que logo tratamos de dizimar. É o que estamos nos tornando: um nome vazio, sem a madeira, sem o pau.
Algumas dessas ideias me fizeram voltar ao disco de Thiago Amud, De Ponta a Ponta Tudo é Praia-Palma. É uma pérola, um acontecimento, vertigem visionária que não carece de seguidor. As quatro primeiras canções formam uma das mais belas sequências de entrada que jamais ouvi num disco. Elas trançam magistralmente as utopias formadoras do passado com o país do presente. Do relato inaugural de Pero Vaz Caminha (com sua linda formulação do litoral brasileira, “de ponta a ponta tudo é praia-palma”, que dá nome ao disco), somos arremessados sem dó, com perplexidade e melancolia, aos “mercúrio, chumbo e césio nas aguadas”.
A paisagem surge “calcinada”, numa devastação que reverbera inclemente no espírito. Sobraram apenas pássaros d’agouro; nascentes destilando sangue; o presidente zambo e a musa louca. São canções estranhas, únicas. Barrocas, literárias e distantes. Repletas de poderosas imagens míticas. O tom é místico, agonizante, a um só tempo apaixonado e desesperado. “Não permita Deus que valhas menos que teu coração, teus flancos de Maracangalhas, tua língua de Grande Sertão”, suplica o poeta diante da terra arrasada.