Ao comprar uma pistola Taurus calibre 9 milímetros, em setembro passado, o segundo sargento do Exército Bruno Albuquerque Cazuca, de 35 anos, comentou em casa que buscava proteção para a onda de violência contra policiais no Rio de Janeiro – foram 134 PMs mortos em 2017. Mas o efeito foi o inverso: a arma está diretamente ligada aos assassinatos do próprio Cazuca e do tenente da Polícia Militar Guilherme Lopes da Cruz, de 26 anos, nos dias 20 e 21 de fevereiro. As duas mortes compõem um enredo de coincidências trágicas, que se desenrolou na Zona Oeste da cidade, em menos de 24 horas.
Ao escolher a arma, o sargento Cazuca sabia o que queria. A fabricante afirma em seu site que a pistola G2C 9 milímetros é “a arma ideal para o porte velado e pronto emprego”. Tem o cano curto, pesa só 610 gramas e tem capacidade para treze disparos. O militar, no Exército há mais de dez anos, era um sniper, atirador de elite da corporação. No Centro de Instrução e Operações Especiais, em Niterói, Cazuca dava aulas no Curso de Ações de Comandos, local do treinamento que inspirou a formação de policiais do Bope exibido no filme Tropa de Elite. Além de tiro, sua especialidade era o atendimento de feridos em combate. O objetivo é que, mesmo machucado, a depender da gravidade, o soldado possa continuar atirando. Nem a nova arma nem o treinamento, porém, lhe serviram nas primeiras horas da manhã do dia 20, diante de oito criminosos armados.
Natural do Rio de Janeiro, segundo mais novo de quatro irmãos, Cazuca ambicionava o posto de major do Exército. Currículo não lhe faltava. O sargento participou de operações importantes, como a missão de paz no Haiti, no segundo semestre de 2016, e a ocupação da Vila Cruzeiro, em novembro de 2010, quando dezenas de traficantes fugiram para o Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio.
Em meados de 2017, Cazuca passou a se preocupar com os sucessivos episódios de violência na antiga estrada Rio-São Paulo, na Linha Amarela e na Avenida Brasil, com arrastões e tiroteios. As duas vias ficavam no caminho entre sua casa, em Campo Grande, Zona Oeste carioca, e o centro de treinamento do Exército, em Niterói. Ele tomou então a decisão de comprar sua primeira arma de uso pessoal. No dia 22 de setembro de 2017, pagou 6 204 reais, divididos em doze parcelas de 517 reais, pela pistola – número de série TKO65466, adquirida numa loja de armamentos de Niterói –, que acabou se tornando um elemento definidor de sua vida e desta história. Era uma arma de uso restrito, que só pode ser vendida a integrantes das polícias, das Forças Armadas, do Ministério Público e do Judiciário.
No trajeto entre a casa e o trabalho, o sargento tinha o cuidado de não deixar a farda visível no carro, levando-a no porta-malas. A pistola ficava oculta entre a coxa e o assento do veículo. O militar saía de casa por volta das 5 horas da manhã e só retornava no fim da tarde. Mas, naquele dia, ninguém sabe a razão, Cazuca levou a farda verde-oliva no banco traseiro de seu Kia Picanto. Na antiga estrada Rio-São Paulo, o militar foi surpreendido por dois carros que pararam em diagonal na rodovia e fecharam a passagem. Deles saíram oito homens, todos armados com pistolas.
Neste ponto o enredo ainda é pouco conhecido da Polícia Civil. Uma das hipóteses é que o sargento saiu do carro, reagiu e foi baleado em seguida. Outra hipótese é a farda ou a pistola terem sido notadas pelos assaltantes, que o obrigaram a sair do veículo e o mataram – a Polícia Civil aguarda perícia na 9 mm para saber se houve algum disparo. Câmeras de segurança de uma empresa próxima mostram só o fim da ação, quando Cazuca cai e é assassinado com nove tiros – no ombro, pescoço, peito e coração. “A gente mata mesmo. Se reagir, a gente mata”, gritou um dos assaltantes, de acordo com testemunhas.
Além da arma de Cazuca, a quadrilha levou uma caminhonete da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e um outro carro. A mulher do sargento, a professora Lara Maria Rodrigues, de 25 anos, soube da morte do marido minutos depois, quando estava a caminho da escola em que leciona. “Perdi o chão”, disse, emocionada. O casal tem uma filha de 5 anos e um bebê que há cinco meses é gestado por Lara. “Daríamos o nome de Arthur, mas agora vai se chamar Bruno Albuquerque Cazuca Filho.”
Com o assassinato do sargento, entrou em cena o tenente Guilherme Lopes da Cruz. Aos 26 anos, filho de um coronel do Exército e caçula de quatro irmãos, três deles militares, Cruz ingressou na Academia da Polícia Militar do Rio em 2014. No ano passado, formou-se tenente e passou a trabalhar na Unidade de Polícia Pacificadora do Salgueiro, em São Gonçalo. De lá foi para a UPP do Andaraí e, em novembro passado, para a unidade da Vila Kennedy, na Zona Oeste, onde tornou-se subcomandante. Segundo o irmão Gustavo Lopes da Cruz, major do Exército, o irmão instalou dois aparelhos de ar-condicionado da casa dos pais na UPP e participava de trabalhos sociais no bairro, como a distribuição de roupas e brinquedos.
Minutos depois do assassinato, o comando da PM acionou a equipe do tenente, já que a principal suspeita é de que o crime tivesse sido cometido por quadrilhas da Vila Kennedy. De acordo com a investigação posterior, no fim da tarde do dia 20 a equipe de Cruz trocou tiros com traficantes da comunidade e recuperou os dois veículos e a pistola 9 mm. A arma, na versão da polícia, foi deixada em um ponto de venda de drogas abandonado pelo tráfico durante o confronto. Ninguém foi preso. “Meu irmão nem almoçou nem jantou naquele dia, correndo atrás dos criminosos”, contou o irmão Gustavo. A Polícia Civil descarta a hipótese de que, ao invadir a Vila Kennedy atrás da arma, o tenente tenha contrariado policiais corruptos interessados em acobertar os assassinos.
Por volta das 2 horas da madrugada do dia 21, o tenente Cruz, já à paisana, e dois cabos da sua equipe foram até a Delegacia de Homicídios na Barra da Tijuca entregar a pistola. Depois de preencher papéis, ele deixou o prédio às 2h40. Só então, após um dia inteiro em jejum, decidiu parar para jantar. Contrariando os conselhos dos irmãos militares, parou o carro no drive-thru de uma lanchonete McDonald’s em Jacarepaguá. “Sempre dizíamos a ele para nunca parar o carro nesses locais, porque você fica muito exposto e não tem para onde sair”, afirmou o irmão Gustavo.
Quando o tenente pegava o lanche pela janela de seu carro, um Honda HRV, três homens armados desceram de uma caminhonete Hilux e anunciaram o assalto. De acordo com as testemunhas, o PM, armado com uma pistola calibre 40, reagiu e chegou a balear um dos criminosos de raspão. Mas foi atingido por pelo menos cinco tiros. Cruz foi socorrido pelos bombeiros e levado para o Hospital Lourenço Jorge, na Barra, mas não resistiu. Os assaltantes roubaram a lanchonete e fugiram. Levaram, por sua vez, a arma do tenente. A pistola foi encontrada horas depois pela PM dentro de uma lixeira na comunidade da Cachoeirinha, que fica no Complexo do Lins, Zona Norte.
“Foi uma fatalidade incrível. Ele poderia ter deixado que dois subordinados entregassem a arma na delegacia, mas quis ir pessoalmente porque sempre foi proativo. Se não tivesse ido, não estaria na lanchonete no momento do assalto e estaria vivo agora”, lamentou o irmão.
As duas mortes são investigadas pelo delegado Brenno Carnevale, da Delegacia de Homicídios na Barra. Pelo menos um dos integrantes da quadrilha que matou o sargento, um jovem de 21 anos, foi identificado. Até a manhã desta terça-feira, 27 de fevereiro, porém, ninguém havia sido preso.
A 9 mm do sargento Cazuca foi entregue ao Instituto de Criminalística para perícia. Depois, ficará à disposição do juiz do inquérito, que decidirá se será destruída ou devolvida à família do sargento. Leonardo Cazuca, irmão do militar, já sabe o que fazer com a arma. “Pedimos para o Exército buscá-la e devolver à Taurus.” A decisão não foi tomada por motivos emocionais, mas pragmáticos: quitar a dívida que o irmão conferiu ao comprar a arma. Sete parcelas da pistola 9 mm ainda têm de ser pagas, e eles decidiram não voltar a adquiri-la.