Murilo Salles revelou por ocasião da retrospectiva de sua filmografia como diretor e diretor de fotografia na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, em 2016, que seu próximo filme seria um documentário sobre a Baía de Guanabara. O projeto estava em andamento desde pelo menos dezembro de 2014, quando fora selecionado para receber do Fundo Setorial do Audiovisual, no edital Prodecine 05 – Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Brasileiro, recursos destinados “prioritariamente a projetos de longa-metragem com propostas de linguagem inovadora e relevância artística”.
Há quem diga que ser selecionado em um edital desses pode ser mais um castigo do que um apoio! A penitência seria fazer o filme. Prova disso é terem sido necessários sete anos até Uma Baía (2021) poder estrear em outubro passado no 64º DOK Leipzig – Festival Internacional de Leipzig para Filmes Documentários e Animados.
As gravações do documentário foram realizadas entre abril de 2016 e dezembro de 2018, e o filme acaba de participar, com cinco outras produções, da Première Brasil – competição Longa documentário do 23º Festival do Rio, encerrado domingo (19/12). O prêmio de Melhor Documentário foi dado a Rolê – Histórias dos Rolezinhos (2021), de Vladimir Seixas.
Há algo disfuncional e aberrante na cinematografia deste nosso país que submete um dos seus mais ilustres cineastas, durante sete anos, a um árduo período de empenho pessoal para conseguir fazer um documentário sobre a baía na qual passou parte da infância. Região da qual os habitantes dos sete municípios do entorno limítrofe, que incluem o Rio de Janeiro, Niterói e São Gonçalo, podem até se considerar íntimos, mas, na verdade, mal conhecem.
Ao falar do projeto em 2016, Murilo explicou: “É um documentário que eu estou me devendo porque morei dos 3 aos 7 anos em Paquetá e foi uma coisa muito incrível na minha vida. E estou fazendo um filme sobre a Baía de Guanabara, sobre as populações, as pessoas, os animais, peixes, cavalos, caranguejos, que moram no entorno e circulam e que são relacionados à Baía. Não é um filme de denúncia ecológica, nada disso. É uma relação do homem com a Baía. Essa coisa tão mágica e tão devastadora.” O aspecto destruidor é explícito no documentário, e a magia à qual Murilo se refere talvez esteja no conjunto de circunstâncias inusitadas que ele registrou ao longo do caminho.
A suíça Annina Wettstein, integrante do comitê de seleção de Leipzig, ao apresentar Uma Baía no site do Festival, descreve as pessoas da periferia vistas no documentário como “assalariados de micro renda levando uma vida modesta”, e completa: “Em oito capítulos, este ensaio documental medita sobre seus habitats em volta da baía, acompanhando as atividades repetitivas e fisicamente exaustivas de seres humanos e animais de carga. Perspectivas incomuns, trabalho de câmera cuidadoso e um design de som comovente tornam essas observações um comentário sobre a crise no Brasil. Murilo Salles […] ilumina a estreita ligação entre o espaço geográfico e a desigualdade social.”
Malgrado tais predicados, Uma Baía permanece pouco conhecido, quase anônimo, o que é nada menos do que revoltante. À primeira vista, fora o comentário do sempre atento Carlos Alberto Mattos, publicado há nove dias (13/12) em seu blog, a recente exibição no Festival do Rio parece ter passado em branco.
Na contracorrente da mania de tentar reproduzir sem sucesso a lição mal compreendida do cinema baseado em conversas de Eduardo Coutinho, a linguagem de Uma Baía reduz a expressão falada ao essencial, exclui entrevistas e narração em off, e é, de um lado, primordialmente visual, com fotografia de Léo Bittencourt e Fabrício Motta, e de outro sonoro, incluindo aí música e edição de som a cargo de João Jabace e Sarah Lelièvre. Captar imagens e sons do embate do homem com o meio ambiente, na busca de meios de vida e subsistência, é o foco, deixando palavras, frases e enunciados de fora. Sem interagir com os personagens, Murilo observa, mas também reencena uma gama diversificada de atividades, algumas surpreendentes, além de registrar seus frutos e a destinação de seus resíduos.
O viés de Murilo faz dele um documentarista peculiar, tendo sido educado em artes plásticas e acumulado vasta experiência anterior como fotógrafo e diretor de fotografia. Filho de uma professora de história da arte que também pintava, ainda adolescente Murilo fotografava reproduções publicadas, a pedido da mãe, para ela projetar nas aulas. O tema do seu livro Murilo Salles – Fotografias 1975-1979, lançado em 2019 pela Editora Numa, é “a cor, o quadro, a luz, não as pessoas”, segundo Murilo (entrevista a Manoella Smith, Folha de S.Paulo, agosto de 2019), enquanto no documentário que vem de estrear as pessoas são parte central do projeto, além da cor, do quadro e da luz.
O requinte formal de Uma Baía, aliado à força e ao poder de sedução de suas imagens, assim como da trilha sonora e musical, não impedem Murilo de situar o documentário em uma época precisa e no contexto mais amplo do que o entorno da Baía. Embora recorra a configurações visuais quase abstratas, o viés formalista é evitado, e o espectador atento tem como saber, pelo breve noticiário da televisão, que a labuta diária de um personagem ocorre, em 2016, enquanto o mandato da presidente da República está sendo decidido em Brasília.
Mesmo assim, Murilo parece às vezes seduzido pelo encanto dos belos planos que se sucedem, levando algumas sequências e o documentário como um todo a se prolongarem um pouco demais.
Uma Baía resiste íntegro, porém. Nem por isso deixa de ser impactado com força por ter estreado no Brasil durante a pandemia do Sars-CoV-2, quando já havia mais de 617 mil vítimas da Covid-19 no país e persiste a incerteza quanto ao futuro por conta da nova variante e da gripe. Os filmes brasileiros da era a.P. (antes da pandemia), em especial os documentários, foram, de maneira geral, bastante afetados. Mesmo os que escapam, como é o caso de Uma Baía, da síndrome de envelhecimento precoce, vistos agora não têm como evitar de todo parecerem um tanto anacrônicos. São filmes situados no passado, sem vínculo com eventos da atualidade. O espectador talvez estranhe a falta de qualquer menção à movimentação política com vista à eleição presidencial do próximo ano, assim como poderá ter um sensação de vazio frente a uma pergunta: como a pandemia terá afetado as pessoas e o ambiente vistos no filme?
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Após recesso de fim de ano, a coluna voltará a ser publicada em 5 de janeiro.