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Uma bala para dom Pedro Casaldáliga

O relato de um jovem repórter que dividiu o quarto com o “bispo vermelho” e testemunhou uma das muitas ameaças de morte ao religioso

Aureliano Biancarelli | 20 ago 2020_16h38
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Dom Pedro Casaldáliga Plá, bispo emérito de São Félix do Araguaia, morreu no último dia 8, aos 92 anos, depois de três décadas convivendo com o mal de Parkinson. O povo o chamava bispo dos pobres, e os fazendeiros, de bispo vermelho. Desde que chegou ao Brasil, em 1968, vindo da Espanha, sempre foi um homem ameaçado de morte. A primeira tentativa de que se tem notícia foi em 1971, quando um pistoleiro, arrependido, confessou ao bispo que havia sido contratado para matá-lo. Por mero acaso, fui testemunha de uma dessas ameaças. 

Era 1972, o país vivia a ditadura militar, eu tinha 22 anos e cursava o terceiro ano de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. À noite trabalhava como “contador de linhas” produzidas pelos linotipistas do Estadão. Consegui estágio na redação do jornal, no 6º andar do prédio da Major Quedinho. Era um estágio informal, sem registro nem pagamento. Eu só queria poder trabalhar na redação. Num daqueles dias, a pauta me incumbiu de checar uma denúncia feita por um grupo de desapropriados. Eles se queixavam de que a Prefeitura de São Paulo os chantageava para que aceitassem valores menores.

Propus ao advogado das vítimas que me incluísse no grupo, e assim pude gravar as propostas feitas pela prefeitura e publicá-las no jornal. Quando a matéria saiu, o advogado me convidou para uma conversa. Tinha me saído tão bem – ele disse – que guardava para mim um furo nacional. Um grupo de índios Xavante do Mato Grosso estava morrendo de tuberculose, ninguém se importava com eles, enquanto ele – o dono das terras – tentava salvá-los levando à aldeia caixas de medicamentos. Seu convite era para acompanhá-lo nessa “entrega”, e eu retrataria numa reportagem seus esforços para salvar os índios. Aceitei com a condição de que minha chefia não soubesse. Se relatasse o episódio e o convite na redação, mandariam um repórter mais experiente, não um foca sem registro.

Uma semana depois embarcamos em Congonhas com destino a Cuiabá. De lá, seguiríamos em camioneta até as margens do Rio Couto de Magalhães, 1 mil km de estradas de pó e buracos, onde ficava a “aldeia doente”. Era minha primeira viagem de avião e me esforçava por disfarçar a ansiedade e o medo. Observava o que os outros faziam e fazia a mesma coisa. Foi assim que aprendi a apertar o cinto.

O advogado mantinha sobre as pernas uma maleta de couro que abriu um tempo depois que o avião acendeu as luzes para fumar. Sobre a camada de documentos, repousava um revólver calibre 22, que ele fez questão de exibir. Na época, não havia controle de armas nos aeroportos. O advogado mostrou o revólver sem se incomodar com comissários de bordo que caminhavam pelo corredor nem com o olhar dos vizinhos de assento. Foi então que revelou suas intenções. “Estou tentando salvar esses índios. Ou eles se retiram das minhas terras, ou vão morrer pela doença ou pela bala.”

Era, na verdade, um fazendeiro tentando ampliar suas posses na Amazônia, não um advogado preocupado com os índios. No voo, a conversa se estendeu – eu quase mudo – até desembocar no nome de dom Pedro Casaldáliga. Ele já era odiado pelos grandes proprietários, garimpeiros, posseiros, desmatadores em geral. “Já devia estar morto ou na cadeia, esse comunista subversivo. Guardo uma bala para ele”, disse o advogado fazendeiro, esperando alguma manifestação de minha parte.

Meu anfitrião percebeu logo que eu não era parceiro de seus propósitos nem de suas preocupações. Eu estava viajando com o “inimigo”, e não podia dizer isso nem tinha um meio de voltar atrás. Meu anfitrião não podia imaginar que, além de admirador de dom Pedro Casaldáliga, eu tinha o privilégio de recebê-lo na república de estudantes onde morava. Quando o bispo viajava a São Paulo, tinha o apoio de amigos que dividiam com ele seus trabalhos no Araguaia.

Um desses amigos era Antonio Carlos de Moura Ferreira, também estudante de jornalismo na ECA-USP. Eu o conheci nas aulas de antropologia do professor Egon Schaden, respeitado dentro e fora do país por seus estudos sobre indígenas. Moura era um jovem imbuído do mais puro sentimento de justiça, inconformado com a desigualdade. Compartilhava as lutas de dom Pedro pelos moradores do Araguaia. Mais tarde, terminado o curso de jornalismo, Moura se fixou na região e se dedicou inteiramente à sua “militância cristã subversiva” ao lado de dom Pedro. Morreu de câncer, muito jovem, depois de se estabelecer com a família em Goiânia. Tomo a liberdade de lembrá-lo nesta pequena homenagem por conta de seu empenho pela igualdade, da qual nunca desistiu.

Foi Moura quem me convidou para dividir a república onde morava, no número 359 da Rua das Palmeiras, em Santa Cecília. Ficava no 14º andar de um prédio que no térreo abrigava um supermercado. Nessa república conheci dom Pedro Casaldáliga. Com frequência ele se instalava ali, silencioso na sua presença como hóspede. A república tinha dois quartos, cada um com dois beliches, e dom Pedro preferia sempre a cama de baixo. Antes de se recolher num sono quieto, falava de suas preocupações e angústias com o povo do Araguaia. Era um entusiasta da vida e um poeta cativante. Às vezes, antes de dormir, recitava alguns dos seus versos, com sotaque catalão. Suas passagens preocupavam dona Zefa, que zelava pela república. Sempre se perguntava pela “comida do bispo”, embora dom Pedro se alegrasse com pratos simples à moda do sertão, arroz, feijão e alguma carne.

 

Dom Pedro Maria Casaldáliga Plá nasceu em Balsareny, na província catalã de Barcelona, no dia 16 de fevereiro de 1928. Ingressou na Ordem Claretiana, consagrada às missões, e foi ordenado sacerdote em 1952. Em 1968, ano em que a ditadura implantou o AI-5, desembarcava em São Félix do Araguaia, região mato-grossense conhecida na mídia pela pobreza e pela disputa que a vasta terra “sem dono” despertava na elite econômica do país, incentivada pelo regime militar. Em 1971, foi ordenado bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Amava tanto seu povo e seu rio que pediu para ser enterrado às margens do Araguaia, no cemitério Karajá, onde estão corpos de índios e trabalhadores sem terra explorados ou assassinados por grileiros ou a mando de grandes proprietários da região. Assim foi feito na tarde no último dia 12.

O bispo e sua gente foram duplamente perseguidos. De um lado, sofriam a pressão e ameaças de fazendeiros, grileiros e empresários em busca de terras. De outro, o grupo da Prelazia – religiosos, agentes pastorais e a população local – era associado à Guerrilha do Araguaia, que se estendeu de fins dos anos 1960 a 1974. Documentos do Acervo da Prelazia de São Félix e historiadores relatam torturas, invasões de residência e toda sorte de violência contra dom Pedro, moradores e membros leigos da Prelazia. Moura Ferreira e José Pontim – que foi prefeito e vereador em São Félix do Araguaia – estavam entre os leigos torturados. Os militares buscavam indícios de que haveria ligação entre a Prelazia e os guerrilheiros do Araguaia.

No entanto, a Guerrilha do Araguaia ocorria no Sul do Pará, nas margens do mesmo Araguaia, bastante distante da Prelazia de São Félix. Para os militares era incompreensível que jovens abandonassem estudo e trabalho para se juntarem a um bispo estrangeiro. Por trás, só poderia estar a guerrilha, patrocinada pelo PCdoB, acreditavam. Para dom Pedro, o inimigo eram a injustiça e a violência impostas aos moradores e índios. O responsável era um governo que incentivava o avanço das novas fronteiras agrícola e econômica, com o empenho de órgãos como a Sudam – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – e o Basa, o Banco da Amazônia. 

Incansável, cheio de coragem na sua estatura franzina, dom Pedro era admirador de Che Guevara e Fidel Castro. Foi um animador da Teologia da Libertação e implantou nas escolas da Prelazia o método Paulo Freire de educação. Está entre as lideranças mais representativas da Igreja Católica na América Latina. Participou da criação do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e da CPT (Comissão Pastoral da Terra). O mais contundente defensor da Reforma Agrária, era tido como o inimigo mais ferrenho pelos latifundiários. Quando fui convidado pelo advogado fazendeiro para a reportagem com os Xavante, dom Pedro já era conhecido, dentro e fora do país, por dois de seus principais textos. Um deles, de 1970, tratava da Escravidão e Feudalismo no norte do Mato Grosso, no qual descrevia os desmandos na região. No ano seguinte, já nomeado bispo da Prelazia de São Félix pelo papa Paulo VI, publicou Uma Igreja da Amazônia em conflito com o Latifúndio e a marginalização social. No livro, ele faz uma detalhada denúncia contra os grandes proprietários de terra, citando nomes de empresários e suas empresas.

Uma de suas poesias, batizada Confissão do Latifúndio, traduz  o que pensa dos latifundiários e suas cercas, suas queimadas e suas leis:

“Por onde passei,

plantei a cerca farpada,

 plantei a queimada.

Por onde passei,

 plantei a morte matada.

 Por onde passei,

matei a tribo calada,

 a roça suada,

a terra esperada…

 Por onde passei,

 tendo tudo em lei,

 eu plantei o nada.”

 

Naquele início dos anos 1970, a Funai buscava o reconhecimento para as reservas Xavante, reconduzindo grupos que haviam perdido suas terras originais. Com a reportagem, o advogado fazendeiro buscava chamar a atenção para o abandono em que vivia aquele grupo, ao mesmo tempo que reivindicava como sua parte daquelas terras. Já sem acreditar na minha parceria, o fazendeiro despejou as caixas de antibióticos no meio da aldeia e informou que eu ficaria ali até o seu retorno. Dois ou três índios adolescentes falavam português. Apontaram a maloca de sapé onde eu deveria permanecer. Era a farmácia da Funai, com as prateleiras de galhos trançados, tomadas por cápsulas, comprimidos e frascos para injeção, tombados, quebrados, empoeirados.

Na tribo me ofereciam arroz mal cozido com uma gema de ovo, e as mulheres me jogavam pedras quando eu tentava fotografar o jogo de futebol. Eu dormia de calças e botas no jirau de galhos trançados, um metro acima do solo, coçando bichos invisíveis que percorriam meu corpo. Depois do arroz salgado, passava a noite ardendo de sede, sem coragem para atravessar a aldeia e buscar água no rio. A maloca não tinha portas; na madrugada, entravam cães enfurecidos e mães com crianças chorando no colo, à procura de remédio. Tateavam no escuro e levavam qualquer coisa. Pensava comigo: os desastres na área da saúde um dia certamente estarão listados entre as causas do genocídio do povo indígena.

No início da noite, os homens se reuniam em roda prometendo guerra aos fazendeiros vizinhos, depois de rezar em latim dois terços inteiros. A vigília terminava em gritos e ameaças ao inimigo, que um garoto Xavante tentava traduzir, esforçando-se para me acalmar. As noites ali coincidiram com o ritual que batizava os meninos em adultos, tomadas por uivos, gritos e gemidos que me gelavam a alma.

O fazendeiro só apareceu uma semana depois. Eu estava emagrecido e chocado com as imagens que se misturavam. Índios que vestiam várias camisetas, umas sobre as outras, estampando times de futebol, trocadas com turistas que transitavam por estradas a alguns quilômetros de distância. Grupos que rezavam em latim enquanto prometiam às entidades guerra aos invasores fazendeiros. Frascos de remédio sem rótulos que substituíam as curas tradicionais. Espingardas e anzóis que trocaram pelo arco e flecha, mas que já não conseguiam evitar a fome. 

Nunca mais soube do advogado fazendeiro que reservara uma bala de seu revólver para dom Pedro Casaldáliga. Em plena ditadura, a matéria nunca foi publicada.

*(Pedro Casaldáliga, em Versos Adversos – Antologia Editora Fundação Perseu Abramo – 1ª edição, 2006).

 

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