No primeiro verso cantado, o amante pede à sua amada: “olha pra mim” (Look at me, o título da música). O pedido é repetido e, na terceira vez em que surge, ascende à coƒndição de uma súplica. Na versão acústica, só o canto e o violão de John Lennon, a voz é falhada, vazada de ar, como se lhe faltasse a sustentação necessária para afirmar com a devida força tais demandas. Por isso deve ela ser repetida duas, três vezes. Essa fragilidade de fundo é confirmada pelos demais versos. Quando não está pedindo um olhar, o amante aparece preso num labirinto de dúvidas. O que devo ser? Quem devo ser? O que devo fazer? O que posso fazer por você? A canção mimetiza a perda de estabilidade da identidade pessoal, o modo como o sentimento amoroso força uma redefinição profunda da auto-imagem. Quem sou eu?, pergunta a voz de Lennon, para logo depois responder: ninguém mais sabe, só eu. Mas é mentira. E tanto é, que no verso seguinte ela própria se corrige: repete a pergunta (quem sou eu?) e diz que ninguém mais pode ver, apenas você e eu. A identidade individual foi aberta, passando a ser estabelecida não por um, mas por dois; tornou-se outra coisa, talvez a fusão de John com Yoko. “Olha pra mim!” – preciso do seu olhar para saber quem sou. Naturalmente, o “quem sou eu?” desliza para o “quem somos nós?” – a indagação aberta, sem resposta, que finaliza a canção. No fim das contas, talvez seja melhor falar de uma simples perda de identidade. Perda a um só tempo prazerosa e perturbadora. Estou bêbado e feliz, mas já não sei como voltar para a casa. Sinto-me aliviado, liberado de minha cansativa identidade individual, mas adentro um território movediço sobre o qual não tenho controle. Na mitologia grega, Eros quase sempre representa um deslocamento, uma afastamento do mundo familiar. Movimento na direção do desconhecido. É a um só tempo rapto e tentativa de fuga – Proserpina é seqüestrada por Hades; Helena por Páris; e Dafne é perseguida com afinco por Apolo. É imenso o esforço de nossa cultura para domesticar Eros, transformá-lo em pura previsibilidade, conforto e segurança. Sua base, no entanto, é necessariamente instável, porque pressupõe certo abandono de si. Hannah Arendt, filósofa que muito sofreu na mão de Eros, concebeu sua utopia pessoal na possibilidade de “amar sem perder a identidade”.
Ideias semelhantes deviam rodar na cabeça de Lennon quando compôs Look at me, nos recessos do ano de 1968, durante os intervalos das gravações do White album dos Beatles. Foi nessa altura que Yoko Ono literalmente tomou o lugar de Cynthia, sua esposa anterior. Mas Yoko era antes companheira do que esposa. Os dois encarnaram o arquétipo do casal/mundo dos anos 1970, uma mistura da antiga estabilidade conjugal com uma nova disponibilidade para a aventura e o delírio. A figura feminina deixava de encarnar um princípio estático (a guardiã do lar) para se tornar companheira de viagem. Look at me seria gravada no primeiro disco solo de Lennon. Na capa, ele aparece serenamente recostado no tronco de uma árvore, com Yoko deitada em seu colo. É uma impressão comum nas fotos de John e Yoko: a de que estão isolados do resto do mundo, numa espécie de retorno mágico ao casal primordial. O mundo que venha até eles, flagrá-los felizes e de pijamas, com caras de nabo, em cima de uma cama.
Das ansiedades juvenis (Help, I’m a loser) às inseguranças da vida adulta (Jealous guy), a exposição corajosa e direta das próprias fraquezas foi uma constante na poética de Lennon. Soube, como poucos, transformá-las em potência criadora. Numa outra volta do parafuso, Look at me parece remeter à imensa carência estrutural de seu compositor. O olhar pedido com tanta insistência à amante pode ser lido à luz (ou à sombra) da rejeição materna por ele sofrida. Quem pede tal olhar é, no fundo, a “pequena criança dentro do homem” (Woman). A hipótese não é tão arbitrária quanto parece: Look at me foi composta no mesmo momento que Julia, a canção onírica que Lennon dedicou à sua mãe; faz parte do mesmo ciclo criativo. Mais ainda: foi feita com a mesma substância musical que Julia; o mesmo estilo de dedilhado, a mesma levada, a mesma tonalidade introspectiva, o mesmo melancólico mood. São canções irmãs, frente e verso da mesma moeda. Representam a suave transição entre mãe e amante, Édipo em estado puríssimo – o chamado por “Juliaaaa” ressoando no fundo do “oh, my love”, de Look at me. “Nenhuma mãe é mais poderosa do que aquela que desdenha o filho. Nenhuma é mais perfeita do que a mãe morta precocemente. Julia fez as duas coisas.”, escreveu Maria Rita Kehl num breve texto sobre Mother, que, mais do que uma canção, parece uma contribuição de Lennon para a teoria psicanalítica.
Freud sugeriu que as três figuras femininas na vida de um homem são a mãe, a mulher amada e a morte. Com intensidade incomum, ficaram as três marcadas no destino de Lennon.