Quando tinha 14 anos, Telma Taurepang conheceu de perto a luta pela demarcação de terras indígenas no Brasil. Um fazendeiro questionava a propriedade de um terreno demarcado para a comunidade Araçá que seu tio, o cacique Arlindo Tenente, cercava para proteger. Segundo Telma, policiais civis de Roraima levaram seus tios para dentro de um helicóptero e prometeram jogá-los lá de cima se não revelassem informações que eles não tinham. Foi esse episódio que a inseriu no movimento indígena nacional. Hoje, mais de trinta anos depois, Telma é a primeira mulher eleita tuxaua (chefe) pelo povo Taurepang e uma das fundadoras do Parlaíndio Brasil, o primeiro parlamento do movimento indígena brasileiro, criado para discutir questões referentes aos povos originários e aumentar a presença deles no Congresso Nacional. Tradicionalmente, oposto de cacique é ocupado por homens, e as cacicas ainda são poucas. Taurepang, que defende maior participação feminina no movimento, tem um sonho: ser a primeira mulher indígena a ocupar um assento no Senado. Em 2018, como candidata do PCB pelo estado de Roraima, ela concorreu ao pleito que elegeu Mecias de Jesus (PRB) e Chico Rodrigues (DEM). Rodrigues é ex-vice-líder do governo Bolsonaro. Ele ganhou notoriedade nacional dois anos depois da campanha ao ser flagrado com dinheiro na cueca durante uma operação da Polícia Federal.
Em depoimento a Hellen Guimarães
Meu nome, dado pelo meu povo, é Telma Taurepang. Pertenço ao povo Taurepang, da Comunidade Indígena Araçá, em Roraima. Vivo na aldeia Mangueira, em Amajari, também em Roraima, e opto pelo isolamento voluntário. Cheguei a morar na cidade para fazer o ensino médio, porque não tínhamos na aldeia. Tenho uma convivência pacífica com os não indígenas.
Minha primeira lembrança da luta pela terra é dos meus 14 anos, no meu próprio território. Nossa terra foi demarcada em 1982, mas os conflitos continuaram frequentes e acirrados. Os fazendeiros não tinham muito respeito pelos limites. Meu tio, cacique Arlindo Tenente, resolveu fazer uma cerca de arame. O fazendeiro proibiu que ele fizesse a cerca, alegando que a propriedade era dele e não nossa, o que não era verdade. Houve brigas com uso de armas. Não perdemos ninguém nesses conflitos, mas houve muita ameaça. Meu pai está vivo, aqui do meu lado, lembrando desse episódio.
A Polícia Civil de Roraima, na década de 1980, era muito cruel, sabe? Alguns policiais se envolviam em atos a favor dos fazendeiros, contra os povos indígenas. Eles pegaram Arlindo, tio Salomão e o tio Mundico, as lideranças antigas e de porte, que estavam na linha de frente. Eles foram encapuzados, colocados dentro do helicóptero da polícia e levados para o ar. Disseram que, se eles não contassem o que eles queriam naquele momento, seriam jogados lá de cima. Os policiais alegavam que eles estavam envolvidos em coisas erradas no território. O que eles iriam contar? O que eles iam falar sobre a acusação que estavam sofrendo se não participaram daquele momento? Foi daí, observando essa luta do meu pai, dos meus tios, das minhas lideranças, que comecei a lutar a favor do meu povo. Estou nessa batalha há mais de 30 anos.
Em 2009, retornei à minha comunidade, Araçá, porque desde 2005 eu estava em uma coordenação para trabalhar diretamente com o meu povo dentro do departamento de apoio às comunidades indígenas da Prefeitura de Amajari (RR). De volta, me tornei, por votação dentro da minha comunidade Mangueira, a primeira mulher tuxaua do povo Taurepang.
Em 2010, fui convidada para fazer parte da coordenação do Conselho Indígena de Roraima, uma das organizações da linha de frente para lutar pelo território dos povos indígenas. Fiquei lá até 2017. Em 2018, a gente teve a primeira discussão política mais acirrada para entender que a política partidária tem importância para as decisões dos nossos territórios. Compreendi isso e fiz minha partida, fui para a discussão sobre a criação de nomes e lideranças para lutar, dentro do Congresso, para que nossos direitos sejam assegurados diretamente por ele. Saí da minha aldeia para brigar por uma vaga pelo meu estado. Fui a primeira mulher Taurepang a concorrer a uma vaga ao Senado.
Considero o diálogo com os governos muito importante, se nos ouvissem. Mas eles não nos ouvem. A gente tenta o diálogo, mas o grande problema é que eles não entendem nosso modo de vida, nossa forma de viver. A vida dos povos indígenas é necessária para que os outros meios de vida sobrevivam. Eu não gosto nem de usar essa palavra, indígena; para mim, é uma agressão muito grande. Quando os colonizadores chegaram ao Brasil e aportaram com suas caravelas, eles acharam que estavam na Índia. Mas nós somos povos de várias etnias: Taurepang, Wapichana, Macuxi, Xoclei, Xavante, enfim. Essa importância é a que eles não nos dão. Esse diálogo é importante, mas a partir do momento que eles nos ouçam como sistema. Porque o sistema é bruto, né? E esse sistema é agressor a nós, povos indígenas, quando cria, a partir de um Congresso, normas contra os nossos direitos.
A Funai já teve uma importância muito grande para nós. Era como se fosse uma embaixada, porque parece que nós não estamos dentro dos nossos territórios. Parece, a todo tempo, que somos imigrantes, que não temos direito a viver em nosso território. Somos estrangeiros nas nossas próprias terras. A Funai foi criada para ser tutora de nossas etnias, mas também fez muita coisa que permitiu a criação de sistemas que violam nossos direitos. Se a Funai fosse uma interventora em favor dos direitos dos povos indígenas, seria de fato uma casa representativa para nós.
O Parlaíndio está sendo criado para dar voz às lideranças tradicionais e visibilidade à luta dos povos indígenas. Para juntos trazermos essas questões para a sociedade, para ser um meio de comunicação direto com uma sociedade que não ouve a voz dos povos indígenas, principalmente dos nossos líderes tradicionais. Foram eles que lutaram pelas primeiras demarcações de nossas terras no Brasil. Foram eles que encaminharam essa geração que está aí, para continuarmos a caminhada do cacique Raoni, do cacique Aritana (que não está mais no nosso meio), de dizer a essa sociedade que nós estamos vivos.
São aqueles que me antecederam, como meu tio Arlindo Tenente, como meu tio Raimundo Tenente, que não estão mais comigo, mais o meu pai Augusto, da etnia Wapichana, que continua aqui liderando para que os jovens não esqueçam de suas lutas. Os caciques originários, as cacicas – na época não existiam mulheres líderes, mas hoje surgem várias que lutam e dão voz a nossas mulheres indígenas. Quero destacar aqui uma mulher Pankará, Raimundinha Pankará, que lutou com seu povo lá no Nordeste. Os nossos ancestrais nos guiaram no caminho onde estou: o de dar cada vez mais voz aos povos indígenas do Brasil.
O Parlaíndio é essa voz. Ele chega com as lideranças originárias, que começaram essa luta e estão ainda vivas, para que possam nos conduzir a esse sonho de alcançar o avanço dentro do Congresso. Precisamos eleger lideranças de territórios indígenas para que eles ocupem o Congresso. Quando você balança o maracá, quando você se pinta com urucum, com jenipapo, você está dizendo à sociedade: “Nós estamos vivos. Nós somos povos resistentes. E nós resistimos para a nossa própria existência.”
Um dos meus maiores sonhos é ver todas as nossas terras demarcadas. Na realidade, isso sequer devia ser necessário, porque, se nós somos povos originários, nós nem precisaríamos demarcar terras. Mas a gente tem que brigar com o sistema para que ele reconheça que aqui existe uma Taurepang, um Wapichana, um Xavante, um Xoclei, para que haja de fato essas demarcações. Vou continuar nessa caminhada. Espero ser a primeira Taurepang no Brasil a chegar ao Senado.