O cenário é o La Mascotte, tradicional restaurante de frutos do mar em Montmartre, na capital parisiense. Sentada numa das mesas da varanda, usando a tela do celular como espelho, a artista Manauara Clandestina ajeitava o cabelo quando o garçom, abrindo uma garrafa de vinho branco, comentou: “vous êtes très belle, madame!” (“a senhora é muito bonita”). Em seguida, enchendo de vinho o copo do advogado Bernardo Bessa, marido de Manauara, o atendente fez uma reverência com a cabeça e disse “Monsieur” (senhor), indicando que Bernardo deveria experimentar a bebida. Apenas depois que o único homem à mesa provou e aprovou o vinho, Manauara e esta jornalista foram servidas.
Manauara Clandestina e o marido fizeram uma viagem pela Europa em meados de abril, tendo como ponto de partida as festividades de pré-abertura da Bienal de Arte de Veneza, em cartaz até 24 de novembro, onde a artista tem dois trabalhos expostos. Pela primeira vez em 129 anos de história, a Bienal tem à frente um latino-americano, o carioca Adriano Pedrosa, curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo, que elegeu artistas à margem do mercado internacional, seja por questões de nacionalidade, raça ou gênero, como figuras de destaque do evento.
Batizada Stranieri Ovunque – Strangers Everywhere (expressão em italiano e em inglês que, traduzida significa Estrangeiros por Toda Parte), a megaexposição destaca talentos emergentes, como Manauara Clandestina, mas também nomes consagrados nunca convidados a expor em Veneza, caso da mexicana Frida Kahlo (1907-1954). A maior edição já realizada da mostra, com orçamento de 19 milhões de euros, se organiza em torno de temas que estão longe de ser novidade na cena contemporânea, como decolonialismo, migração, alteridade, mas que sob o olhar de Pedrosa apresentam novas perspectivas.
Numa Itália governada por uma primeira-ministra de extrema direita, Giorgia Meloni, contrária ao casamento homoafetivo e que combate com mão firme a entrada de imigrantes no país, o curador põe em primeiro plano criações de artistas provenientes da América Latina, África, Ásia e do mundo árabe. Objetos comumente qualificados como artesanato – cerâmicas, tricôs, crochês, patchworks e bordados – são tratados com o mesmo respeito e reverência que as obras canônicas sempre receberam.
A escolha do curador brasileiro dividiu opiniões. “Voltei para casa com o sentimento de ter visto uma exposição que soube tomar a temperatura do mundo”, elogiou o jornalista cultural Joseph Ghosn, do jornal francês Le Figaro. “Surpreendente e reveladora”, declarou Yasmine Youssi, da revista francesa de cultura Télérama. “Nostálgica, entediante, carente de contexto e de poesia”, escreveu Ángela Molina, do jornal espanhol El País. “Excêntrico, bizarro e lindo”, contemporizou o The Times, da Inglaterra. “A edição atual é, na melhor das hipóteses, uma oportunidade perdida e, na pior, algo semelhante a uma tragédia”, comentou Jason Farago, do The New York Times.
Manauara Clandestina personifica a proposta da atual temporada em Veneza: brasileira, transexual, autodidata e descendente de indígenas (suas duas avós eram filhas de mulheres indígenas com homens brancos; por parte de pai, ela é afrodescendente). Até chegar à consagração na Bienal, ela teve de percorrer vários territórios, no sentido literal e figurado. Por ter nascido, há 31 anos, num corpo designado masculino, sabe bem o que é sentir-se “estrangeira por toda parte”. Por 18 anos, até dar início à transição de gênero, foi forasteira na própria pele.
O sentimento de ser “de fora” vem também da longa peregrinação que Manauara fez pelo interior do Amazonas ao lado dos pais, missionários evangélicos, entre os 9 e os 15 anos de idade, com inúmeras viagens de barco. Naquela época, Manauara não tinha coragem de formalizar nem para si própria a vontade de se dedicar às artes, mas flertava com elas liderando as apresentações de música e dança na igreja. Tendo como plateia os fiéis, cantava e dançava e, em casa, lia muito. “Só textos bíblicos!”, lembra. “O pavor de ser eu mesma era tão grande que eu buscava refúgio na Bíblia.”
Chegado o momento de ingressar no ensino médio, cobrou do pai a promessa que ele lhe havia feito ainda criança: permitir que ela retornasse a Manaus para morar com o irmão cinco anos mais velho e estudar em uma escola de melhor qualidade. No novo colégio, entrou para um grupo de teatro e foi apresentada a outras leituras, dentre elas clássicos da literatura brasileira, como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. “O teatro chegou rasgando tudo”, resume.
As descobertas em torno da própria personalidade e a vida noturna na capital amazonense tornaram difícil a convivência com os pais, que tiveram dificuldade em aceitar a mudança de comportamento. A situação se tornou insustentável e, aos 18 anos, brigada com a família, ela partiu para a capital paulista. “O processo de transição de gênero começou oficialmente quando eu desci do avião e pisei no chão de São Paulo. Naquele momento me senti sozinha. E livre!”
A mudança física começou pelo guarda-roupa. Um ano depois vieram a terapia hormonal e a alteração de nome e gênero nos documentos: Maria Leticia. “Meus pais sempre quiseram ter uma filha com esse nome. Viviam dizendo que um dia a Leticia iria chegar. Pois ela chegou!”. O encontro com a estilista Vicenta Perrotta, criadora do Ateliê TRANSmoras (espaço de produção de arte, moda e cultura voltado à comunidade trans, em atividade desde 2013 em Campinas), permitiu que ela explorasse diferentes linguagens (performance, arte têxtil, direção de arte, audiovisual, fotografia). Ali, Maria Leticia adotou oficialmente o apelido que ostenta até hoje. “Todo mundo me chamava de ‘a bicha de Manaus’, ‘a manauara’. O nome pegou”. Como sobrenome escolheu Clandestina, indicativo de seu não lugar no mundo e inspirada na canção do francês Manu Chao, sobre as dificuldades de ser outsider.
Manauara ganhava algum dinheiro como modelo fotográfico e de passarela, ou com performances na noite paulistana, mas precisava complementar a renda com outras atividades. Foi assistente administrativa e garçonete. Trabalhou instalando e consertando radares de fiscalização de velocidade nas rodovias paulistas. Mas nunca pensou que a arte fosse uma opção. “Eu levava esse desejo na brincadeira, porque não acreditava que pudesse ser aceita pelo mercado. Quem sofre preconceito acaba por internalizá-lo e passa a fazer um autoboicote.”
A situação começou a mudar em 2020 quando, encorajada pela artista mineira Cinthia Marcelle, Manauara inscreveu-se e foi aceita em um programa promovido pela Delfina Foundation, de Londres, em parceria com o Instituto Inclusartiz, do Brasil. Após uma residência artística de cinco meses na Inglaterra, rumou para Barcelona para uma temporada de oito meses no Centro de Arte Contemporânea Piramidón, misto de galeria de arte e “fábrica de criação”. A primeira obra escolhida pelo curador Adriano Pedrosa para figurar na Bienal de Veneza, intitulada Building, foi feita nesse período. O trabalho concebido a partir de áudios, fotos e fragmentos da memória de Manauara é uma homenagem ao pai e marca a reconciliação da artista com sua família. O vídeo com pouco mais de seis minutos é uma colagem audiovisual de linguagem ágil em que as afinidades com o “Pastor Carlos”, como é conhecido, ficam evidentes. Pai e filha compartilham a curiosidade pelo mundo (ele também migrou para São Paulo nos anos de juventude), a coragem de correr atrás dos próprios sonhos (intrigado pelo lado de dentro da televisão, seu Carlos participou da instalação da TV Amazonas, fundada na década de 1970) e o apreço pela vida em comunidade (a dele, religiosa; a dela, trans).
Outra intervenção exposta em Veneza, Migranta é um vídeo de 17 minutos que parte da experiência de Manauara ao ser barrada pela polícia no aeroporto de Barcelona em 2021. A artista teve seu passaporte retido por algumas horas, sem receber explicações. A história a inspirou na criação de um trabalho que mostra corpos rotineiramente oprimidos nos espaços públicos impondo sua presença com altivez, desfilando por diferentes cenários urbanos em roupas chamativas, customizadas pelas próprias participantes a partir de uniformes e acessórios fluorescentes semelhantes aos que usavam os policiais que tentaram impedir sua entrada na Espanha. “Nós, travestis, temos de nos unir, porque esse é o único jeito de fazer a nossa voz ecoar”, diz ela. “Se migramos para as grandes cidades ou para outros países, é porque não conseguimos nos manter vivas no lugar de origem. Foi por ser tão violento que o Brasil acabou se tornando um exportador de travestis. União e migração são estratégias de sobrevivência.”
Para os adeptos do “artivismo”, neologismo formado pela junção das palavras arte e ativismo, a estética é antes de tudo uma ferramenta de ação política. A “bienal dos excluídos”, como vem sendo chamada, conta com a participação de muitos criadores que, como Manauara, têm formação autodidata e trabalho militante. Para eles, a arte é um meio de fazer ecoar uma mensagem. Ainda que trabalhem sozinhos, muitos desses realizadores descrevem-se como coletivos, porque fazem parte de comunidades organizadas em torno de um mesmo projeto ou luta.
Autor de uma das criações de maior visibilidade, um mural de 750 m2 que cobre a fachada do pavilhão central na mostra, o coletivo acreano Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin) tem uma proposta bem definida do seu trabalho: “vendo tela, compro terra”, diz a frase que aparece no perfil do coletivo no Instagram. Todo o dinheiro proveniente da comercialização das criações dos artistas do grupo, em atividade desde 2013, é direcionado para a expansão e a proteção do território Huni Kuin, no Acre e no Sul do Amazonas.
Na cultura dos povos originários, especialmente, a criação artística nunca foi uma categoria em si mesma, e sim uma prática que permeia vários aspectos da vida. Nas aldeias, a arte está a serviço das bijuterias, dos utensílios usados para cozinhas e das pinturas corporais carregadas de significado. Para Denilson Baniwa, um dos mais conhecidos artistas indígenas do país e integrante do time de curadores do pavilhão brasileiro, a produção de seus pares realizada no modelo caraíba (palavra que designa o homem branco) tem o objetivo de “resolver problemas grandes”, como o da preservação da floresta e da cultura. “A atual arte indígena é comunitária, conceito que transcende o tempo por abranger tanto os nossos antepassados quanto os que ainda chegarão ao mundo”, diz.
Uma das obras da artista Glicéria Tupinambá (ela também assina como Célia Tupinambá) em destaque na ala brasileira da Bienal é um bom exemplo disso. Uma assembleia organizada em círculo, formada por cabideiros despidos, protege, no centro, um manto de penas. Cada cabide representa um manto ausente. A instalação começou a ser concebida em 2018 quando, a convite da antropóloga francesa Nathalie Le Bouler-Pavelic, Glicéria esteve em Paris para dar uma palestra sobre os “encantados” (seres não humanos) na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Na ocasião, ela teve a oportunidade de encontrar, na reserva técnica do Museu do Quai Branly, um manto tupinambá do século XVII, levado por antigos exploradores para a Europa. Esses mantos, sagrados para os tupinambás, são habitados por espíritos ancestrais na visão deles. “O manto que manipulei em Paris me disse que estava me esperando e que eu deveria resgatar a técnica de como produzi-los”, conta Glicéria. Foi a partir do exame detalhado desses artefatos que Glicéria recuperou um conhecimento precioso que havia se perdido. A experiência fez nascer nela a artista. E a ativista.
Histórias como essas talvez expliquem a decisão do papa Francisco de comparecer à Bienal, rompendo um isolamento de sete meses ao longo do qual todas as viagens estiveram suspensas para que ele pudesse se recuperar de uma cirurgia no intestino, assim como de outros problemas de saúde. A passagem do pontífice por Veneza em 28 de abril foi um acontecimento histórico. Desde a criação da Bienal de Arte, em 1895, nunca um papa havia se deslocado até a cidade para prestigiá-la. “Quando mostrei o projeto do Pavilhão da Santa Sé, Sua Santidade respondeu: ‘irei ver com os meus olhos'”, revelou o cardeal José Tolentino de Mendonça, comissário da participação da igreja no evento, em entrevista ao site Vatican News. No discurso de abertura da exposição em Veneza, Francisco elogiou o tema da Bienal: “Quando dizemos ‘estrangeiros em toda parte’, estamos a propor ‘irmãos em toda parte’.”
Diante da temática dessa Bienal, algumas perguntas se impõem: faz sentido que eventos e programas de incentivo às artes priorizem a identidade dos artistas? Isso não impossibilita que gente talentosa, mas que não se encaixa nos perfis priorizados, deixe de ser considerada? Ora, a baixa representatividade de trans, negros, indígenas e de mulheres na história das artes comprova que a identidade sempre influenciou o acesso às oportunidades. Durante séculos, e até muito recentemente, era preciso ser homem, branco e ocidental para ter uma chance de participar da mostra. O galerista Eduardo Fernandes, de São Paulo, acrescenta: “Do ponto de vista do trabalho em si, a identidade do artista é fundamental, porque estabelece toda a construção mental, emocional e cultural da produção. Se queremos artistas que reflitam o nosso tempo, é natural e desejável que os critérios se atualizem.” Fundadora do instituto Inclusartiz – que lançou Manauara Clandestina para o mundo -, a mecenas britânica Frances Reynolds diz que o programa de residências artísticas nasceu, justamente, da vontade de promover a diversidade. E nos lembra o óbvio: “O primeiro critério de seleção é sempre o da qualidade artística. Se o trabalho não for bom, não tem nem conversa!” Galerista de Manauara, Jaqueline Martins, da Martins&Montero, acredita que tamanho sucesso passa pela identificação que o trabalho da artista desperta nas pessoas. “Independentemente do gênero ou recorte social, todo mundo quer ser visto e acolhido. Pertencer. E é sobre isso que ela fala.”