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Uma embaixada no Apocalipse

A representação política como salvação do neopentecostalismo

Miguel Lago | 23 jul 2018_07h50
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As eleições deste ano se darão em condições muito diferentes das últimas. O tempo reduzido de propaganda televisiva, as severas limitações às fontes de financiamento e o fato de alguns políticos tradicionais estarem ou presos ou descapitalizados por escândalos de corrupção darão aos candidatos que tiverem base já constituída, militância gratuita e capilaridade no território vantagens especialmente grandes na largada. As lideranças evangélicas – que contam com tudo isso – serão protagonistas em outubro de 2018. Para além da ameaça de ruptura definitiva do princípio de separação entre Estado e Igreja, o avanço dessas lideranças pode significar também a refundação da ordem política e do fenômeno religioso sobre novas bases.

Na semana passada, Hidekazu Takayama (PSC-PR) afirmou que, “se houver mais representantes de Cristo no Parlamento”, ele tem “certeza de que os dias vindouros serão mais tranquilos”. O deputado é um dos fundadores e atual presidente da bancada evangélica, que, na sua conta, reúne “mais de 198 membros” no Congresso Nacional. Se ele estiver certo, 40% do Poder Legislativo é composto de “embaixadores de Deus”. Se a tendência deste ano é que as igrejas elejam um maior número de deputados, o que será do país se a bancada evangélica passar de 50%? Ficará mais fácil aprovar leis de cunho confessional. O primeiro efeito poderia ser, em tese, o fim da separação entre Igreja e Estado.

O fenômeno é ainda mais intrigante quando olhamos os poderes Executivos. No início do mês, num encontro com 250 pastores, o prefeito do segundo maior município do país lembrou aos presentes: “Nós temos de aproveitar a oportunidade que Deus nos deu de estar na Prefeitura para fazer esses processos andarem.” Sim o embaixador da Igreja Universal na Prefeitura do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, foi flagrado oferecendo vantagens em tramitações burocráticas e em obras para determinadas igrejas. Tratava-se, em suma, de uma “bolsa-pastor”: a Prefeitura prioriza as demandas das igrejas e desburocratiza exclusivamente para elas o processo de liberação de verbas, ajudando assim a melhorar a acessibilidade aos locais de culto e seu entorno. Esse subsídio indireto indica que se pode esperar um segundo efeito das eleições: o Estado a serviço das igrejas.

As promessas do prefeito carioca não pararam aí: contornando as dificuldades de praxe na saúde pública, ele também ofereceu aos fiéis um atendimento exclusivo e rápido – em até duas semanas – nas cirurgias de catarata e varizes. Mais do que posicionar a igreja como uma facilitadora da assistência social, o que o prefeito e os pastores a ele ligados esperam é, de fato, obter uma confirmação de sua doutrina religiosa. De fato, o neopentecostalismo sustenta-se em uma visão bastante pragmática e operacional dos milagres divinos. Se o pastor não entregar os milagres, pode perder fiéis, que se transferem para outra igreja, no agitado trânsito religioso brasileiro. Sendo assim, as vantagens oferecidas pelo prefeito tendem a facilitar a vida dos pastores a viabilizar os milagres. Os fiéis serão curados da catarata. E, como o culto funciona à base de testemunhos, os beneficiados pelas operações poderão atestar que, graças à sua fé foram curados  à imagem e semelhança do cego Bartimeu, de Jericó, cuja visão Jesus recuperou. Assim, a credibilidade da igreja junto ao seu público aumenta, garantindo a fidelização, a retenção de fiéis e, até mesmo, a expansão do credo. O terceiro efeito que podemos esperar do pleito de outubro é claro: os governos a serviço da retenção de fiéis.

 

Quase não se discute política externa no Brasil. Mas eis que a demanda mais concreta nessa área, com significativo apoio popular, é a da mudança da embaixada brasileira em Israel, passando-a de Tel Aviv para Jerusalém. A petição do Conselho Apostólico Brasileiro, uma das principais organizações que congregam diferentes denominações, tem o apoio de diversos parlamentares da bancada evangélica. Essa é também uma das poucas promessas de campanha do candidato Jair Bolsonaro para a área.

Recentemente, Estados Unidos, Eslováquia, Paraguai e Guatemala anunciaram o traslado de suas representações diplomáticas para Jerusalém. A inauguração da embaixada norte-americana na cidade, em maio deste ano, foi extremamente reveladora. Ao lado da filha de Donald Trump, representando o presidente, estavam os pastores neopentecostais John Hagee e Robert Jeffress. Hagee é o fundador do Christians United for Israel, um dos maiores movimentos cristãos de base dos Estados Unidos, com mais de 4 milhões de membros, que advoga o fortalecimento de Israel. Estima-se que um terço da população evangélica norte-americana – ou seja, cerca de 15 milhões de pessoas – tem em Israel um dos pilares de sua atuação religiosa. Estima-se também que 80% dos evangélicos brancos votaram em Trump. O que indica que o presidente norte-americano, ao transferir a embaixada, fez uma refletida jogada com o intuito de agradar a militância comprometida com seu mandato e sua possível reeleição.

Na cerimônia de inauguração da nova embaixada, o premiê israelense Benjamin Netanyahu proferiu um discurso dirigido sobretudo aos judeus ortodoxos, eleitorado essencial para sua manutenção no poder. “Em Jerusalém, o rei Davi construiu nossa capital há 3 mil anos. Aqui, o rei Salomão estabeleceu o nosso Templo, que ficou de pé por séculos e foi reconstruído pelos que voltaram do exílio na Babilônia… Estamos em Jerusalém para ficar”, afirmou. Ao tomar essa iniciativa, Netanyahu refundou o Estado de Israel sobre novas bases, diferentes das que ergueram aquela nação em 1948 – laicas e comunitárias. Setenta anos mais tarde, os judeus ortodoxos finalmente ganham a oportunidade de alicerçar Israel sobre as palavras da Torá. A mudança da embaixada norte-americana traz mais do que um ganho eleitoral para Netanyahu: ela marca um novo tempo, em que o religioso institui o político.

Em seu discurso, Hagee foi ainda além, profetizando o arrebatamento cristão e o que virá após: “Jerusalém é a cidade em que o Messias virá e estabelecerá um reino que não terá fim”, vaticinou. O Apocalipse é um dos livros sagrados de particular apelo para os neopentecostais. Na interpretação dada por estes, o início do fim dos tempos é sinalizado pelos seguintes sinais: a existência de uma ordem mundial satânica (Hagee atribui tal função à ONU), a queda da Babilônia (seria o Iraque invadido?), os desastres naturais, o retorno do povo judeu à Jerusalém (sinalizado pela instalação da embaixada dos Estados Unidos na cidade) e, finalmente, a grande batalha contra o Anticristo, após a qual os judeus convertidos e os bons cristãos usufruirão do Reino de Deus. Eis como atua a política externa norte-americana – e, num futuro próximo, a brasileira também – para a realização das profecias do Apocalipse. Se, do lado israelense a política interna agora é instituída pelo religioso, do lado americano, o religioso é instituído pela política externa. Em outras palavras, o quarto possível efeito do avanço neopentecostal é também o mais relevante: o Estado a serviço da efetivação de uma teologia.

Nesse ponto, chegamos à questão relacionada à sobrevivência das corporações neopentecostais, dado que o seu modelo de negócios é sustentado por dois pilares:  profecias que geram resultado e a depreciação de tudo que está fora da igreja, o que eles chamam “o mundo”. A narrativa que converte, convence e mantém os fiéis tem mão dupla: o “mundo” caminha para um fim trágico, quando tudo será dominado pelas forças do mal, e a igreja é um espaço puro, o único local não contaminado e, portanto, a salvação. O Apocalipse convém como uma luva e, se seus sinais puderem ser comprovados na vida real, se produz então evidências para essa narrativa.

Apenas fazendo uso do aparato do Estado o neopentecostalismo consegue melhorar seus equipamentos de atendimento, ampliar seu alcance nos novos mercados de fiéis, ter seus dogmas transformados em lei, ver seus milagres e orações serem atendidos e, principalmente, ter sua teologia apocalíptica validada pela realidade tangível. Sem o Estado, as igrejas estancam: não haverá milagres, melhora de atendimento ao público, nem teologia a ser realizada.

Nesse sentido, controlar o Estado é o desdobramento irreversível do neopentecostalismo: ou a política realiza os sinais do “Fim dos Tempos”, ou será o fim da linha para essas denominações religiosas. E eis por que 2018 é um ano tão estratégico para o futuro de algumas lideranças evangélicas no Brasil. Como já dizia o profeta: “Tornai-vos para mim […] e eu me tornarei para vós” (Zacarias 1:3).

 

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