Além de ser um documento valioso, atributo de modo geral reconhecido desde sua estreia, em 2022, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, A Invenção do Outro é um filme admirável, mas que permanece conhecido somente em âmbito restrito. Embora coberto de louros outras vezes no Festival Internacional de Documentários Docville, em Leuven, e no FICA, o Festival Internacional de Cinema e Video Ambiental, na cidade de Goiás, fora do círculo limitado desses festivais e exibições especiais quem terá tido oportunidade de ver a realização cinematográfica primorosa de Bruno Jorge? “Sensorial, introspectivo e comovente, este documentário veio para marcar época em seu gênero”, escreveu o crítico Luiz Zanin Oricchio em seu blog ao considerá-lo o melhor filme brasileiro do ano passado – elogios isolados como esse e prêmios não foram suficientes, porém, para assegurar a visibilidade a que A Invenção do Outro faz jus. Como explicar isso?
Embora gravado em 2019, A Invenção do Outro só foi concluído três anos depois e estreou no Festival de Brasília, em novembro de 2022, cinco meses após o assassinato de Dom Phillips, jornalista britânico, e Bruno Pereira, chefe da expedição de 32 dias da Funai e da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) que Bruno Jorge registrou sozinho. A proximidade entre a estreia do filme e as mortes trágicas de Phillips e Pereira, que na época da gravação era coordenador-geral de Indígenas Isolados da Funai e a quem A Invenção do Outro veio a ser dedicado in memoriam, deve ter influído na recepção do filme, que foi valorizado mais por seu aspecto documental do que propriamente cinematográfico. Essa visão a respeito do documentário persistiu nos festivais seguintes, em prejuízo do reconhecimento de sua alta qualidade artística.
Ao aceitar o convite de Bruno Pereira para fazer parte da “maior e mais importante expedição de contato das últimas décadas para estabelecer o primeiro encontro entre um grupo indígena isolado com pessoas de fora de seu grupo” (conforme a legenda de abertura do filme), Bruno Jorge acumulou as funções de diretor e fotógrafo, após ter escrito o projeto que ele mesmo veio a montar. Pôde evitar, então, ao menos em parte, a sina que faz do documentarista um celebrante contumaz de ofícios fúnebres. Ao contrário, por exemplo, do ocorrido com o líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado em 1962 e personagem-título mais de vinte anos depois em Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, o que A Invenção do Outro oferece ao espectador é o testemunho audiovisual de Bruno Pereira em ação, vivo, à frente da equipe de “cerca de 30 pessoas, entre indigenistas, intérpretes, mateiros, profissionais de saúde e indígenas colaboradores”, cuja missão era “possibilitar o reencontro entre os parentes afastados, promover a atenção à saúde e pacificar as relações com os vizinhos Matis, etnia com a qual os Korubo possuem um histórico de conflitos e violência.”
Conforme a declaração do júri de imprensa do FICA, do qual participaram em junho deste ano os jornalistas Thalys Alcântara, Bernardo Esteves* e Clenon Ferreira, “o filme lança uma luz nova sobre Bruno Pereira, sua empatia com os indígenas e a defesa incondicional que fazia de seus interesses. Com isso, nos ajuda a entender o indigenista melhor do que toda a cobertura jornalística feita por ocasião de seu assassinato”.
Esteves publicou no site da piauí relato de leitura obrigatória sobre a realização de A Invenção do Outro, em que dá conta da relação dos dois Brunos e de detalhes das circunstâncias em que o filme foi realizado, incluindo trechos da entrevista concedida a ele pelo diretor.
Ao gravar, em condições de trabalho árduas, mais de 60 horas da epopeia liderada por Bruno Pereira, além de resiliência e capacidade técnica fora do comum, Bruno Jorge demonstra extrema sensibilidade na maneira de gravar e no modo de enquadrar imagens de beleza constante. A câmera, em geral fixa, observa, ora em planos próximos – fruto ou não de espaços circunscritos –, ora em cenas de grupos reunidos no acampamento.
Ao reduzir as dezenas de horas gravadas para a duração final de 2h24min, a montagem preserva eloquentes demonstrações de afeto, momentos cruciais da jornada vitoriosa e da atuação exemplar do Estado, por meio dos servidores da Funai e da Sesai. Causa estupor, em retrospecto, que isso ainda tenha sido possível no início de 2019, antes de Bruno Pereira ser exonerado, em outubro daquele ano, do cargo de coordenador-geral de Indígenas Isolados, pouco depois de liderar ações de combate ao garimpo ilegal em terras Yanomami.
O encontro entre os korubos desgarrados que integram a expedição e os que permaneceram isolados ocorre no final da primeira metade de A Invenção do Outro, pouco depois de a equipe ser dividida em dois grupos e Jair Candor, servidor da Funai, liderar um deles em outro rumo na tentativa de fazer contato com os indígenas.
Após momentos de expectativa, Bruno Pereira recomenda a Bruno Jorge que mantenha a câmera baixa e o encontro, enfim, ocorre. Um dos korubo recém-chegados olha diretamente para a câmera e pergunta: “Quem é esse cara? Que equipamento ele tá usando?” Alguém responde: “Isso não machuca, é só para pegar nossa imagem. Não precisa ter medo.” “Tem alguém aqui que poderia nos fazer mal?” “Não, ninguém, todo mundo é gente boa.” “Só os Matis podem ser malvados, não a gente aqui.” “Quem é esse?” “Esse é o Bruno [Pereira].” “Tira tua roupa”. Bruno aparece, então, de peito nu. Todos riem. A câmera e a roupa dos brancos surgem como ameaças à integridade e harmonia dos korubos até então isolados.
Creio ser Makwëx, irmão de Xuxu, quem diz: “Eu não acredito, meu irmão está bem.” Agachados, abraçados, os korubos riem, choram e se acariciam: “Ah, meu irmão. Como senti tua falta.” São cerca de 5 minutos preciosos, registrados de modo simples. Representam bem o êxito da missão Funai/Sesai e o triunfo do filme de Bruno Jorge.
* Bernardo Esteves é repórter da piauí.