Quinzenalmente, os leitores da newsletter cultural da piauí recebem uma cuidadosa seleção de filmes, livros, séries, exposições e álbuns feita pelo editor Alejandro Chacoff. Abaixo, o conteúdo da última edição. Clique aqui para receber as próximas gratuitamente.
No circuito de arte paulistano, Deri Andrade era conhecido por ser analista de comunicação do Museu de Arte Moderna (MAM), no Parque Ibirapuera. Desde 2016, seu nome está associado ao Projeto Afro, plataforma que criou para mapear artistas afrodescendentes no Brasil. O projeto tem até o momento cerca de trezentos nomes indexados. No final de 2023, a iniciativa de Andrade desembocou na exposição Encruzilhadas da arte afro-brasileira, no CCBB São Paulo, que inclui em torno de 150 obras, produzidas por 61 artistas em diferentes linguagens. A exposição tem entrada gratuita e vai até 18 de março.
Andrade, que desde 2021 é também curador-assistente no Instituto Inhotim, traz na exposição alguns nomes que participaram da mostra Dos Brasis, com proposta semelhante, realizada no Sesc Belenzinho em 2023. Entre eles, Hariel Ravignet, Yhuri Cruz e Augusto Leal.
Com o trabalho Gangorra (2020), Leal chama o público para se divertir no térreo do prédio. Diferente do brinquedo homônimo, o trabalho não consiste em balançar para baixo e para o alto, mas em rodar para o lado, sentado sobre uma tora de madeira onde está inscrita a palavra “poder”. As crianças se jogam. Os adultos hesitam, mas encaram a gira.
Na exposição no CCBB, os andares mais bem resolvidos em termos de narrativa são o terceiro e o quarto. É recomendado começar por eles. Mas não deixe de visitar os outros, porque a apreciação da arte inclui ver o que não funcionou tão bem.
Samurai de olhos azuis é uma animação que conta a violenta jornada de Mizu, que, em busca de vingança, decide ir atrás de seu pai. Ela desconhece a identidade do pai, mas sabe que é um homem branco, pois dele herdou os olhos azuis. Na época de seu nascimento, havia apenas quatro homens brancos no Japão. Mizu decide matar todos eles.
A saga se passa durante o período Edo (1603-1867), quando as fronteiras do Japão estavam fechadas aos outros países e mínimos traços físicos tidos como não japoneses, como os olhos azuis de Mizu, levavam a pessoa a ser considerada um ser impuro, ou até menos humana, no país.
Não é preciso ser um amante das animações japonesas para se envolver com a série. O responsável por esta recomendação, por exemplo, não assistia a um exemplo do gênero desde a pré-adolescência, há mais de vinte anos. Samurai de olhos azuis é para quem procura um enredo clássico e épico: a expectativa da grande batalha contra o vilão prende o espectador até o último episódio. E, apesar de ambientado no século XVII, a história conversa com temas atuais (e ainda apresenta sangrentas batalhas que agradarão os nostálgicos da série Game of Thrones).
A beleza visual da animação é um destaque e foi elogiada por Hideo Kojima, um dos principais designers de games no mundo. As imagens são inspiradas na longa tradição da arte japonesa. Os traços dos personagens vêm do Bunraku, teatro de bonecos japonês, e as sequências parecem pinturas em movimento no estilo Ukiyo-e, com suas xilogravuras e pinturas de cores vibrantes que retratavam cenas da vida cotidiana. A produção da série também consultou especialistas no período Edo para ser fiel à arquitetura, ao vestuário e à vida social do Japão do século XVII.
O nome artístico de Ana Faria Fainguelernt chama a atenção, mas, escutando o seu terceiro disco, lançado em outubro de 2023, o que surpreende é o apuro da instrumentação e a originalidade das composições. Aos 26 anos, a cantora carioca vive a juventude no corpo de uma pessoa não binária. A identidade de gênero não significa nada em alguns momentos do repertório de Me chama de gata que eu sou sua, mas, em outros, confere à cantora um tipo de romantismo raro no cancioneiro brasileiro. Na música Camelo azul, por exemplo, Ana canta para a amante: “Seu cheiro me lembra o meu lado feminino, mas hoje sou menino.” É doce e novo.
Filha de uma psicóloga com um artista plástico, Fainguelernt começou a estudar música aos 6 anos. Aos 10, foi admitida na Escola de Música Villa-Lobos, no Rio. Conheceu jovens instrumentistas como Sérgio Machado e Alberto Continentino, que tocam para Gilberto Gil e Caetano Veloso. Tanto Machado como Continentino participaram do disco mais recente, e as orquestrações de cordas foram feitas por Dora Morelenbaum, filha de Jaques Morelenbaum e membro da banda Bala Desejo (cujo disco de estreia contou com a coprodução de Ana Frango Elétrico).
Quando se arriscam a fazer música, os descendentes da elite cultural do Rio costumam pecar na repetição excessiva das fórmulas que deram certo com seus antecessores. Não é o caso de Ana Frango Elétrico nesse disco. O êxito do álbum, claro, também é resultado dos privilégios de sua autora, mas indica um caminho mais engenhoso e refinado para o pop do país. É um bom exemplo a ser seguido pelos nepo babies da nova geração.
Confira o portfólio sobre futebol do artista paulistano Midi, publicado na edição de março da piauí. Em algumas obras, Midi pinta um lance da partida, com as figuras dos jogadores se destacando sobre um fundo em tons de verde que flerta com a abstração. Em outras, trabalha de maneira bem-humorada com jargões do futebol, como “banheira”. “São como anedotas”, diz Midi. O artista, que torce para o Flamengo, se aproxima do futebol pela ótica de sua geração, cuja experiência desse esporte se dá em múltiplas telas – da tevê ao videogame.
Vínculo, conto publicado na edição de março da piauí, narra um encontro entre um médico e uma paciente enigmática à beira da morte, que se diz vidente. Da forma que inicialmente se apresenta, a história sugere um dilema moral clássico, talvez já exaurido pela frequência com que aparece no gênero breve do conto. Mas o autor Quito Ribeiro rapidamente deixa a trama mais complexa, trazendo uma terceira personagem para a narrativa e expondo seu protagonista meio hesitante a reflexões com as quais não está acostumado. Agnosticismo, laços familiares, a dificuldade de separar nossas projeções do que é realidade: tudo isso é tocado em apenas três páginas. “Não é todo dia que se acorda querendo saber de si mesmo de uma maneira muito clara a ponto de se perguntar: como estou?” O narrador – que oscila entre se orgulhar de sua vocação e reconhecer quão pífias suas aspirações às vezes parecem – é forçado a contemplar a pergunta, ainda que respondê-la esteja necessariamente fora de seu alcance.