Quando cobria a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, Jessikka Aro se deparou com algo desconhecido àquela altura: uma “fábrica” de trolls russos. Um escritório em São Petersburgo, com funcionários pagos pelo regime de Vladimir Putin para criar perfis falsos na internet e usá-los para manipular o debate digital sobre assuntos de interesse do governo – especialmente, naquele momento, o conflito com os ucranianos. Donald Trump ainda nem sonhava ser presidente dos Estados Unidos e o mundo não havia sido apresentado às campanhas massivas de fake news e difamação.
“Nós descobrimos que essas pessoas eram escaladas para criar perfis falsos e toda manhã recebiam temas diferentes sobre os quais deviam escrever. Às vezes atacavam políticos russos, às vezes tinham que escrever coisas estúpidas sobre os americanos”, explicou Aro. A jornalista finlandesa participou da mesa de abertura do Festival piauí de Jornalismo, que acontece neste final de semana na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Ela foi entrevistada pelas jornalistas da Folha de S.Paulo Patrícia Campos Mello e Flavia Lima.
O trabalho de Aro foi pioneiro na cobertura sobre desinformação no ambiente digital. A operação relatada por ela em reportagens veiculadas pela Yle, emissora pública de rádio e tevê finlandesa, apontaram aquilo que anos depois viria à tona com a eleição de Trump e o escândalo da Cambridge Analytica: campanhas massivas de disseminação de fake news pela internet estavam sendo usadas para manipular eleitores e desestabilizar democracias.
Inicialmente, as fábricas de trolls reveladas por Aro miravam o público russo. Aos poucos, no entanto, passaram a ser usadas para influenciar e intervir em outros países, como os Estados Unidos e a própria Finlândia. O país faz fronteira com a Rússia e foi invadido durante a Segunda Guerra Mundial pela então União Soviética. Segundo Aro, os finlandeses desenvolveram ao longo da história “um senso de estar sempre alertas” em relação aos russos.
“Os russos certamente inspiraram muitos ditadores em outros países. As técnicas para criar comunidades e engajar audiência online foram visionárias comparado ao que se fazia na mídia tradicional”, afirmou Aro. “Sempre que um finlandês emitia opinião sobre as políticas do Putin no Twitter, no Facebook ou mesmo na mídia tradicional, passava um tempo e um troll russo aparecia para atacá-lo. Um perfil fingindo ser alguém real ameaçava matar a pessoa, dizia que a pessoa era agente da CIA, que sabia onde a pessoa morava… Isso me mostrou como a Rússia estava agindo não só contra a mídia tradicional, mas contra as pessoas que individualmente queriam participar de debates nas redes sociais.”
“Esse método é copiado por outros por uma única razão: é bem-sucedido”, afirmou a jornalista. Ela própria passou a ser alvo constante de robôs nas redes sociais desde que sua primeira reportagem sobre o assunto foi veiculada, em 2014. “Imediatamente, comecei a receber mensagens ofensivas em russo. Ligações de números ucranianos, russos, do Reino Unido, do Cazaquistão. Pessoas dizendo que queriam que eu estivesse morta, presa.” Tudo, claro, sempre acompanhado de misoginia. “Falavam sobre minha maquiagem, minhas roupas. Diziam que eu agia como uma espécie de prostituta dos Estados Unidos.”
Com receio de ser atacada, Aro não retornou à Rússia desde 2015. Ela relatou sua experiência no livro Putin’s Trolls: On the Frontlines of Russia’s Information War Against The World, publicado em 2019. “Meu livro é uma coleção de histórias de pessoas que foram transformadas em alvo depois de exporem coisas que o Kremlin não queria que fossem expostas”, resumiu a jornalista.
Ao ser questionada sobre formas de combater a desinformação, Aro defendeu que os governos tomem a iniciativa de investigar e desmobilizar essas redes. “Pode parecer que os ataques são individuais, e que por isso o problema é individual, mas não é. São ataques contra Estados. Se os países querem batalhar contra isso, terão que prover serviços e operações de inteligência para desmascarar os esquemas de desinformação”, afirmou.
Para a jornalista, não faz sentido classificar como censura a perseguição a robôs e perfis falsos na internet – tema recorrente no Brasil, sobretudo desde que o Tribunal Superior Eleitoral passou a atuar de forma incisiva contra as fake news. “Liberdade de expressão vale para pessoas reais, humanas”, ela argumentou. “Bots não têm direitos.”