Que bom te ver viva
Uma longa viagem – uma irmã e dois irmãos, todos libertários
Realizados ao longo de cerca de 20 anos, um elo forte une Que bom te ver viva, Quase dois irmãos e Uma longa viagem – a experiência de vida da roteirista e diretora Lucia Murat. Baseados na sua própria dor, os três filmes têm a virtude incomum no cinema brasileiro de expressarem sentimentos autênticos, destituídos de gratuidade.
Realizados ao longo de cerca de 20 anos, um elo forte une , Quase dois irmãos e Uma longa viagem – a experiência de vida da roteirista e diretora Lucia Murat. Baseados na sua própria dor, os três filmes têm a virtude incomum no cinema brasileiro de expressarem sentimentos autênticos, destituídos de gratuidade.
Embora tenham esse mesmo fundamento, e lembrem por isso a célebre formulação segundo a qual “história é o que dói”, são filmes permeados de certa leveza e alegria. Sem deixar de serem essencialmente trágicos, não assumem tom solene, nem sentencioso – armadilha usual na qual costumam cair muitas tentativas de acertar contas com traumas do passado.
Reencontrar as sobreviventes é bom, como diz o título do filme de 1989. Mas tem seu preço. Poder reconstruir a própria história com um toque pessoal, aliando testemunho e imaginação, permitiu a Lucia Murat repensar seus duros anos de militância, tortura e prisão, o que não é fácil. E agora, em Uma longa viagem, voltar sua câmera para seus dois irmãos e para si mesma, narrando na primeira pessoa o percurso que parece ter tornado possível conviver com o sofrimento.
Uma longa viagem tem origem numa perda – diante da morte de um irmão, em vez de “chorar ininterruptamente”, o outro “precisou falar” e a irmã começou a fazer o filme. São três irmãos, definidos como “libertários”, que seguiram rumos de vida diferentes, mas se mantiveram sempre unidos. O filme, porém, dá menos atenção a Miguel, o “romântico” médico infectologista cuja morte motivou a realização de Uma longa viagem, o que causa certo desequilíbrio ao se concentrar mais nos outros dois.
O depoimento e as cartas de Heitor, o irmão sobrevivente, tratados em dois registros, um documental, outro ficcional, formam a substância da narrativa. Escritas para a família, e censuradas antes de serem lidas por Lúcia durante os três anos e meio em que foi presa política, as cartas conduzem a rememoração, no caso da própria Lúcia, em voz off, sem presença física tão ostensiva quanto a do irmão.
A participação de Heitor, sempre em tom afetuoso, é um atestado das feridas deixadas por nove anos de viagem, incluindo uma caminhada do Nepal a Nova Delhi, tendo percorrido ao todo o equivalente a duas voltas ao mundo, o que segundo ele mesmo “não se deve fazer”. Frágil e envelhecido, começa lembrando que foi mandado para Londres pelos pais para evitar que seguisse “os rumos da irmã revolucionária” – tentativa bem intencionada de protegê-lo feita por uma família católica, convencional, mas que o expôs a outros riscos.
Retomando recurso semelhante ao usado em , um ator célebre (Caio Blat) faz o papel de Heitor, tendo como falas o texto das suas cartas. Fica claro, por um lado, que se trata de uma encenação, desde o belíssimo plano de abertura do filme em que a câmera segue o ator por um corredor até ele sair de quadro e vermos Heitor sentado, de costas, escrevendo diante da janela. Mas, assim como acontecera com a personagem de Irene Ravache no filme anterior, a versão encenada de Heitor resulta artificial. Embora a composição física do personagem seja adequada e as retroprojeções funcionem bem, suas falas declamadas parecem fora do tom.
Outro senão também se refere à entonação, no caso da própria Lúcia Murat ao recitar o texto da narração em alta velocidade. Surpreende que à liberdade de recorrer a encenações e registros documentais não tenha optado, mesmo mantendo o uso da primeira pessoa, por voz mais adequada.
No todo, Uma longa viagem, além de autêntico, recende sinceridade. O que mais se pode pedir?
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