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Uma Mulher Alta – título banal, belo filme

Inspirado em livro de jornalista vencedora do Nobel, filme aborda traumas de duas ex-combatentes

Eduardo Escorel | 22 jan 2020_08h01
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Tem razão quem estranha o título dado no Brasil a Dylda, nome original do segundo filme de Kantemir Balagov, premiado em 2019 como Melhor Diretor na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes. A atriz Viktoria Miroshnichenko é, de fato, uma mulher de estatura elevada – ela tem 1,82 metro de altura. Daí a batizar Dylda ou Beanpole (a versão em inglês) de Uma Mulher Alta, porém, é abusar do direito de ser óbvio. Em especial lembrando que poderia ter sido adotado termo mais simpático e sugestivo como Varapau que, além da referência à altura, inclui um traço importante da personagem, indicado pelo título original russo – ser desajeitada e sem graça.

Superado o pequeno incômodo causado pela trivialidade do título, Uma Mulher Alta resulta interessante e demonstra talento da jovem equipe – o diretor, Balagov, tem 28 anos; Kseniya Sereda, diretora de fotografia, 25 anos; as duas atrizes principais, Miroshnichenko e Vasilisa Perelygina, além de terem 25 e 23 anos, respectivamente, ainda são estreantes.

A juventude do grupo se destaca, em especial, dado o tema central de Uma Mulher Alta, que, além de distante da experiência de vida pessoal de seus integrantes, é inédito no cinema russo contemporâneo – um filme de guerra sem batalhas, concentrado na intensa relação entre duas traumatizadas ex-combatentes, que transcorre no primeiro outono posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial, em Leningrado.

Fazer filmes têm seus obstáculos na Rússia atual, declarou Balagov em Cannes ao site Deadline, revelando inesperada convergência com a situação vivida no momento em outros países distantes: “A única fonte de financiamento para jovens conseguirem fazer filmes é o Ministério da Cultura; portanto, se eles não gostam de algo no projeto, é fácil: você não recebe o dinheiro” (entrevista completa disponível em https://deadline.com/2019/11/beanpole-kantemir-balagov-interview-international-feature-film-oscar-russia-1202795408/).

Balagov teve o privilégio de estudar durante três anos na Primer Inotnatsii, fundação de cinema criada por Aleksandr Sokurov, em 2013. Diretor de Fausto (2011), O Sol (2005), Arca Russa (2002) e Mother and Son (1997), entre outros, e crítico contumaz de Vladimir Putin, Sokurov fechou a fundação em 2019 alegando falta de financiamento e hostilidade do ministro da Cultura. “Além de me dar uma compreensão da profissão do diretor”, Balagov declarou à Variety (https://variety.com/2019/film/festivals/filmmaker-kantemir-balagov-talks-about-his-cannes-un-certain-regard-drama-beanpole-1203216225/, “ele me ajudou a ter autoconsciência e me ensinou a amar a literatura. Para mim, essas duas coisas estão interconectadas, porque a consciência se alimenta da literatura”.

A inspiração para o roteiro de Uma Mulher Alta, de Balagov e Aleksandr Terekhov, veio de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, de Svetlana Aleksiévitch, cuja edição original russa é de 1985, vendeu mais de dois milhões de exemplares nas décadas seguintes, e foi editado pela Companhia das Letras, em 2016. A autora, Prêmio Nobel de Literatura em 2015, define o livro como história oral, escrita a partir dos relatos e olhar de centenas de mulheres. Aleksiévitch se diz historiadora de almas: “De um lado, eu estudo a pessoa específica que viveu em uma época específica e participou de eventos específicos; por outro lado, quero discernir nessa pessoa o ser humano eterno. A vibração da eternidade. O que há nele de imutável.”

Os corroteiristas de Uma Mulher Alta, Balagov e Aleksandr Terekhov, tiveram a sabedoria, em primeiro lugar, de circunscrever o vasto panorama de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, restringindo o âmbito do filme, inicialmente para uma e afinal a apenas duas mulheres, mantendo-se fiéis às palavras de Aleksiévitch na introdução do livro: “O monstruoso sorriso do mistério transparece nessas histórias… A guerra das mulheres tem suas próprias cores, seus próprios cheiros, sua própria iluminação e sua própria gama de sentimentos. Suas próprias palavras. Não há heróis e feitos incríveis, há simplesmente pessoas ocupadas em fazer coisas humanas de modo desumano.” Além disso, Balagov e Terekhov não se furtam a lidar com a maior dificuldade das mulheres que Aleksiévitch ouviu, conforme ela declarou – “mais do que a morte, o amor e como elas reestabeleceram suas vidas românticas depois da guerra”, vencendo o tabu em falar do assunto que existia na época e mesmo depois.

Contribuição notável em favor de Uma Mulher Alta é a da fotografia de Sereda, toda a meia-luz, com enquadramentos elaborados, filmados com simplicidade e eficiência narrativa com a câmera na mão, exceto na cena do jantar, no final. O ocre predominante na paleta de cores do filme “simboliza a ferida” e o vermelho, embora vivo, “é também cor de ferrugem e de sangue”, declarou Balagov à Film Comment (entrevista disponível na íntegra em https://www.filmcomment.com/blog/interview-kantemir-balagov-2-beanpole-nyff/).

Uma Mulher Alta estreou no Brasil em 12 de dezembro, depois de ser exibido no Festival do Rio. Segundo os dados do portal Filme B, em cinco semanas foi visto por 13 650 pessoas, resultado de público para lá de sofrível, pior do que o de O Paraíso Deve Ser Aqui, de Elia Suleiman, comentado aqui na semana passada. Fica claro, se ainda fosse preciso demonstrar, até que ponto o mercado exibidor brasileiro está configurado para atender blockbusters e produções de apelo comercial mais evidente, sem ter espaço adequado para filmes de maior qualidade artística.

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