Em plena guerra da Ucrânia, travada às portas da União Europeia, Portugal entregou o comando do Ministério da Defesa Nacional a uma mulher, a socióloga Helena Carreiras, acadêmica que há três décadas estuda a área militar – sobretudo a participação feminina nas Forças Armadas. A decisão inédita do primeiro-ministro socialista António Costa é a surpresa maior de seu terceiro novo gabinete, que tomou posse na última quarta-feira (30), com nove ministras e oito ministros. Ex-diretora da prestigiada Escola de Sociologia e Políticas Públicas do Instituto Universidade de Lisboa (ISCTE-IUL) entre 2016 e 2019, Carreiras é também uma intelectual com fortes laços com o Brasil, país que já visitou várias vezes. De seus catorze livros, três são em coautoria com o antropólogo brasileiro Celso Castro, diretor da Escola de Ciências Sociais – CPDOC da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Filha de professores, Helena Carreiras mudou-se para Lisboa em companhia das duas irmãs para fazer faculdade. Na capital, desenvolveria, desde o final dos anos 1980, um trabalho acadêmico alvo, segundo ela, de “dupla desconfiança”. ‘Os militares achavam que eu seria feminista, e as feministas suspeitavam que eu fosse militarista”, explica. Curiosamente, a socióloga conta ter descoberto o valor e a importância de sua pesquisa sobre militares durante um congresso realizado há uma década no Brasil – história tão marcante que ela continua repetindo até hoje em suas palestras.
“Estava na casa de banho [banheiro] e (…) uma senhora, que creio que era militar e estava também como investigadora pesquisadora], me disse: ‘Utilizei muito os seus livros, até em fotocópia – não era fácil o livro chegar cá. Fico até emocionada de conhecê-la porque, sabe, o seu trabalho ajudou-me a perceber que o problema não era eu.’ Pensei: está tudo justificado, todas as audiências que desconfiaram do meu trabalho…”, relatou em longo depoimento gravado para os arquivos da FGV-CPDOC, em 2011. Carreiras disse ter constatado ainda que havia, entre seus leitores, muito mais brasileiros do que portugueses. “Em Portugal, [era] muito pouca gente; sempre me senti muito sozinha”, confidenciou. No mesmo depoimento, questionada por um dos entrevistadores, concorda que Portugal lhe deu a sociologia, a Itália, a ciência política, e o Brasil, a antropologia.
Definida por Castro como “uma das maiores especialistas no mundo” em questões de gênero nas Forças Armadas, Carreiras começou a montar seus puzzles, palavra que gosta de usar, a partir do acompanhamento, por meio de questionários e entrevistas, das primeiras mil mulheres que entraram no serviço militar português em 1988, estudo então sob orientação de Maria Carrilho. Em seguida comparou esses resultados com a situação militar nos países da Europa do Sul e, por fim, em sua tese de doutorado, estudou as políticas de integração de mulheres nos países da Otan (Organização do Tratado Atlântico Norte). É justamente nesse círculo que estudou que Carreiras adentra agora – uma área pela qual passaram até hoje menos de uma dezena de mulheres, com destaque para Ursula von der Leyen, ex-ministra da Defesa da Alemanha e atual presidente da Comissão Europeia, que capitaneou o anúncio das sanções da Europa contra a Rússia, após a invasão da Ucrânia.
“Helena chega ao governo com uma trajetória não apenas acadêmica; ela conhece por dentro as Forças Armadas pois esteve duas vezes na cúpula do IDN (Instituto de Defesa Nacional, que formula políticas públicas e assessora o ministro da Defesa), tem contato prolongado com militares de carreira e oficiais-generais”, resume o professor Rui Pena Pires, amigo e também colega de universidade, ligado ao PS. Foi na abertura de um seminário do IDN, na última quinta-feira, 24, que Carreiras deu sua primeira declaração sobre a guerra na Ucrânia como ministra indicada, mas ainda antes da posse – à qual compareceu de mãos dadas com o marido e os dois filhos adolescentes, vestida de branco. “É fundamental continuar a ter a paz como referencial último e inalienável de qualquer ação e reflexão estratégica, mesmo quando pensamos no reforço da nossa defesa e dos instrumentos para essa defesa”, afirmou. Para Pires, a prioridade hoje de todos os ministros da Defesa da Europa é a invasão da Ucrânia. Ele julga provável que no orçamento de 2023 haja aumento de recursos para a área militar em Portugal e aposta na capacidade de diálogo de Carreiras. “Vamos ter uma ministra da Defesa bastante diplomática, capaz de mobilizar, convencer e consensualizar”, enumera.
Para Castro, que espera mais intercâmbio entre a Defesa de Brasil e Portugal, “não é tarefa fácil” o que Carreiras tem pela frente. Diferentemente do Brasil, o serviço militar em Portugal não é obrigatório, o que, associado a fatores demográficos e econômicos, faz com que os efetivos militares diminuam a cada ano. Logo após tomar posse, ela afirmou que sua prioridade será “a modernização das capacidades e equipamentos das Forças Armadas, o que significa também investir nas pessoas, valorizar os militares, recrutar e reter mais jovens”.
Também é esperado que Carreiras “traga sua marca” e incentive transformações para que cada vez mais mulheres entrem, permaneçam e subam na carreira militar. Hoje, cerca de 13% do efetivo militar em Portugal é composto por mulheres, contra 9% no Brasil. Em comum, os dois países têm pouquíssimas mulheres oficiais-generais.
“Num mundo como o nosso, em que as desigualdades de gênero persistem e a área militar é muito associada à masculinidade, a nomeação tem um significado simbólico e pedagógico muito importante”, reforça Miguel Vale de Almeida, professor de antropologia e colega durante anos da hoje ministra no Instituto Universidade de Lisboa.
“É impressionante, muito inesperado, e acho que vai ser boa a experiência de ver uma mulher liderar militares”, avalia a psicanalista e ex-deputada do PS no Parlamento Europeu Maria Belo, autora da proposta de lei que descriminalizou o aborto em Portugal em 1984. “O que me espanta nisso é ver como António Costa chegou ao ponto de dar visibilidade a essas mulheres fortes, afirmativas, que têm brilho pŕoprio”, completa.
Carreiras cultiva, aos 56 anos, um histórico de posições de esquerda, mas não é militante nem filiada ao PS. A imprensa portuguesa pergunta se António Costa, surpreendido em 2017 pelos escândalos do roubo de armas nos paióis de Tancos e, em 2021, do contrabando de droga, ouro e diamantes por parte de militares portugueses da Força de Paz na África, terá mais sorte e sossego com o novo perfil que escolheu para a Defesa. Amante do trekking em montanhas, esporte que praticou até os 30 anos em viagens pela Europa, Índia e Turquia, passou boa parte da infância e da adolescência na cidade templária de Tomar, cujo patrimônio arquitetônico medieval é tombado pela Unesco, juntando recortes e escrevendo artigos locais sobre os conflitos no mundo, no clima de redemocratização pós-Revolução dos Cravos (1974).
Protagonistas em 1974 da derrubada da ditadura salazarista, os militares – que hoje em Portugal não estão na política e não podem acumular salários na esfera pública – reagiram com aparente tranquilidade à inédita chefia feminina.“Contrariamente aos seus antecessores, a professora doutora Helena Carreiras tem um vasto currículo ligado às matérias da Defesa Nacional”, escreveu em sua página a Associação de Oficiais das Forças Armadas (Aofa), que reivindicou mais verbas. “Não há qualquer constrangimento”, enfatiza Rui Pena. “Nas democracias, não há mais militares na Defesa (involução ocorrida no Brasil desde 2018); então se é ministro ou ministra é irrelevante”, afirma.
“É claro que importa; essa fala é uma denegação, é um deixe tudo como está, significa um certo receio do que não se quer reconhecer, um receio sobre em qual posição os homens podem ser colocados”, discorda Maria Belo. Também estudiosa do papel das mulheres no Estado Novo, o período de Salazar no poder, Belo sustenta que “em Portugal as mulheres têm ao nível familiar e mesmo nas pequenas comunidades, bairros urbanos e aldeias, presença de mando bastante forte; as mães portuguesas são autoritárias, algo que foi utilizado por Salazar”. Segundo ela, desde a redemocratização, com a reorganização dos partidos sob comando de políticos homens, as mulheres tiveram dificuldades para conquistar e manter seu espaço, sobretudo na esquerda. “As mulheres lutaram mais umas contra as outras do que lutaram em conjunto”, afirma. Nessas eleições legislativas, a representação feminina, que avançou no primeiro escalão do Executivo, perdeu, entretanto, mesmo com direito a cotas partidárias, quatro cadeiras no Parlamento.
Carreiras também fez uma reflexão sobre a força das mulheres portuguesas na família. Ela contou que, ao ter seu primeiro filho, acabou repetindo o modelo “lutadora” que via em sua mãe, uma mulher que trabalhava fora e assumia sozinha todas as tarefas domésticas. “Há uma disposição muito interiorizada, muito inconsciente e, no início, creio que não partilhei o suficiente (com o marido)”, relatou, na entrevista para o CPDOC-FGV. “Ambas as instituições, a família e a instituição militar, são vorazes, porque exigem muito tempo, empenhamento e lealdade dos seus membros”, comparou. Ao deixar a cerimônia de posse, a nova ministra foi sucinta ao avaliar a sua indicação. “Já era tempo.”