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Uma Noite de 12 Anos – resistir e sobreviver, de qualquer maneira

Filme sobre prisão de Mujica durante ditadura uruguaia é mais sobre resiliência do que sobre tortura

Eduardo Escorel | 23 jan 2019_12h13
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“No meu país, primeiro somos presos e depois nos tornamos presidente.” Atribuída a Nelson Mandela, essa frase se refere à África do Sul, onde ele ficou encarcerado 27 anos antes de se tornar primeiro mandatário do país, em 1994. No Uruguai, José “Pepe” Mujica (1935), um dos três personagens principais de Uma Noite de 12 anos, tem o mesmo atributo – foi empossado na Presidência da República, em 2010, depois de ser sequestrado e mantido preso pelo Exército de 1973 a 1985.

Ex-prisioneiros que vieram a ser eleitos chefe do Poder Executivo são raros. Vale lembrar Václav Havel, presidente da Tchecoslováquia e, em seguida, da República Tcheca, de 1989 a 2003, assim como Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil de 2003 a 2011. Havel foi condenado a quatro anos e meio de prisão, em 1979, após ser detido diversas vezes nos anos anteriores. Lula, por sua vez, passou 31 dias, em 1980, no que ele mesmo chamou de “uma prisão VIP”.

Dos quatro mencionados, Lula é o único a fazer parte também de outro grupo, maior e menos ilustre – o dos ex-presidentes presos depois de terem cumprido seus mandatos. Desse vasto elenco inglório fazem parte, entre outros, Alberto Fujimori e Ollanta Humala, do Peru; Arnoldo Alemán, da Nicarágua; José Sócrates, de Portugal; e Park Geun-hye, da Coreia do Sul.

Além da situação atual de ambos – Mujica, livre, Lula, preso – outros fatores diferenciam suas respectivas prisões, inclusive a duração. A odisseia trágica de um não é comparável à estadia do outro no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo, onde declarou ter sido bem tratado. Mujica e dois companheiros do grupo guerrilheiro Tupamaros, Mauricio Rosencof (Ruso, 1933) e Eleutério Fernández Huidobro (Ñato, 1942-2016), foram feitos reféns durante 4.323 dias, passando a servir de salvaguarda para o Exército poder se vingar caso militantes em liberdade cometessem algum atentado.

Transferidos de prisão em prisão durante doze anos, Mujica, Rosencof e Huidobro sofreram toda espécie de tortura – cacetada, afogamento, choque elétrico etc. Em entrevista dada no ano passado, Mujica contou que “comeu sabão, perdeu os dentes por causa das surras, e frequentemente a lucidez”. Mesmo assim, ele minimiza seu sofrimento: “Isso que aconteceu conosco é pouco. Existem muitos outros que ficaram pelo caminho” (a entrevista completa está disponível aqui).

Mantidos em isolamento total no começo, não tinham com quem falar e os carcereiros militares eram proibidos de falar com eles. Foi essa experiência que levou Mujica a dizer que “depois da pena de morte, a solidão é um dos castigos mais duros”. Isolado, o prisioneiro arrisca ser vítima de suas próprias alucinações, conforme se vê em Uma Noite de 12 anos.

Mujica se notabilizou, entre outros motivos, por suas declarações, assim como pela austeridade pessoal que o levou a ser chamado de “o presidente mais pobre do mundo”. Durante sua Presidência, ia trabalhar no seu próprio Fusca azul-celeste 1987; abriu mão da residência oficial no Palácio de Suárez para continuar morando na chácara onde sempre morou, em Camino el Colorado, na área rural dos arredores de Montevidéu; e doou 90% de seu salário para instituições de caridade.

“Muita gente gosta de muito dinheiro. Essas pessoas não deveriam entrar na política”, disse Mujica. E ainda: “assim que políticos começam a subir a escada, eles se tornam reis. Não sei como funciona, mas o que eu sei é que repúblicas vieram a este mundo para assegurar que ninguém tenha mais valor do que qualquer outro. A pompa do posto é como o que sobrou de um passado feudal: você precisa de um palácio, tapete vermelho, muita gente atrás de você dizendo: ‘Sim, senhor.’ Eu acho tudo isso horrível.”

Com roteiro e direção de Alvaro Brechner, Uma Noite de 12 anos é baseado no testemunho dos dois companheiros de Mujica – Rosencof e Huidobro –,  na longa noite que passaram encarcerados. Publicado com o título Memorias del Calabozo, em 1989, o livro não foi editado no Brasil.

Em setembro do ano passado, o filme foi recebido com longos aplausos, ao estrear na mostra Horizontes do 75º Festival de Veneza. Embora estivesse em Veneza, inclusive para agradecer aos realizadores de Uma Noite de 12 anos, Mujica não foi à estreia para evitar “‘remexer os sentimentos’ que traz sobre sua mãe, os soldados, seus outros colegas presos e aqueles que já não estão [vivos]”, conforme disse na mesma entrevista citada. Explicou ainda que estava no Festival convocado por Emir Kusturica, diretor de El Pepe, Uma Vida Suprema – documentário sobre Mujica também lançado no evento, onde foi premiado pelo Conselho Internacional de Cinema e Televisão da Unesco.

Enquanto Mujica era festejado no Lido de Veneza, Lula completava cinco meses de prisão na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Começava a cumprir pena de doze anos e um mês de detenção a que foi condenado, em segunda instância, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Mujica havia visitado Lula três meses antes. Na breve conversa que puderam ter, falaram sobre os problemas pelos quais passa a América Latina, segundo o ex-presidente do Uruguai disse na saída. E completou: “Meu desejo é que o Brasil possa superar seu problema. Se o Brasil anda bem, nós andamos bem. Se o Brasil anda mal, nós andamos mal.”

Uma Noite de 12 anos estreou no Brasil em 27 de setembro do ano passado, menos de um mês depois de ser apresentado no Festival de Veneza, ficou em cartaz por dezesseis semanas e foi visto por 79.226 pagantes, segundo os dados do portal Filme B. Agora, está  disponível nas plataformas Netflix e Now. Levando em conta a resistência do espectador médio em enfrentar enredos sofridos, é o que pode ser considerado um sucesso de estima.

Em uma palavra, o tema central de Uma Noite de 12 anos pode ser definido como resiliência – a capacidade emocional do indivíduo de resistir a eventos traumáticos, da qual Pepe, Ruso e Ñato dão prova. É, na essência, disso que se trata no filme, mais que do sistema carcerário, da tortura ou da ditadura uruguaia das décadas de 70 e 80.

Cena de Uma Noite de 12 Anos


Nesse sentido, a citação de Franz Kafka, tomada de
Na Colônia Penal e incluída como epígrafe, além de supérflua, mais dificulta do que favorece o entendimento. Kafka escreveu que seria inútil informar “o homem” qual era sua sentença por que ele ficaria sabendo “no seu próprio corpo”. O filme, porém, não tem como propósito central denunciar a dor física infligida ao preso, por mais necessária que essa denúncia sempre seja.

Ao se aproximar o final de Uma Noite de 12 anos, duas sequências esclarecem o intento de Brechner. Na primeira, quando a mãe de Pepe, após seis anos, finalmente consegue visitá-lo na prisão, ela grita com o filho: “Escute aqui. Escute o que tenho a dizer. Você tem que resistir. Resistir de qualquer maneira. Não importa pelo que passe, vai resistir. E não deixe que te matem. […] Os únicos derrotados são os que abaixam os braços. Você vai sair daqui e vai seguir em frente. E ninguém… E ninguém vai tirar o que tens dentro de você.”

E na outra cena esclarecedora, a psiquiatra incumbida de avaliar as alucinações de Pepe, encerra a consulta dizendo: “Peço a você que se agarre no que puder. Aguente! Sobreviva! Falta pouco!”

Na verdade, faltavam ainda seis anos (e 30 minutos de filme) para a ditadura acabar e os três companheiros serem soltos junto com muitos outros prisioneiros políticos.

O mote da mãe de Pepe, no filme, é inspirado em palavras do próprio Mujica na vida real. Para ele, “os únicos perdedores são os que param de lutar” – uma máxima estimulante, sem dúvida, apesar de voluntarista, inclusive no Brasil dos nossos dias.

Passados mais de trinta anos desde o périplo no qual Uma Noite de 12 anos é baseado, seria de esperar algum comentário, mesmo breve, sobre a atuação de Pepe, Ruso e Ñato no período anterior à prisão. O filme omite quase por completo, porém, a atuação dos três como guerrilheiros Tupamaros. Exceção é a cena narrada em flashback, na qual tampouco é feita qualquer ressalva ao comportamento de Ñato – em 14 de abril de 1972, o casal Ivette e Luis Martirena é fuzilado na sua casa por soldados do Exército. Ñato, escondido no forro do telhado com um companheiro, é ferido, mas se rende e sobrevive. No episódio, usados como bucha de canhão, os militantes morrem, mas o líder se safa, o que não engrandece em nada sua memória.

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