Com um sétimo da população chinesa, o Brasil superou a China em número de mortes por Covid-19 e daqui a uma semana deverá ter o dobro das mortes registradas naquele país, segundo projeção matemática do Imperial College de Londres. Enquanto as mortes aumentam, as medidas de distanciamento social vêm sendo relaxadas, e o movimento nas ruas cresceu desde o fim de março. Para um grupo de matemáticos e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), há uma explicação para isso: a quarentena brasileira foi mal planejada e, em algumas regiões, precoce. O preço que se paga por isso é a pressão para arrefecer o isolamento às vésperas do momento mais crítico da epidemia.
A quarentena é a medida indispensável para conter a pandemia, recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela maioria dos estudos científicos. No Brasil, o principal problema apontado pelos pesquisadores é a forma como ela foi posta em prática. Os matemáticos, a maior parte deles ligada ao Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), que fica na cidade de São Carlos, interior de São Paulo, se juntaram desde o final de março para analisar modelos matemáticos que podem ser aplicados às políticas públicas relacionadas à quarentena. Também participam da iniciativa alguns professores da Unicamp e do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada).
Enquanto o presidente da República jogava contra a necessidade de isolamento, coube aos estados e municípios, desde a chegada da pandemia, a decisão de decretar suas próprias quarentenas. Em vez de impor um lockdown mais rígido nas cidades mais atingidas, como fizeram os chineses na província de Hubei, os governos estaduais editaram decretos brandos e simultâneos para regiões que estavam em estágios completamente diferentes de contaminação. Na avaliação dos pesquisadores, eles erraram no método e no momento adequado para tomar essas medidas. O custo de uma quarentena precoce é que o desgaste causado por ela também acontece mais rápido do que deveria. E as pessoas passam a desrespeitar o isolamento no pior momento possível.
Quanto mais o isolamento social funciona para deter o avanço catastrófico da epidemia, mais pessoas tendem a achá-lo desnecessário. O paradoxo pode ser explicado por uma analogia: a epidemia é como saltar de um avião, logo se atinge uma velocidade letal. Para sobreviver, é preciso abrir o paraquedas – ou, no caso da epidemia de Covid-19, decretar quarentena. Se depois de desacelerar até uma velocidade segura o paraquedista achar que já pode tirar o paraquedas, mesmo antes de chegar ao solo, o resultado será desastroso. Tirar o paraquedas no meio do salto equivale a interromper as medidas de isolamento social antes de a epidemia estar controlada. As consequências são fatais.
A tese desses pesquisadores é de que a quarentena, para ser realmente eficaz, precisa ser “inteligente e descentralizada”. Isso significa que as medidas de isolamento devem ser planejadas de acordo com a situação de cada cidade, levando em conta uma rede complexa de dados – desde o número de leitos de UTI disponíveis na região até a quantidade de ônibus que circulam na cidade, o número de escolas e a posição geográfica de cada uma delas. Eles condensaram tudo isso em um algoritmo que demora, em média, um dia para fazer cálculos hipotéticos e tentar prever a evolução da doença em cada município. É uma ferramenta que pode ser usada pelos governos estaduais para monitorar a situação em diferentes regiões e, com isso, endurecer ou abrandar a quarentena conforme as necessidades, sejam elas epidemiológicas ou econômicas.
“O que nós vimos em São Paulo foi um lockdown do estado inteiro. Cidades pequenas, com pouquíssimo fluxo de pessoas, tiveram que fechar o comércio. Isso gera um custo social e político muito grande, que mais à frente vai aumentar a pressão pelo afrouxamento da quarentena”, explica o matemático Tiago Pereira, professor e pesquisador do ICMC. “Se eu coloco todo mundo em quarentena, como foi feito, a doença fica dormente por um tempo e eu consigo proteger o sistema de saúde. Mas, quando as pessoas voltarem às ruas, todo mundo vai ser infectado.” Em outras palavras, a queda de paraquedas volta a se acelerar. O resultado disso, em termos práticos, seria a saturação do sistema de saúde, que é o grande perigo da pandemia. Corre-se o risco de haver muitas pessoas contaminadas ao mesmo tempo, sem leitos para todas elas. “Por isso é preciso ocupar o sistema de saúde de uma maneira inteligente, para que a doença seja contida no menor tempo possível.”
Foi o que a China fez, e que deu resultados. Wuhan, a cidade onde começou a pandemia, entrou em quarentena rígida no dia 23 de janeiro. As escolas foram fechadas, o transporte público suspenso e as estradas bloqueadas. Criou-se um cordão sanitário que abarcava outras dezesseis cidades do entorno. As medidas gradativamente se tornaram mais rígidas, mas sempre restritas à província de Hubei, dentro da qual se encontra Wuhan. Outros municípios passaram a adotar medidas mais brandas de isolamento. Na semana em que se decretou lockdown em Wuhan, 87% de todos os casos da China estavam concentrados ali.
A Wuhan brasileira foi São Paulo, epicentro da pandemia no Brasil. As duas cidades têm o mesmo número de habitantes – cerca de 11 milhões de pessoas. No dia 25 de março, um dia depois de o governador João Doria (PSDB-SP) ter decretado quarentena, 84% dos casos do estado de São Paulo estavam na capital. “Se tivesse sido feito um lockdown mais rígido na cidade de São Paulo, os municípios vizinhos não precisariam entrar numa quarentena tão forte. Ou talvez entrassem, mas só depois de semanas”, afirma Pereira. “A Região do Grande ABC, por exemplo, estaria com a vida relativamente normal.”
As grandes montadoras e indústrias do ABC, muitas das quais suspenderam suas linhas de produção, poderiam ter continuado abertas ao menos por algumas semanas. Com isso, o custo econômico da quarentena seria menor, assim como o custo social decorrente disso – menos trabalhadores seriam mandados para casa, ou não seriam mandados tão cedo.
Em suma, a quarentena feita no estado de São Paulo foi, ao mesmo tempo, branda e abrangente demais. Não isolou suficientemente o epicentro da pandemia – diferentemente de Wuhan, o transporte público continuou funcionando na cidade –, ao passo que paralisou a vida em municípios menores que poderiam manter uma rotina normal por um tempo a ser definido. E o mesmo aconteceu em outros estados, como o Rio de Janeiro.
O preço que se paga por isso agora é uma pressão cada vez maior pelo afrouxamento da quarentena. Espontaneamente, as pessoas têm abandonado o isolamento social. No dia 23 de março, uma segunda-feira, véspera de quando foram decretadas as quarentenas em São Paulo e no Rio, o índice de isolamento no Brasil era de 55,6%. Daquele momento em diante, o isolamento caiu, chegando a um patamar mínimo de 46% em 23 de abril, exatamente um mês depois. Os dados são da empresa In Loco, que calcula esse índice a partir do monitoramento de GPS de celulares.
O Ministério da Saúde prevê que o pico de transmissibilidade do coronavírus no Brasil vai ocorrer da metade de maio até a metade de junho. A curva do número de casos e mortes é cada vez mais íngreme. Um relatório publicado pelo Imperial College de Londres calcula que, até o fim desta semana, o Brasil terá mais 4,4 mil mortes causadas pela Covid-19 – somando, ao todo, pouco mais de 10 mil mortes desde o início da pandemia.
Dentre todos os 48 países analisados pelo Imperial College, o Brasil é o que tem o maior índice de contaminação, chamado Rt. Hoje, cada brasileiro infectado contamina outras 2,8 pessoas, segundo esse índice. Nos Estados Unidos, um infectado contamina só uma pessoa. Considerando os dez países com maior número de mortes até aqui, o Brasil é o único que está num momento de aceleração do número de infectados. O crescimento nos Estados Unidos já se estabilizou, enquanto na Itália, na França e na Espanha ele declina.
Diante dessas circunstâncias, afrouxar a quarentena deveria estar fora de questão. Mas é o que tem defendido não apenas o presidente, como também os governadores, em meio à pressão econômica resultante do isolamento. João Doria determinou que a quarentena em São Paulo deverá durar só até 11 de maio. Empresários como o presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, têm proposto modelos de retomada do trabalho para tentar conter danos maiores à economia. Outros estados discutem planos de flexibilização em maior ou menor grau.
Segundo Tiago Pereira, não há, neste momento, cenário plausível no qual o sistema de saúde da cidade de São Paulo poderia aguentar um processo de flexibilização da quarentena. O máximo de ocupação que as UTIs dos hospitais aguentariam seria se em torno de 1% da população da cidade estivesse contaminada. Hoje, segundo dados oficiais, só 0,13% da população está contaminada. A subnotificação, no entanto, é estimada em, no mínimo, doze vezes o número oficial. Isso significa que, hoje, a proporção real é de 1,6% de contaminados na população de São Paulo. As UTIs já estão, portanto, superlotadas.
O cálculo de ocupação máxima dos leitos é feito com base em estimativas, já que faltam dados no Brasil. “Dentre as pessoas que contraíram o vírus e eram sintomáticas, na China, 5% precisaram ser internadas na UTI. Na Itália, foram em torno de 12%”, afirma Pereira. “Essa é uma informação importante, mas no Brasil a gente não tem ideia de qual é a proporção. Estamos trabalhando com uma estimativa de que aqui seriam 10% dos contaminados. Mas se a proporção for igual à da Itália, a situação é muito preocupante.”
Diante disso, a resposta do algoritmo é clara: mesmo no universo de dados oficiais, a única saída possível para evitar o colapso do sistema de saúde de São Paulo é a adoção, o quanto antes, de um lockdown rígido por pelo menos dois meses. Como foi feito em Wuhan, e como deveria ter sido feito desde o princípio. A quarentena seria mais rígida onde deve, e mais branda onde ainda não é necessária. As previsões são inequívocas em mostrar que a quarentena simultânea e genérica para várias cidades nunca é a melhor opção para se conter a doença. Quando uma cidade flexibiliza o isolamento, outra enrijece.
Decretado um lockdown rígido na cidade de São Paulo, os municípios do entorno poderiam adotar medidas mais leves de isolamento, aponta o algoritmo. Nesse cenário, durante o primeiro mês de quarentena na capital, Sorocaba só precisaria evitar aglomerações de pessoas. Ribeirão Preto teria que fechar bares ou escolas. Quando o isolamento de São Paulo afrouxasse, tanto Sorocaba quanto Ribeirão precisariam endurecer suas medidas, mas nunca na mesma intensidade que a capital: seriam proibidas aglomerações, e os prefeitos poderiam escolher entre fechar bares ou fechar escolas. No terceiro mês, tanto São Paulo quanto as duas cidades evitariam apenas que houvesse aglomerações. Esse é um cenário hipotético, que até o momento está longe de se realizar. E quanto maior a demora para enrijecer as medidas de isolamento na cidade de São Paulo, mais distante fica a possibilidade de uma abertura lenta, gradual e segura.