O primeiro objeto do Cinturão de Kuiper foi avistado no telescópio de 2,24 m da Universidade do Havaí em Mauna Kea (foto: Mailseth/Wikimedia Commons – CC 3.0 BY-SA)
Até o início dos anos 90, os astrônomos acreditavam conhecer os principais protagonistas do sistema solar – Plutão, descoberto em 1930, havia sido o último grande astro encontrado na órbita do Sol. Até que dois cientistas planetários encontraram um objeto além da órbita de Plutão e mostraram que essa região do sistema solar está longe de ser vazia. Hoje, sabe-se que o Cinturão de Kuiper, como a região ficou conhecida, abriga mais de 70 000 corpos celestes com mais de 100 quilômetros de diâmetro – inclusive Plutão, que em 2006 passou a ser classificado como um planeta-anão.
Os dois astrônomos responsáveis pela descoberta do primeiro objeto do Cinturão de Kuiper – David Jewitt e Jane Luu, então sua aluna de doutorado – foram contemplados com o prêmio Kavli de Astrofísica, entregue na semana passada em Oslo. Dividiram a láurea com o colega Michael Brown, que descobriu na década passada alguns dos maiores objetos conhecidos do cinturão – como Quaoar, Sedna e Eris -, determinantes para o destino de Plutão.
Numa entrevista na Universidade de Oslo, onde fizera uma palestra sobre a descoberta do Cinturão de Kuiper, David Jewitt evocou a ocasião em que avistou seu primeiro objeto, batizado de 1992 QB1. Junto com Jane Luu, ele passou a noite de 30 de agosto de 1992 num telescópio da Universidade do Havaí em Mauna Kea, observando os confins do sistema solar em busca de novos objetos. A procura era feita com a comparação de imagens de uma mesma região do céu capturadas com um intervalo de 20 minutos, em busca de pontos que parecessem estar se movendo. Em geral a comparação era feita em grupos de quatro fotos, mas na segunda imagem em que viu algo em movimento aparente Jewitt suspeitou que estivesse diante de algo surpreendente.
“Com duas fotos você não pode ter certeza de nada, mas aquelas pareceram realmente boas”, disse Jewitt, que hoje é professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles. “Chamei Jane e ficamos esperando mais 20 minutos até a próxima imagem aparecer. Quando ela surgiu, estava perfeita, assim como a quarta, que veio em seguida. Tínhamos quatro pontos alinhados numa reta, não havia chance que aquilo fosse causado por algo aleatório. Soubemos imediatamente que era algo sério. Logo calculamos a distância e obtivemos 52 [unidades astronômicas, equivalentes à distância média entre a Terra e o Sol] – que não está correta, mas foi o que encontramos então. O objeto estava muito distante, muito além de tudo o que conhecíamos no sistema solar.”
Temerosos de perder o objeto recém-encontrado, os dois permaneceram com os olhos grudados no monitor onde recebiam as novas imagens. “Se saíssemos dali, talvez nunca mais encontrássemos esse objeto, porque poderíamos não saber como apontar o telescópio de forma adequada”, contou Jewitt. “E assim ficamos pelo resto da noite. Estávamos tão terrificados com a idéia de perdê-lo de vista que queríamos nos assegurar de que ele continuaria se movendo em linha reta. E ele continuou, de forma perfeita.”
A dupla precisou ainda descartar a hipótese de que um outro fenômeno pudesse ter deixado o padrão observado por eles nas imagens. Não parecia ser o caso. Calcularam também o brilho do objeto e, conhecendo esse valor e a sua velocidade, puderam inferir o tamanho do astro – 250 quilômetros de diâmetro. Jewitt contou que ele e sua aluna logo se deram conta das consequências de sua observação. “Sabíamos que, se encontramos um objeto daquele tipo, deveria haver outros milhares como ele”.
O passo seguinte foi comunicar a novidade aos colegas, numa circular da União Astronômica Internacional veiculada algumas semanas depois. O registro do novo objeto na literatura só veio no ano seguinte, com a publicação de um artigo na revista Nature comunicando a descoberta. O objeto acabou conhecido apenas pelo seu nome técnico, 1992 QB1. Jewitt é avesso à ideia de batizar novos astros com nomes mais familiares como os dados a outros corpos do Cinturão de Kuiper. “Nomear esses objetos é apenas um meio de atrair a atenção pública, mas não tem nenhum sentido científico”, alfinetou.
Na opinião de Jewitt, o mesmo tipo de busca por publicidade acabou atrasando em décadas a descoberta do Cinturão de Kuiper. “A pessoa que descobriu Plutão em 1930 [Clyde Tombaugh] chamou-o de planeta porque estava procurando por um planeta. Ele poderia ter descoberto o Cinturão de Kuiper, mas em vez disso preferiu enxergar um planeta.” Não foi uma ocorrência única na história da astronomia. “Plutão foi registrado em placas fotográficas feitas por volta de 1890, mas ninguém notou, porque não estavam pensando nisso.”
O caso mais espantoso, continuou Jewitt, é o do planeta Netuno, descoberto em 1846, mas avistado séculos antes por Galileu Galilei, o primeiro a apontar um telescópio para o céu. “Galileu estava procurando as luas de Júpiter, então foi isso que desenhou”, contou. “Ele chegou a desenhar uma mancha no fundo que é Netuno, mas não concebeu que pudesse ser interessante”.
A história do nosso entendimento do sistema solar teria sido diferente se Galileu tivesse atinado para Netuno em 1610 e se a descoberta de Plutão e do Cinturão de Kuiper tivessem sido antecipadas. Mas Jewitt ressaltou que isso é algo que só podemos dizer em retrospectiva. Na avaliação dele, o cientista não deve limitar seu raciocínio aos dados que é capaz de enxergar. “O desafio é perceber coisas que estão atualmente além da sua percepção”.
O blogueiro viajou a Oslo financiado pelo Ministério da Educação e Pesquisa da Noruega e pela Academia Norueguesa de Ciências e Letras.
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