Um.
Paraísos artificiais
Fazia um calor opressivo às duas da tarde de sexta-feira, 6 de outubro, quando Paulo Henriques Britto recebeu-me em sua sala no quinto andar do prédio do departamento de Letras da PUC-Rio, no bairro da Gávea. Usava óculos de grau, camisa polo cinza, calça jeans escura e as habituais sandálias, que lhe conferem um aspecto simples e despretensioso. Considerado um dos principais tradutores brasileiros vivos – são mais de 100 livros vertidos do inglês para o português durante quase meio século –, além de poeta e contista premiado, ele se prepara para lançar um livro de poemas no ano que vem – do qual farão parte os versos inéditos do final desta entrevista – e mais um volume de contos, em 2019. Britto deixa os óculos caírem pescoço abaixo, e diz:
– Desde menino eu já sabia que seria escritor. Agora, tradutor foi acontecendo. Em 1972, fui estudar cinema na Califórnia e comecei a traduzir. Tinha um amigo que era ligado em literatura, eu traduzia para ele umas músicas do Caetano, coisas que faziam sucesso na época, e teve essa história de ficar escrevendo em inglês. No início, eu traduzia meus próprios contos. Depois, dos anos 80 até meados de 2000, foi uma fase em que traduzi muito. Quatro livros por ano. Quando entrei para a pós-graduação aqui na PUC, cheio de orientandos, meu ritmo caiu. Hoje faço em média um livro e meio por ano.
– Você seleciona?
– Eles me mandam. A essa altura, já sabem mais ou menos o que eu gosto. Finalizei um do Teju Cole e estou fazendo um do James Baldwin.
Menciono O Som e a Fúria, de William Faulkner. Para muitos um dos principais romances do século XX, a obra sobre a decadência de uma família no sul dos Estados Unidos ganhou uma elogiada tradução de Britto pela extinta Cosac Naify.
– Foi a minha única pulada de cerca nesses 31 anos de Companhia das Letras. – Ele ri. – Quem me lançou na poesia foi o Augusto Massi. Em 1989, mais ou menos, foi que comecei a ser lido, e graças ao Augusto. Eu tinha uma dívida com o Augusto, ele sempre me dizia, quando estava na Cosac, “Paulo, queria que você fizesse Faulkner para nós”. Era um livro difícil, então estendi o prazo ao máximo. Levei um ano e meio para fazer. Foi uma delícia.
– Uma nova edição de O Som e a Fúria acaba de sair pela Companhia das Letras. Você chegou a revisá-lo desta vez?
– Não, mas algumas vezes eu reviso. Em novembro sai pela Companhia uma reedição do Wallace Stevens. Incluí dezoito poemas, alterei estrofes inteiras, fiz seção de notas. Nesses trinta anos desde a primeira edição, eu tive acesso às cartas dele, é outra coisa. Revisei tudo – diz, a respeito do poeta norte-americano.
– E como você vê o mercado hoje?
– As editoras finalmente estão entendendo que uma má tradução derruba o livro. Antigamente o tradutor entregava o trabalho, recebia o pagamento e pronto. Aí o editor mexia, o revisor mexia, e você ficava fulo porque estava no seu nome e não era você que tinha feito aquela besteira. Na Brasiliense aconteceu isso. Eles tinham uma coleção de livros de crime, eu traduzi uns três, e tive um problema com O Sono Eterno, do Raymond Chandler. Lembro de um trecho mencionando “madrepérola”, mas não nos termos certos. Levei horas correndo atrás para entender que diabos era aquilo e no final das contas o revisor colocou pistola de pérola. Fiquei puto. Tinha passado horas deixando bonitinho e o cara foi lá e botou qualquer coisa. A partir daí comecei a interferir e ver se autorizava modificações.
– Como é o teu processo de tradução?
– Prosa eu tenho uma certa rotina. Primeiro faço o rascunho de cada capítulo ou seção, e traduzo usando um programa que transforma a fala em texto. Cansa muito menos. Aí, quando acaba o capítulo, copio e colo no Word. É quando faço o cotejo, a parte mais chata, me dá um sono desgraçado. Você descobre que pulou diálogo, trocou nome de personagem. É aí que pega as bobagens. Tem que ser um trabalho bem meticuloso. Quando o livro está todo cotejado e rascunhado eu leio o texto todo sem consultar. Poesia é totalmente diferente. Leio o poema e já vou direto no computador, não uso o negócio de ditar. Revejo, vou e volto, é uma coisa de ir e vir.
– Qual sua tradução preferida?
– Gosto muito do livro do Wallace Stevens, do Arco-íris da Gravidade, do Pynchon. Uma Casa para o Sr. Biswas, do V. S. Naipaul, me deu um prazer, várias pessoas leram e adoraram. Já as traduções que eu menos gosto são as primeiras. Naquela época uma coisa atrapalhava: os revisores eram mais velhos, criavam problemas. O diálogo, por exemplo, é fundamental, e os revisores não me deixavam traduzir de forma coloquial. Um diálogo e os caras queriam que eu botasse Vi-o. Porra, ninguém fala Vi-o, as pessoas falam Vi ele. Os próprios escritores tinham dificuldade com marcas de oralidade, aquele problema da obsessão com norma culta.
– Você é bem atento à produção atual, não?
– Prosa eu leio pouco, mas gosto do Bernardo Carvalho, do André Sant’Anna. Na poesia estamos num momento bom, muita gente fazendo coisa boa, é claro que tem a pegada de geração e uns trabalhos parecidos, mas têm saído obras ótimas. Gosto muito da Alice Sant’Anna, que agora é minha editora na Companhia das Letras, da Catarina Lins, lá de Florianópolis, muito boa, e um rapaz também que está morando no Sul, Ismar Tirelli Neto. A gente estuda muito ele nas minhas oficinas.
– Como aconteceu de ir da tradução para a sala de aula?
– Eu já dava aulas no Ibeu [Instituto Brasil-Estados Unidos, que oferece cursos de tradução], e era aluno da PUC. Um professor teve hepatite e não poderia dar aula. As turmas começariam em duas ou três semanas, aí me chamaram. Comecei a lecionar quando ainda estava me graduando, em 1978. A rotina era maluca, eu assistia a uma aula e ia dar aula para os meus colegas. Aí, nesse mesmo ano, eu me formei e ficou tudo certo.
Dois.
Um paraíso real
Paulo Henriques Britto é adepto de construções kafkianas para seus personagens, constantemente enredados em situações extremas e inevitáveis. Alguns de seus contos surgem de sonhos. Um deles foi sobre uma linha de ônibus praticamente desativada que cruza a cidade e um sujeito acaba se metendo numa enrascada ao tomá-la. O possível pesadelo deu origem a “O 921”, sétimo conto de Paraísos Artificiais. Lançado em 2004, o livro reúne nove histórias, a última delas, uma quase-novela. A inexorável aproximação da morte é uma constante na prosa de Britto. Pergunto quais são suas principais influências.
– Li muito Sartre, Tchekhov, Machado de Assis. E muito Kafka, que releio com frequência, especialmente os contos reunidos dele. Logo que cheguei na Califórnia corri para comprar os contos completos em inglês, tenho esse livro até hoje.
– Kafka foi sua maior influência?
– Acho que o Cortázar também. Lendo ele, você percebe que a gente sobrecarrega as coisas de significados que não se sustentam. Em um conto que escrevi, “Castiçal florentino” [publicado na edição de outubro de 2012 da piauí], mostro que esse significado que a gente atribui às coisas na verdade não tem a menor importância. O que parece sólido pode se desmanchar no ar com muita facilidade. Acho que no fim das contas o desmanche é o meu tema.
– Por que você considera esse o seu tema?
– Nos contos que tenho escrito nos últimos anos, principalmente, os personagens se embrenham em situações complexas, investem muita emoção naquilo, e de uma hora para outra tudo desaba, e o conto termina. E aí fiquei achando que esse tema está nos poemas também: é partindo do nada, as coisas tais como são, desprovidas de sentido e de causalidade, que a gente constrói, basicamente por meio de palavras, essas formas que constituem a nossa realidade. Mesmo que elas se tornem estruturas muito complexas, na verdade são frágeis. Podem deixar de existir sem mais nem menos.
O último livro de Britto, Formas do Nada, de 2012, é construído também ao redor de questionamentos como esses. Uma das leituras possíveis é que se trata de uma reflexão sobre a tentativa eterna de dar um sentido, uma forma, à própria existência. Ele comenta:
– É com as palavras que damos sentido à vida, mesmo sabendo que ela, em si, não tem sentido nenhum, não vem de lugar nenhum e nem vai para lugar nenhum. Mas, enquanto se está vivo, o que se faz o tempo todo é justamente transformar essas coisas informes em formas dotadas de sentido – completa.
– E qual a relação dessa busca por um sentido com essa questão de que falávamos, do desmanche?
– A forma a gente não encontra, mas constrói. A realidade em que vivemos é uma construção cultural, um construto de palavras. Mas há por trás dela uma outra realidade bruta, cega, inteiramente desprovida de sentido, que a gente sente na carne quando sofre um acidente, ou quando passa por um terremoto ou um furacão, ou simplesmente quando uma pessoa próxima de nós, cheia de vida, totalmente envolvida com o mundo, morre de repente, sem mais nem menos. Isso é uma das formas – a mais radical – do desmanche.
Duas batidas na porta da sala, nesta tarde abafada na PUC-Rio. Britto se levanta e contorna a mesa. É um aluno que chegou para orientação. Ele pede que espere alguns minutos.
– Voltando à criação literária, saiu na imprensa que você lança mais um livro no ano que vem.
– De poesias. Já está pronto. Quer dizer, quase pronto. Vou para Portugal no verão e até lá já pretendo ter ele fechado. Serão cinquenta poemas curtos.
– E o de contos?
Ele abaixa a cabeça, como se avaliando a confusão, hesita estimando a obra e diz:
– Ah, só em 2019. Não tem título definido. Está muito pequeno. Tem uns cinco ou seis prontos, estou tentando fazer mais um. Quero ver se no verão produzo mais alguma coisa. O problema é que as duas pessoas que me liam morreram, minha mulher, Santuza [em 2012], e o Antonio Carlos Viana. Eles me davam dicas… Mas agora não tenho mais a opinião deles, e eu não vou ficar pedindo às pessoas que leiam, está todo mundo atolado de trabalho. Tô meio na mão do meu editor.
– E você definiu uma temática geral para o livro de contos? Como vão ser?
– Ainda tem coisas que escrevi nos Estados Unidos. Eu vivo revisitando. O texto que abre o Paraísos Artificiais, por exemplo, era parte de uma carta que eu escrevi, o conto “O primo” era o começo de um romance escrito lá.
– Como você se dá com outros idiomas?
– Não sou bom em idiomas estrangeiros. Espanhol eu leio razoavelmente bem, francês muito mal, alemão não leio nada, e é uma ironia que o escritor que eu mais gosto escreva numa língua que eu não leio.
Pergunto como foi traduzir grandes escritores anglófonos vivos, como Thomas Pynchon, Ian McEwan, Philip Roth e Don DeLillo, e se houve interação com eles.
– O Pynchon é dificílimo, mas completamente acessível, responde a todas as minhas dúvidas. Mando tudo para a mulher dele, e o sujeito é extremamente prestativo, ele e o John Updike foram os mais prestativos. Tem uns que são difíceis. Com o Naipaul e o Philip Roth, por exemplo, não fui bem-sucedido. São pessoas enroladas, difíceis, qualquer pergunta já ficam na defensiva, acham que é uma crítica.
– Você já falou da melhor parte de traduzir. E fazer prosa e poesia? Quais as melhores partes?
– Aparar as arestas, olhar e dizer “agora esse troço tá pronto”. O momento inicial também é bom, encarar a tela em branco e começar a escrever. Perguntaram ao João Cabral essa mesma coisa e ele disse: “Tem a hora que o poema faz um clique.” É exatamente isso. Acho extremamente prazerosa a hora que você faz uma mudança e não precisa mexer nada. Mas também é ilusório, vou dormir achando tudo perfeito, acordo e vejo que tava uma merda. Acaba que tem sempre uma hora que eu digo que fechou mesmo.
São pouco mais de três e meia da tarde. O calor na PUC está infernal, e Britto orienta um aluno em sua sala. O tradutor e escritor é admirado entre os estudantes, a ponto de terem criado o Prêmio Paulo Henriques Britto de Prosa e Poesia, responsável por revelar nomes como Miguel del Castillo, Carlos Eduardo Pereira e a própria Catarina Lins. A próxima edição será no mês que vem.
Cabe uma última pergunta sobre a criação poética, e Britto retoma a reflexão sobre a relevância da forma no seu processo de escrita.
– Para mim, o que puxa o poema é o verso ou uma forma. Gosto de inventar formatos, os sonetoides mancos, por exemplo, que têm rimas internas e versos a menos. Em um dos livros tem os sonetetos, que são literalmente sonetos cortados ao meio.
Simples assim.
Dois poemas inéditos do livro previsto para 2018:
Glosa sobre um mote de Sérgio Sampaio
E onde quer que eu esteja, eu não estou.
Onde fui posto, ali não quis ficar,
porque era muito pouco e era demais,
e também por não ser o meu lugar,
que era bem na frente, e era lá atrás.
Não que houvesse um lugar onde eu quisesse
estar. Isso seria fácil. Não.
É que eu fujo de tudo que parece
ser fácil, e pra toda solução
dou sempre um jeito de achar um problema,
e diante do que está se resolvendo
procuro outro, pra tirar a teima.
Só me interessa o que não compreendo,
só amo o que não sei e não se explica.
Não quero ir aonde vou. Mas vou.
Estou aqui e não sei onde isto fica,
e onde quer que eu esteja, eu não estou.
–
Lacrimæ Rerum
É o lamento das coisas,
a desdita da matéria.
Não tem nada a ver conosco,
com nossa breve miséria,
nosso orgulho de organismo.
É uma questão de moléculas,
que antecede a biologia
por coisa de muitos séculos.
Diante dessa dor arcana
nosso entendimento pasma.
Nem tudo está a vosso alcance,
ó seres de protoplasma.