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Uma Vida Oculta – sacrifício e paixão para enfrentar o mal

Guardadas as diferenças, demora para identificar o desastre une Alemanha nazista e Brasil bolsonarista

Eduardo Escorel | 04 mar 2020_11h00
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“Não reconhecem o mal quando o veem?” Feita na Áustria em 1940, essa pergunta poderia ser repetida hoje, no Brasil. Em Uma Vida Oculta, escrito e dirigido por Terrence Malick e baseado em fatos reais, a indagação denota espanto diante da falta de reação à Anschluss pela Alemanha nazista, realizada em 1938 com amplo apoio dos austríacos, inclusive da alta hierarquia da Igreja Católica. Guardadas as devidas diferenças, a resposta correta nos dois casos é a mesma – o mal do nazismo não foi reconhecido a tempo em larga escala e, entre nós, persiste a recusa em admitir a realidade com relação ao bolsonarismo (mistura letal de ignorância, estupidez e convicção autoritária) em setor significativo da população brasileira desde a campanha e a eleição presidencial de 2018. Diante de Uma Vida Oculta, portanto, temos a revelação imprevista de que o dilema do pequeno fazendeiro Franz Jägerstätter (August Diehl) é semelhante ao nosso. “O mal no filme não é uma coisa específica, ou uma pessoa, mas um tipo de veneno que corrompe cada indivíduo à sua maneira. E o veneno nunca desaparece de fato”, escreveu Bilge Ebiri, crítico do site Vulture.

O sinal de alerta para o mal predominante, dado em Uma Vida Oculta, é suficiente, por si só, para fazer do filme de Malik um evento marcante, independente de ressalvas que possam ser feitas a respeito.

Franz e Franziska Jägerstätter (Valerie Pachner) vivem sua paixão plantando batatas acima das nuvens, no alto das montanhas de Sankt Radegund, na Áustria. A vida de Franz e a relação do casal são sacrificadas por ele levar sua objeção de consciência às últimas consequências, convencido que é preciso se opor ao mal, mesmo que por meio de uma ação individual inconsequente, e que o mundo continue a ser tal como é. Considerado ato de loucura, pecado contra a cidade, martírio inútil, o valor da atitude de Franz está no ato de fé em si, não em seus possíveis efeitos. O que importa é fazer o que julga correto. “E ele estava pronto para sofrer e morrer em nome de sua coerência e integridade pessoal”, escreveu o professor de teologia Robert A. Krieg, da Universidade de Notre Dame, na introdução à correspondência de Jägerstätter editada por sua biógrafa Erna Putz em Franz Jägerstätter: Letters and Writings from Prison (Orbis Books, 2009, sem edição em português).

uma vida oculta
Cena do filme Uma Vida Oculta – Divulgação

 

Por se recusar a fazer a saudação e o juramento de fidelidade a Hitler, Jägerstätter foi preso e veio a ser decapitado em 9 de agosto de 1943. Passados mais de sessenta anos, através de uma exortação apostólica, foi considerado mártir, em 2007, pelo papa Bento XVI que, meses depois, o beatificou, primeiro passo para a santificação. A cerimônia ocorreu durante uma missa na catedral de Linz, com a presença das filhas de Franz e de sua viúva Franziska, então com 96 anos.

Inspirado na correspondência de Jägerstätter, Malick adota narrativa parcialmente epistolar em Uma Vida Oculta, adequada ao seu uso habitual de diálogos em off. O modo de filmar também é conhecido dos que assistiram a seus filmes anteriores, pelo menos desde O Novo Mundo (2005) – predomínio de câmera flutuante em movimento, planos longos muito próximos filmados com lentes grande angular que distorcem a imagem, e cortes descontínuos. Esse estilo recorrente, usado indistintamente para narrar histórias diferentes, corre o risco de se tornar um maneirismo tedioso, o que inclui a tendência de Malick para estender a duração dos seus filmes que, no caso de Uma Vida Oculta, chega a 174 minutos.

Outro aspecto questionável de Uma Vida Oculta é o uso de imagens extraídas e remontadas de pelo menos dois documentários clássicos. Na abertura há uma sequência feita com planos de O Triunfo da Vontade (1935), de Leni Riefenstahl, famoso filme de propaganda sobre o sexto congresso do Partido Nazista realizado em Nuremberg no ano anterior ao do lançamento. Um trecho de Berlim, A Sinfonia de uma Grande Cidade (1927), de Walter Ruttmann, também é usado quando Jägerstätter é transferido para a penitenciária Tegel, na capital alemã, em 1943. Nos dois casos, Malick recorre a obras autorais já citadas ou pilhadas à exaustão em inúmeros filmes e, ainda por cima, altera a edição original como se não passassem de um conjunto de imagens anônimas de arquivo. Isso para contextualizar seu filme através das cenas de Riefenstahl e, mais adiante, para situar a ação ocorrida em 1943 com os planos de Ruttmann filmados na década de 1920.

Causa espanto, e certa indignação, um cineasta com as altas pretensões artísticas e espirituais de Malick ter sido capaz de abusar de seus colegas dessa maneira para explicar ao espectador que a história do filme se passa durante os anos do regime nazista e que o personagem está sendo transferido para Berlim.

 

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