Quem se lembra das cenas do massacre no Presídio de Pedrinhas, no Maranhão ─ cabeças decepadas, internos no telhado com facas e armas, imagens de braços rijos acenando por detrás de grades carcomidas ─, sabe da tragédia do sistema carcerário brasileiro. Superlotação, precariedade institucional, guerra descontrolada entre facções criminosas, estrutura vergonhosa e perspectiva exasperante.
Nos últimos tempos, no entanto, rebeliões e motins deixaram de ser o motivo pelo qual as penitenciárias do país garantiam espaço no noticiário. Quando parte da elite brasileira foi colocada atrás das grades por corrupção, as reclamações sobre o estado das cadeias passaram a ser de outra ordem ─ outras prioridades, outros conceitos, outras necessidades. Os holofotes foram direcionados para dois presídios específicos, que começaram a aparecer ─ dia sim, dia não ─ em tevês e jornais: o Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, no Rio de Janeiro ─ onde 21 réus da Lava Jato puxam cadeia, inclusive Sérgio Cabral, ex-governador do estado ─, e o Complexo Médico-Penal do Paraná, em Curitiba, que detém mais de uma dezena de acusados da Lava Jato. Entre eles, o ex-deputado federal Eduardo Cunha e o ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores João Vaccari Neto.
As comparações foram inevitáveis. “Em Curitiba, o ambiente é muito melhor, o contato funciona. Eu consigo ir junto com meu sócio, e nós dois falamos com o cliente. No Rio, isso não é permitido”, disse-me o advogado Mauro Coelho Tse, que atende um réu preso em Bangu e outro na penitenciária do Paraná.
A lista de reclamações da equipe de defesa dos empresários, políticos e funcionários gabaritados presos em ambas penitenciárias é longa. A começar pelo parlatório ─ as cabines usadas por advogados e detentos para conversar entre si. Em Bangu 8, há apenas cinco guichês, cada um equipado com dois telefones, pelos quais se dá a conversa entre cliente e advogado. Apenas dois aparelhos estão funcionando. E mal. Além da fila para ocupar as duas únicas cabines, a qualidade do áudio produz constrangimentos, segundo os advogados. Eles precisam gritar para se fazer entender, o que faz com que as conversas sejam ouvidas por quem está ao lado.
O criminalista Alexandre Lopes, que também está na ponte Bangu─Curitiba reforça a impressão. “Para exercer a defesa eu preciso mostrar documentos aos meus clientes, analisar provas em conjunto, afinal, ele sabe mais do que eu sobre a história”, disse. “Em Bangu não há essa possibilidade. Se chegam oito advogados ao mesmo tempo, é preciso esperar muito tempo até conseguir usar uma cabine.”
Situado numa das regiões mais descampadas e calorentas do Rio, a 44 quilômetros do Centro da cidade, com ruas sem asfalto e escasso transporte público, o Complexo de Bangu foi fundado em 1987. É um imenso caixotão de concreto pintado de verde e branco. Os presos da Lava Jato se dividem entre Bangu 9, onde ficava o empresário Eike Batista, que saiu no final de abril para cumprir prisão domiciliar, e Bangu 8, onde estão os detentos com curso superior ─ como Sérgio Cabral, o empresário Miguel Iskin e Sérgio Côrtes, ex-secretário estadual de saúde do Rio de Janeiro.
O advogado Mauro Coelho Tse contou já ter ficado quase duas horas na fila para usar uma cabine. Para o advogado, a falta de privacidade é o principal problema. “O Estatuto da Advocacia garante contato pessoal e reservado do advogado com o seu cliente. Em Bangu, o parlatório não é reservado. Qual a garantia eu tenho de que a conversa não está sendo gravada? Custa muito oferecer uma mesa e duas cadeiras?”
Encravada na borda sul da capital paranaense, a 21 quilômetros do Centro da cidade, a cadeia de Curitiba ocupa, desde 1993, o prédio de um antigo manicômio judiciário, pintado de azul royal por fora e de amarelo por dentro. “Eu prefiro trabalhar quando a audiência é lá em Curitiba. Por mim, seria sempre lá”, reclamou um advogado que atende dois presos da Lava Jato em Bangu. “Eu estou entrando com uma representação contra o Estado. É impossível trabalhar lá no Rio”, disse-me recentemente outro criminalista que preferiu se manter no anonimato “para não correr o risco de ser prejudicado”. Ele entrou nos casos há pouco mais de um mês, depois que um colega de profissão abriu mão dos clientes.
Em Bangu, mais problemas. Os depoimentos que acontecem dentro do presídio ─ quando o detento não pode ir pessoalmente até o juiz ─ deveriam ocorrer em sessões fechadas. Só que não. Há uma horda de advogados penetras curiosos em assistir audiências sobre um caso tão badalado como o da Lava Jato. A situação levou a administração do presídio a adotar uma nova prática: uma chamada antes dos depoimentos para evitar a presença da plateia clandestina. Obviamente, o procedimento atrasa as audiências. “Lá em Curitiba não existe isso. Estive lá nos dias dos depoimentos da Adriana Ancelmo e do Sérgio Cabral, e depois dos 15 minutos iniciais de protocolo o depoimento logo começa”, conta um advogado que não quis se identificar. “Aqui no Ri0 as sessões demoram muito mais porque, antes, cada depoente tem que listar os nomes de seus advogados, um a um, para conferir com quem está na sala.”
Os criminalistas também esbravejam contra o excesso de burocracia carioca. Em Bangu, somente pai, mãe, cônjuge e filhos e um amigo podem visitar os presos ─ estejam eles condenados ou não. O ingresso no presídio, no entanto, depende de uma carteira de identificação feita pela administração. Cada um deve levar os originais dos documentos de identificação e esperar que a carteirinha fique pronta ─ o que, em tese, deveria levar até 30 dias úteis. Em Curitiba, quem está preso preventivamente tem mais flexibilidade neste cadastro de visitas, que podem incluir namorada, namorado, outros parentes e amigos, desde que apresentem CPF original, fotos e comprovante de residência. O processo de autorização é, também, mais célere: em uma semana está tudo pronto. Ou seja, na prática, os presos preventivos de Bangu sofrem uma burocracia que deveria ser destinada apenas para quem já foi condenado ─ pelo menos na comparação com Curitiba. “Não acho razoável que se exija do parente do preso preventivo o mesmo credenciamento excessivo de quem já está condenado. A habilitação do visitante pode levar mais de um mês para ficar pronta, e a prisão preventiva, em tese, não deveria durar tanto tempo”, lamentou Mauro Coelho Tse. “No Rio, o cumprimento das prisões preventivas se dá como se já fossem cumprimentos de penas, como se o preso já estivesse condenado, e isso vai contra a lei”, opinou o jovem advogado cujo cliente foi preso em abril.
A situação de Bangu chamou a atenção da seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil. A entidade chegou a fechar uma parceria com o governo para reformar os parlatórios. A estrutura do Presídio Ary Franco, em Água Santa, já recebeu melhorias: o espaço ganhou sala para conversas privadas com clientes e defensores, bancada, nova iluminação, pintura, computador e ar-condicionado. Em nota, a OAB declarou que “vem denunciando as péssimas condições impostas aos advogados e clientes do Sistema Penitenciário do Estado”.
Com as operações Calicute e Eficiência, desdobramentos da Lava Jato no Rio, a previsão é de que a cadeia de Bangu receba novos hóspedes em breve. Em Curitiba, ainda há vagas sobrando.
Se para a elite neófita no xadrez a coisa parece um pesadelo, o que dirão os anônimos que semanalmente se organizam em filas intermináveis na porta do presídio para visitar parentes. Em uma manhã de sábado recente, dezenas de mulheres estavam de pé na fila de entrada de Bangu carregando sacolas, bolsas e sacos. “Agora que tem esses políticos aí, a triagem para entrada está muito mais sinistra, tudo demora muito mais”, contou uma técnica de enfermagem de 37 anos que aguardava sua vez na fila do raio X. Ressabiadas, elas se queixavam em voz alta, mas pediam para não ter os nomes revelados na publicação da reportagem.
Uma vendedora de churrasquinho confirmou que a inspeção ficou mais rigorosa depois que Bangu virou notícia. Todas as atenções estão voltadas para o presídio, ela disse, desde que a imprensa passou a dar plantão no local.“Antes ninguém ligava pra Bangu, né? Agora que o Sérgio Cabral está aí, está todo mundo de olho”, disse a comerciante, uma entre as dezenas de vendedores de comida que atuam na entrada da detenção. “Mas é bom mesmo que vejam o massacre que é lá dentro”, emendou. Dentre os relatos da rotina em Bangu estão superlotação, calor extremo e condições insalubres relatadas pelos presos durante as visitas ─ o que inclui ratos e baratas transitando livremente pelo local.
Em frente a Bangu, cinco escritórios de advocacia estavam abertos para expediente. Um deles era o da advogada Miriam Basílio, instalada ali há quatro anos. Ela lembrou que a penúria das visitas diminuiu um pouco em 2015, quando foi aprovada a lei que proíbe revista íntima na entrada dos presídios. “Antes ficavam filas intermináveis na porta porque a revista levava muito mais tempo. Agora usam detector de metais, raio X, scanner corporal”, disse.
Ela tem cerca de 200 clientes em Bangu. Nenhum da Lava Jato. No trabalho diário de entrar para falar com os presos, ela também reiterou as queixas dos advogados dos “presos de repercussão”, como chama. A advogada explica que as filas para ver os clientes podem tomar mais de uma hora. “Como só podemos visitar três presos por unidade, muitas vezes nossos dias são perdidos. Tem colegas que só estão chegando agora a Bangu e estranham essa situação, mas já é assim há muito tempo”, contou.