Oempresário Gilmar Bueno ainda se lembra da burocracia que sua mãe precisou enfrentar para lidar com uma cobrança indevida de operadora de telecomunicações em 2019. Depois de várias idas e vindas, nada se resolvia. A partir do caso da mãe, Bueno decidiu criar uma startup de direito e tecnologia capaz de ajudar consumidores de baixa renda a enfrentar na Justiça problemas com empresas de serviços. Porém, se ele entendia de tecnologia, faltava alguém que conhecesse o direito. Ele convidou para se associar ao projeto uma estudante que conheceu pelo Facebook, Sara Raimundo. Ali surgiu a Unicainstancia, uma lawtech que avalia gratuitamente problemas dos consumidores com empresas de telecomunicações, luz, água, e-commerce e dívidas – o chamado CPF negativado. A Unicainstancia analisa o problema, oferece uma indenização antecipada e se torna titular dos problemas do consumidor na Justiça. Antes de entrar no mercado pra valer, a empresa foi um projeto de empreendedorismo da UFRJ e fonte de muito trabalho conjunto. “A gente se reunia todo dia no Starbucks da Cinelândia, trabalhava no projeto e então eu deixava a Sara no estágio e ia pro Tribunal de Justiça seguir com as entrevistas que davam as informações para a gente montar nosso modo de operação”, conta Gilmar enquanto traça a rota com o dedo. Hoje, esses pontos históricos são parte da paisagem do coworking que a empresa usa como sede, no Centro do Rio. “Nós até pensamos em sair daqui, mas Sara não deixava, falava que daqui dava pra ver nossa história.”
Em 21 de abril, Sara sofreu uma parada cardíaca no voo para Houston, Texas, onde faria conexão para São Francisco, Califórnia. Estava indo como ouvinte para o evento Brazil at Silicon Valley, sobre inovação e tecnologia. Tinha 32 anos e ia realizar o sonho de conhecer os Estados Unidos. Ela recebeu os primeiros-socorros ainda no voo e, após um pouso de emergência, foi encaminhada ao hospital mais próximo, mas não resistiu. Deixou duas irmãs já órfãs e uma comunidade de amigos e colegas do Unicainstancia.
O mal súbito veio para surpresa de todos. Sara não tinha problemas de saúde, se alimentava bem e se exercitava com regularidade. Apesar disso, sua morte é face de um problema mais amplo. Um estudo da American Heart Association aponta as doenças cardiovasculares como a principal causa de disparidade entre a expectativa de vida de pessoas negras e brancas em 2017. No mesmo ano, outro estudo, publicado no Journal Of Clinical Hypertensio, apontava que pessoas negras têm duas a três vezes mais chance de morrer de doenças cardíacas e derrames evitáveis do que pessoas brancas. As diretrizes brasileiras para o cuidado das pessoas com doenças crônicas nas redes de atenção à saúde afirmam que as desigualdades sociais, diferenças no acesso aos bens e aos serviços, baixa escolaridade e desigualdades no acesso à informação propiciam os agravos decorrentes da evolução dessas doenças.
Sara Raimundo nasceu na favela de Antares, Zona Oeste do Rio. Órfã desde 2021, era a filha do meio de três irmãs. Trabalhou como ensacadora do Prezunic, foi maquiadora, vendeu brownies, fez curso técnico em informática e trabalhou na Casa da Moeda. Em 2014 começou a trabalhar no Consulado dos Estados Unidos, onde descobriu o Ciência sem Fronteiras, extinto projeto do governo federal que tinha por objetivo oferecer bolsas de estudos para estudantes do ensino superior público em vários países do mundo. Descobriu um sonho e decidiu vivê-lo. Pesquisou o que era preciso para participar do programa. Ficou em dúvida entre ciências sociais e direito. Pragmática, decidiu pelo que apostava que daria retorno financeiro mais rápido: faria direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estudava para o vestibular e trabalhava no Consulado. Saía de casa às 4h30 e chegava ao trabalho por volta das 7 horas. Na reta final da preparação, apostou tudo e pediu demissão para se dedicar completamente aos estudos.
Em 2015, Sara ingressou na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, onde participou do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições (Letaci). Pesquisava sobre liberdade de expressão e os direitos da personalidade, área voltada para o direito irrenunciável e intransmissível que cada indivíduo tem de controlar o uso de seu corpo, nome, imagem, aparência ou quaisquer outros aspectos constitutivos de sua identidade, os direitos essenciais à dignidade e integridade da pessoa. Estagiou na Destro Consultoria, a empresa júnior da UFRJ, na Finep e na Veirano Advogados. Era pra sede da Veirano que Gilmar apontava quando refazia em gestos o trajeto que foi rotina no final de 2019.
Sara Raimundo em mesa sobre empreendedorismo na Rio Innovation Week, em janeiro de 2022. Foto do acervo pessoal de Gilmar Bueno.
Antes de se tornar uma startup focada em fazer valer o direito do consumidor principalmente para os públicos C, D e E – cerca de 90% da clientela –, a Unicainstancia foi projeto de uma das disciplinas de empreendedorismo do curso de Engenharia de Produção. Gilmar estava na metade do curso quando teve a ideia de criar um negócio capaz de simplificar a vida do consumidor que tenha sofrido cobranças indevidas ou tenha alguma outra pendência burocrática. A empresa compraria a briga do consumidor com fornecedores de serviços como telefonia celular e adiantaria indenizações devidas.
A Garagem GetUp, startup sem fins lucrativos sediada na UFRJ, cujo objetivo é incentivar novos empreendimentos de tecnologia e inovação, acompanhou o desenvolvimento da Unicainstancia ao longo da disciplina de empreendedorismo que oferece na universidade. Cofundada por Édison Renato, professor do curso de engenharia de produção, Daniela Uziel, coordenadora de Inovação no Centro de Ciências da Saúde na UFRJ, e André Luís da Fonseca, pesquisador de marketing e empreendimento na Coppead/UFRJ, a Garagem manifestou interesse em ser investidora da empresa. Apesar do apoio, Gilmar tinha incômodos: “Éramos um grupo de quatro homens, e todos, à exceção de mim, eram brancos. Como um homem preto, eu tinha alguma consciência, mas ainda eram muito imaturas essas ideias”, lembra. “Eu sentia que estava faltando alguém do direito, alguém preto e alguma mulher. Coincidentemente, a Sara me adicionou no Facebook.”
Com a ideia de conseguir um sócio, Gilmar marcou um encontro com Sara. Era outubro de 2019 e ficou decidido que ela ajudaria com a fase inicial do projeto enquanto decidia se topava a sociedade. “A gente se encontrava muito de maneira online e no Starbucks, e aí eu pegava o que eu conhecia de empreendedorismo na prática e eu aprendia na aula e ensinava para ela, e ela passava pra mim a parte do direito que a gente precisava muito”, conta Gilmar. Antes do fim da disciplina, ele decidiu que seguiria com a empresa e chamou os colegas do grupo para sociedade, mas todos declinaram. Sara topou. Em novembro Gilmar passou a se dedicar totalmente à Unicainstancia, e em fevereiro Sara pediu demissão da Veirano Advogados. Em 31 de março, conseguiu o primeiro cliente. Em 13 de maio de 2020, o Unicainstancia já tinha CNPJ. Hoje, a empresa já fez mais de 5 mil atendimentos. Dentre eles está o atendimento com recorde de velocidade: 6 horas para a conquista da indenização – segundo levantamentos da empresa, a média para um cidadão desamparado é de 2 anos e 8 meses. A captação da empresa se dá por uma taxa dessas indenizações recebidas, cobrada somente nos casos ganhos. No caso de derrota, a empresa assume os custos.
Com a chegada da Covid ao Brasil, a aposta de Sara e Gilmar foi aproveitar o período que passariam sem aulas e investir tudo na empresa. Moraram juntos em Rio das Pedras entre junho de 2020 e fevereiro de 2021, quando Sara decidiu sair da Tijuca, bairro onde morava por conta da proximidade com o antigo trabalho. A convivência era facilitada pelos objetivos comuns. “Acho que os dois tinham em mente que a gente estava construindo juntos, então mesmo que tivesse um desentendimento, no dia seguinte a gente acordava, fazia uma piada e seguia o trabalho. A gente sabia que o que a gente estava construindo era muito maior do que a gente, e ainda mais significativo para duas pessoas pretas.”
A questão racial era um norte para Sara. Gilmar conta: “Ela tinha e tem, onde ela estiver, uma fé muito grande em pessoas pretas, em homens pretos em especial. Sara sempre tentava fortalecer essa crença de que nós não éramos o problema, mas que nós poderíamos ser a solução.” Além da fé, Gilmar via em Sara força e uma personalidade exemplar. “Nós tínhamos a ambição em comum, mas ela era muito prática”, descreve. “Eu tinha um sonho, mas ela me deu o plano pra colocar ele em prática.”
Na Unicainstancia, além de cofundadora, Sara era COO, sigla do inglês para Chief Operating Officer, algo como um Diretor de Operações. Era a responsável pela parte de marketing e analisava as métricas da empresa, acompanhando a equipe de operação no dia a dia. A morte de Sara deixou não só um cargo vazio, mas um luto em todo o quadro da empresa.
“Mesmo estando no cargo mais alto, ela nunca colocou uma barreira para mim”, conta a estagiária Luiza Moraes. Para ela, Sara, além de chefe, era uma líder e uma inspiração: “Ela conduzia as coisas com maestria, o mundo podia estar pegando fogo, mas quando fazia coisa estava ali completa.” Nos últimos meses, Luiza estreitou o contato direto com Sara, e diz que tira daquela convivência lições sobre a constante vontade de aprender e a disposição a fazer o que tem que ser feito. “Ela mudou meu jeito de ver o mundo, de conversar com as pessoas.”
Arthur Martins, o atual estagiário mais antigo em atividade na empresa, também trabalhou diretamente com Sara. “Ela estava sempre apoiando a gente, cultivando todo dia. Não só com palavras, mas com atitudes. Não tinha dia ruim para ela.” Sara não deixava passar a oportunidade de celebrar a vida. Na véspera da viagem para a Califórnia, em meio a correria do trabalho, Sara fez questão de brindar: convenceu Gilmar e Arthur a fazerem uma pausa entre as reuniões para tomarem juntos um gole do Chivas 12 anos, presente de Daniel Bergamasco, editor da Revista GQ e autor do livro Da Ideia ao Bilhão. “Ela era uma defensora da prática de comemorar pequenas vitórias da vida, tinha um otimismo, uma garra muito nobre”, descreve Arthur.
No mesmo dia, Luiza teve uma sessão de feedback com Sara. Segundo Luiza, elas conversaram sobre planos para a empresa, trocaram conselhos e debateram ideias. Quando recebeu a notícia, Luiza não conseguiu acreditar. Ao falar com a piauí, ela não escondeu o choque de ter perdido uma referência tão abruptamente. “Tenho conversado muito na terapia sobre isso, a gente pode conseguir procurar alguém para o lugar da Sara, mas é impossível achar alguém com o amor que ela tinha pela empresa, com a vontade de fazer a empresa crescer, com toda a bagagem de ter visto desde o início até agora. Não vai ter outra Sara, e isso deixa a gente com o coração apertado.”