Kaja (Andrea Berntzen), uma adolescente norueguesa, vira a cabeça e olha para trás, apreensiva – ouve tiros distantes; moças e rapazes de sua idade passam correndo, em fuga; as tendas do acampamento estão desertas. Ela parece não entender o que está acontecendo. Isso, depois de ter dito, olhando diretamente para a câmera na abertura de Utoya – 22 de Julho: “Você nunca entenderá.”
A advertência de Kaja, personagem central do filme de Erik Poppe, só começou a nos ser feita em 29 de novembro, com grande atraso, depois da estreia mundial de Utoya – 22 de Julho, em fevereiro, na 68ª Berlinale. Mas o aviso continua a ser repetido à medida que 2019 se aproxima, ao menos no Rio, em uma sessão diária – nem tudo que acontece tem explicação.
Exemplo disso foi o recente ataque a tiros na Catedral de Campinas, no qual cinco pessoas foram mortas, outras três ficaram feridas e o atirador cometeu suicídio, depois de ser ferido pela polícia. A mídia qualifica o ato de “barbárie irracional”, mas não sabe dizer porquê foi cometido.
Há crimes que permanecem enigmáticos para sempre. Esse poderá ser o caso do ataque em Campinas e parece ser o desfecho mais provável do atentado a bomba e ataque a tiros ocorridos na Noruega, em Oslo e na ilha de Utoya, a 40 quilômetros da capital, em 22 de julho de 2011. Nesse dia, um extremista de direita chamado Anders Behring Breivik (1979-) matou 77 pessoas e feriu mais de 300 – a maioria participantes do acampamento de verão promovido pelo Partido Trabalhista Norueguês.
Diagnosticado como esquizofrênico paranoide, nova avaliação psiquiátrica concluiu que Breivik não é psicótico, mas sofria de transtorno de personalidade narcisista – o que, por si só, não explica nada. Condenado a 21 anos de prisão, está previsto pelo menos dez anos de cárcere, passíveis de serem estendidos enquanto ele for considerado perigoso para a sociedade.
Utoya – 22 de Julho “foi feito a partir de um sentimento de raiva – sentimento que ainda não está apaziguado”, disse o norueguês Poppe em entrevista à revista Wired de outubro. “Artistas precisam tomar posição e lutar contra essa doença”, declarou, referindo-se ao extremismo de direita em ascensão contra o qual não havia feito nada. “Para que nos serve a arte se ela não lida com as questões mais difíceis que enfrentamos?”, afirmou ainda.
Uma questão difícil de enfrentar, no caso, é justamente a persistência do enigma com o qual temos que conviver, dada nossa incapacidade de explicar por que o atentado a bomba e o ataque a tiros, como os reencenados em Utoya – 22 de Julho, foram cometidos.
Daí a opção de Poppe ao fazer o filme. Embora baseado em fatos reais, ele e os roteiristas Siv Rajendram Eliassen e Anna Bache-Wiig resguardam a identidade de quem participou do evento e deixam de lado qualquer tentativa de explicar as razões do que ocorreu.
Poppe foi induzido nesse sentido, durante a preparação do filme, “por uma mulher que perdeu a filha no ataque”, conforme ele conta na mesma entrevista citada à Wired. “Ela me disse: ‘Se você fizer um filme sobre amor, esperança e felicidade, eu nunca o perdoarei.’ Ela disse que me seguiria pelo resto dos meus dias se o filme que eu fizesse fosse entretenimento sobre o que aconteceu na ilha. Eu compreendi então que precisava reduzir a história ao essencial.”
Para circunscrever a história ao fundamental, a partir do 17º minuto do filme a câmera de Utoya – 22 de Julho, conduzida por Martin Otterbeck, concentra-se em Kaja, passando a acompanhar sua agonia, enquanto procura sua irmã mais moça, Emilie (Elli Rhiannon Müller Osborne). O plano sequência, gravado após uma semana de ensaios, dura 72 minutos, indo do momento em que tiros começam a ser ouvidos até a própria Kaja ser atingida mortalmente, pouco antes do final.
Sem cortes, elipses ou quaisquer outros recursos usuais de linguagem, graças à combinação da proeza técnica com o realismo da encenação, o sofrimento e a perplexidade de Kaja se tornam o foco central da narrativa de Utoya – 22 de Julho. O atirador não passa de um vulto, vislumbrado apenas de longe duas ou três vezes. O êxito do procedimento acentua a intensidade da angústia de Kaja e torna patente para o(a) espectador(a) o grau extremo de violência a que ela e o grupo de jovens foram submetidos.
Mesmo sem romper de todo com os pressupostos da narrativa cinematográfica dominante, para atender o pedido da mãe de uma das vítimas do ataque, Poppe teve boa dose de ousadia ao tratar do ato monstruoso carente de sentido, sem pretender explicar o que levou tamanha atrocidade a ser cometida, nem querer transformar a violência do acontecimento real em espetáculo.
A eficiente versão do inglês Paul Greengrass, baseada nos mesmos fatos que inspiraram Utoya – 22 de Julho, comentada aqui há dois meses, tampouco teria sido feita para entreter, segundo ele declarou. No fundo, porém, o filme de Greengrass, apesar de seu tema e do chamado estilo documental de sua filmagem, está mais próximo das convenções narrativas do cinema comercial do que o filme de Poppe, como não poderia deixar de ser em se tratando de um dos mais bem-sucedidos cineastas contemporâneos, diretor de grandes sucessos comerciais, perfeitamente ajustados ao sistema industrial de produção.
Tanto em Utoya – 22 de Julho, de Poppe, quanto em 22 de Julho, de Greengrass, porém, há o desejo de fazer filmes sobre “o que está acontecendo no mundo”, desejo considerado “parte da maravilhosa missão do cinema”, nas palavras do diretor inglês que o norueguês certamente assinaria. Ambas produções refletem a interessante tensão existente entre a consciência crítica de seus realizadores e o comprometimento dos dois com o objetivo de fazer um espetáculo de impacto.