Ieda Cristina Mandelli, moradora do bairro Jardim São Luís, na Zona Sul de São Paulo, de 56 anos, acorda diariamente às 4 horas da manhã. Motorista de ônibus há 24 anos, está habituada a sair de casa antes do nascer do sol. Mesmo com as restrições impostas pela pandemia da Covid-19, Ieda não parou de trabalhar – assim como as pessoas que transporta. Com o ônibus muitas vezes lotado, manter o distanciamento desejado é impraticável. E há passageiros que insistem em não usar máscara. “Estou apavorada, mas fico sem opção, porque eu tenho que ir trabalhar”, desabafa a motorista.
Ieda mora com a mãe de 80 anos, que já foi vacinada, mas, mesmo assim, a preocupação de levar a doença para dentro de casa a aflige. Quando chegou o dia estipulado para a vacinação da mãe, a motorista foi a uma Unidade Básica de Saúde perto de casa, no Jardim São Luís, mas não estavam vacinando. De lá, dirigiu-se a uma Assistência Médica Ambulatorial próxima, e a resposta foi a mesma. Foi só na terceira tentativa que elas encontraram um local com o tão esperado imunizante. “É pouca a vacina que está chegando e para periferia é muito menos. Aqui não tem vacina para todo mundo.”
A história de Ieda, o ônibus lotado e a peregrinação em busca do imunizante para sua mãe ajudam a entender como, em todo o país, a vacinação contra a Covid está longe de atingir a população de forma igualitária. Dados do Open Data SUS compilados pelo Pindograma mostram que a desigualdade se repete em várias capitais. Os microdados do SUS permitem mapear a imunização dentro dos municípios, pois incluem os primeiros cinco dígitos do CEP de cada pessoa vacinada. Assim, foi possível estimar a proporção de habitantes imunizados em cada área. As comparações do Open Data SUS limitam-se a dados de ao menos duas semanas atrás.
De acordo com os números de 31 de março, o distrito de Jardim São Luís tinha apenas 24.460 vacinados com a primeira dose, o que corresponde a apenas 8,3% da população da região. Isso coloca o distrito em 79º na lista de vacinação per capita da cidade. Cruzando a Ponte João Dias para o distrito de Santo Amaro, o cenário é completamente diferente. No bairro nobre da Zona Sul paulistana, a proporção de vacinados sobe para 22,9%, ou seja, é o 6º bairro com mais vacinados por habitantes da cidade, só perdendo para outros locais ricos da cidade como Pinheiros, Vila Mariana e Jardim Paulista.
Santo Amaro é exceção na capital: dos dez distritos com maior vacinação per capita, é o único fora do chamado Centro Expandido – área que inclui a maior parte dos bairros de alta renda da cidade, assim como os melhores hospitais e clínicas particulares. Nessa região estão as maiores taxas de IDH (índice de desenvolvimento humano) e expectativa de vida.
As disparidades da vacinação entre o centro e as periferias não são um fenômeno exclusivamente paulistano. Analisando os dados de outras capitais, fica claro que a dinâmica se repete por todo o país. Em Manaus, bairros centrais também lideram o ranking das vacinações per capita. O distrito de Praça 14 de Janeiro tem 31,8% de sua população vacinada com a primeira dose. Próximos dali, os bairros nobres de Adrianópolis e Nossa Senhora das Graças têm, respectivamente, 27,5% e 21,5% de suas populações vacinadas com a primeira dose. Todos esses bairros pertencem à zona Centro-Sul de Manaus, onde o IDH era de 0,850 de acordo com o Censo de 2010, o equivalente à Croácia em 2019. Fora desse núcleo, apenas a região de Ponta Negra e seus arredores superam essas taxas: nos luxuosos condomínios da Zona Oeste manauara, passa de 50% a parcela da população vacinada.
Uma das explicações para as taxas mais elevadas de vacinação em bairros ricos está ligada à estratégia de vacinação adotada no país. Em toda campanha de vacinação, o foco é imunizar quem mais precisa o mais rápido possível. No caso da Covid, depois dos profissionais da saúde, o grupo de maior risco são os idosos. Como bairros mais ricos tendem a ter expectativa de vida mais alta, indicador associado diretamente a uma maior população de idosos, mais pessoas nesses locais serão vacinadas mais cedo. Com isso, as diferenças etárias dentro da própria cidade se transformam em distorções na aplicação de doses.
A estratégia de vacinação contra a Covid segue a lógica padrão de outras campanhas de imunização, visando diminuir a letalidade da doença entre os grupos mais vulneráveis primeiro. Mas esse modelo tem causado polêmica diante de uma pandemia que já dura mais de um ano, sem vacina para todos. Há quem defenda que pessoas como Ieda e seus passageiros, que não puderam parar de trabalhar, recebam doses antes de quem pode ficar em casa por mais tempo. No Brasil, apenas uma a cada quatro pessoas pode fazer trabalho remoto.
Cada cidade tem a prerrogativa de definir, além da faixa etária, outros grupos prioritários na vacinação. A cidade do Rio de Janeiro está vacinando educadores físicos e todos os profissionais de saúde com mais de 50 anos. Isso permite, por exemplo, que, num cruzamento de idade e diploma, profissionais de saúde que estão longe da linha de frente sejam vacinados.
De acordo com Antônio Silva Lima Neto, médico epidemiologista, professor da Universidade de Fortaleza e membro do comitê científico que auxilia governadores do Consórcio Nordeste, a prioridade de vacinação nos bairros mais ricos, mesmo que involuntária, pode ser problemática a longo prazo. “Não podemos tratar os desiguais de maneira igual. Ao invés de favorecer quem consegue se isolar, o ideal seria vacinar quem está trabalhando e, consequentemente, com maior risco.” Segundo Neto, caso não seja priorizada a vacinação de pessoas que estão circulando, a transmissão comunitária continuará – e o risco de surgirem novas variantes e, portanto, de a pandemia se agravar, é maior.
As diferenças etárias por si só, porém, não são o suficiente para explicar todas as discrepâncias de taxas de vacinação. Reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que, mesmo dentro do grupo de idosos acima de 70 anos, houve mais vacinação nos bairros de maior IDH da cidade de São Paulo – diferença explicada por problemas relacionados à logística e à distribuição das vacinas na periferia, que agravaram ainda mais a desigualdade.
No Rio de Janeiro, bairros nobres concentram menos vacinados do que seus equivalentes em Manaus e São Paulo, mas as disparidades ainda chamam atenção. As regiões mais vacinadas da cidade são Santa Tereza e o Centro, com 25,8% e 19,6% de seus habitantes imunizados. Em comparação, na região administrativa da Lagoa – a mais rica da cidade e que inclui bairros nobres como Ipanema, Leblon e a Gávea –, a taxa é de 12,9%, atrás de bairros da Zona Norte como Irajá e Méier. O maior problema da vacinação carioca, no entanto, são as comunidades. Logo ao lado do elitizado Leblon, a vacinação mal parece ter começado no Morro do Vidigal. No CEP que engloba metade do bairro, apenas 4% da população recebeu a primeira dose. No Jacarezinho, a taxa é de 3,9%. No Complexo do Alemão e na Maré, 5% e 5,6% respectivamente.
No início da campanha de vacinação contra a Covid-19, muitas capitais apostaram na estratégia do drive-thru. Esse método é eficiente para vacinar com rapidez, mas exclui muitas pessoas, já que implica ter um carro. O cadastramento virtual também pode dificultar o acesso para idosos e populações mais pobres sem acesso à internet. De acordo com o epidemiologista Antônio Neto, algumas capitais demoraram a utilizar o que há de melhor nas campanhas de vacinação brasileiras, que é a capilaridade do SUS. “As cidades que estão sendo mais bem sucedidas [na vacinação] são aquelas que estão utilizando ao máximo a sua rede SUS e seus postos de saúde que estão mais perto das comunidades.”
Mesmo em uma cidade que parece ter equilibrado melhor a distribuição de doses, como é o caso de Salvador, os problemas persistem. Na capital baiana, a relação entre vacinação e renda não é tão forte, mas ainda assim os bairros mais abastados têm mais vacinados que a periferia. Enquanto o subdistrito de Vitória – que engloba os bairros mais ricos da cidade como Vitória e Ondina – vacinou 19,3% de sua população, os subdistritos periféricos de Periperi e Pirajá têm cerca de 11% dos habitantes imunizados com a primeira dose.
A ideia inicial de que a pandemia impactaria a vida das pessoas de maneira igual durou pouco; na verdade, ela escancarou ainda mais as desigualdades brasileiras. “Me sinto abandonada. A parte da população que mais necessita de ajuda fica de fora e sem apoio”, afirma Ieda Mandelli. A área mais impactada pela epidemia nas capitais, ou seja, a periferia, provavelmente será a última a mitigar o vírus, se a estratégia de vacinação continuar a mesma. “Estamos nessa situação de falta de coordenação nacional e de pouca vacina, e isso tudo faz com que a discrepância se acentue”, afirma o epidemiologista Netto.
Nesta semana, a motorista Ieda Mandelli foi afastada do trabalho por suspeita de Covid. O resultado do exame PCR ainda não saiu. Segundo as previsões de vacinação de São Paulo, ela deveria receber a primeira dose no início de maio – momento que ela aguarda com impaciência. “Estou na contagem regressiva.”