Apesar do sucesso da vacinação contra a Covid-19 na maior parte do Brasil, algumas cidades ficaram para trás. Até a última semana, em São Félix do Xingu, Sul do Pará, apenas 12,5% da população havia recebido a primeira dose do imunizante contra a doença, segundo dados apresentados pela prefeitura. Com isso, a cidade paraense tem a pior cobertura vacinal do país. A piauí comparou dados de vacinação publicados por governos municipais e estaduais em suas próprias plataformas. Segundo o Vacinômetro da Prefeitura de São Félix do Xingu, o município de 136 mil habitantes só aplicou a primeira dose em pouco mais de 16 mil pessoas até a última semana.
Procurados pela piauí, o secretário de Saúde de São Félix do Xingu, Raphael Antônio de Lima e Souza, e a coordenadora de Vigilância Epidemiológica, Tatiane Gomes da Silva, disseram que os dados apresentados no portal da prefeitura estão desatualizados. Os gestores, contudo, não souberam informar exatamente quantas doses ainda precisam entrar no sistema. O secretário afirmou que cerca de 40 mil habitantes já estariam vacinados no município. Já a chefe de Vigilância falou em 29 mil. Segundo a base de dados do governo do estado do Pará, a cidade recebeu 120 mil vacinas – o suficiente para garantir pelo menos a primeira dose de toda a população apta a receber o imunizante – mas só aplicou 22% delas, levando em conta as três rodadas de vacinação da campanha (primeira, segunda e terceira doses).
Apesar da confusão dos números, tanto o secretário quanto a chefe de Vigilância reconhecem o atraso da cidade e classificam a cobertura vacinal como “baixa”. A explicação, para eles, é simples: a população rejeitou em massa a campanha de vacinação. A equipe da prefeitura tentou de tudo: sorteou um celular novo para quem completasse o esquema vacinal, promoveu competições entre equipes de vacinadores, deixou os postos abertos até às dez da noite – mas nada foi suficiente para convencer a maior parte da população a tomar o imunizante. “Agora só mandando prender quem não tomar vacina”, disse à piauí o secretário de Saúde Raphael Antônio, em tom jocoso. “Não há mais nada que possa ser feito.” Ele acredita que a política encarniçada do governo federal foi fator decisivo para a resistência dos xinguenses. “Os bolsonaristas não tomam vacina, não tem jeito”, diz. No primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, mais da metade dos eleitores da cidade votaram em Jair Bolsonaro. No segundo, a proporção subiu para 60%.
O município de São Félix do Xingu é um dos maiores do Brasil e, muitas vezes, as comunidades estão instaladas em locais de difícil acesso. Em janeiro, as sete unidades de saúde na zona urbana e oito na zona rural começaram a disponibilizar a vacina contra a Covid-19. Além disso, equipes de agentes de saúde itinerantes passaram a percorrer todos distritos da cidade, levando o imunizante aos habitantes mais isolados, desde comunidades indígenas à ribeirinhos. A tarefa não é fácil: apenas uma equipe fica responsável por percorrer 300 km do Rio Xingu para garantir que todos tenham acesso à vacina. Alguns distritos da zona rural ficam a 200 km do Centro. Os agentes geralmente passam meses viajando em rondas constantes pela cidade, visitando casas na beira das estradas vicinais e vilas afastadas do Centro.
Quem trabalha na ponta da campanha de vacinação também nota a forte rejeição dos moradores ao imunizante. “Às vezes a gente leva as vacinas no isopor e tem que voltar com ele cheio até a metade”, conta uma integrante da equipe de vacinação, Jaqueline Bringel. “É triste quando isso acontece, a gente fica muito frustrado por não conseguir vacinar.” Várias vezes a cidade precisou se recusar a receber novas remessas de vacinas do estado por ter pouca demanda. Quando os imunizantes em estoque estão prestes a vencer, a chefe de Vigilância de São Félix do Xingu precisa procurar outros municípios para doar as doses que sobraram ou remanejá-las para outras cidades da mesma Regional de Saúde.
No Centro de São Félix do Xingu, não é incomum se deparar com algum agente de vacinação perambulando com uma caixa térmica no braço, caçando alguém para vacinar. Em julho, depois de quase seis meses do início da campanha, a cidade havia vacinado pouco mais de 7 mil pessoas – um número ínfimo, comparado aos mais de 130 mil habitantes. Foi quando os agentes de saúde começaram a fazer campanhas na área comercial do Centro. Num dia ensolarado, sob o típico calor paraense, os agentes percorreram as ruas principais carregando caixas de isopor contendo doses do imunizante. O objetivo era passar pelas lojas, restaurantes e mercados oferecendo vacina para os trabalhadores. Era uma forma de tentar vacinar aqueles que talvez não encontrassem tempo para ir aos postos de saúde.
Quando chegaram a uma loja de autopeças no Centro da cidade, convenceram uma atendente a se vacinar, mas logo foram expulsos pelo dono da loja. “Ele mandou todos os agentes embora falando que não ia deixar vacinar nenhum funcionário”, conta a agente de saúde. “Foi tanta confusão que o pessoal [da campanha de imunização] hoje não passa nem mais na porta lá.” Os episódios de intimidação não são casos isolados. Desde o começo da campanha de vacinação, as equipes de saúde de São Félix do Xingu colecionam histórias parecidas – e o cenário não melhorou com o tempo. No início da campanha de vacinação entre adolescentes, em setembro, o município fechou uma parceria com escolas particulares e juntos enviaram um termo para que os pais autorizassem a vacinação em seus filhos. Enquanto a equipe da prefeitura vacinava os adolescentes que tinham autorização, um grupo de pais e responsáveis entraram em uma das escolas participantes, protestando contra a campanha de imunização. “Eles estavam muito nervosos, quase vieram para cima da gente, falando que não era para vacinar seus filhos”, conta ela. Graças à intervenção da diretora escolar, na ocasião os pais foram controlados, mas permaneceram no local para “fiscalizar” e ter certeza de que os agentes não vacinariam os jovens sem autorização.
Para a chefe de Vigilância, Tatiane Gomes, as mentiras relacionadas à vacina são um grande obstáculo. A mais popular entre os moradores é que, como a doença é nova, uma vacina desenvolvida em pouco tempo não seria boa o suficiente. Todas as vacinas utilizadas no Brasil são comprovadamente seguras e eficazes – e o curto período de desenvolvimento da tecnologia usada nos imunizantes não é motivo para desconfiança. Recentemente, começaram a circular pelos aplicativos de mensagem dos moradores a foto de um homem com as costas vermelhas e feridas, supostamente um efeito adverso da vacina. A foto vem sempre acompanhada de uma mensagem aterrorizando as pessoas, para que elas não tomem vacinas de certos fabricantes. “Se numa capital isso já é um problema, imagina no interior”, diz. E é justamente na zona rural, onde está a maior parte da população, que as equipes encontram os moradores mais recalcitrantes.
É no distrito da Taboca, zona rural de São Félix do Xingu, que os agentes comunitários têm mais dificuldade para ampliar a campanha de vacinação. A região, que só pode ser acessada por estradas de terra, fica a mais de 100 km da sede do município, concentra 20 mil habitantes e é praticamente uma cidade separada. Mas a distância não é a principal razão para a baixa cobertura vacinal do distrito – afinal, a unidade de saúde de Taboca conta com uma sala de vacinação, e as equipes itinerantes se desdobram para acessar as casas mais afastadas, na beira das estradas e em logradouros isolados. Segundo os agentes de saúde, a população local rejeita a vacina por causa da forte presença de dezenas de igrejas evangélicas em São Félix do Xingu.
“Muitos moradores relatam que os pastores pregam em cima do púlpito que não é para tomar a vacina, que é a marca da besta, essas coisas”, conta Jaqueline Bringel, agente da equipe de vacinação. Ela explica que quando a recusa acontece por medo de efeitos adversos ou dúvidas sobre a doença, o processo de convencimento é mais fácil. Nesse caso, os agentes podem fornecer mais detalhes sobre a eficácia das vacinas e tirar as dúvidas relacionadas ao imunizante. Mas quando o argumento entra no campo do absurdo, não existe contra-argumentação possível, diz Bringel: “A gente não tem o que responder quando a pessoa fala que não vai tomar porque a vacina é do demônio.” A piauí não conseguiu falar com pastores evangélicos da cidade.
Em países de baixa cobertura vacinal, a Covid-19 já voltou a assombrar os governantes. Nesta semana, pesquisadores sul-africanos identificaram uma nova variante em Botswana. A B.1.1.529, batizada de variante Omicron, dominou o território da África do Sul em pouco tempo: em menos de 25 dias, mais de 80% dos casos sequenciados no país africano eram dessa nova variante – muito mais rápido que o espalhamento das variantes Delta e Beta. A Organização Mundial de Saúde convocou uma reunião de emergência nesta sexta-feira (26) para tratar da nova variante. Os pesquisadores buscam entender se ela é capaz de reduzir a eficácia das vacinas usadas atualmente. A variante Omicron tem cinquenta mutações, trinta delas na proteína Spike, associadas à habilidade de evadir o sistema imune e se espalhar com mais facilidade. Países da Europa já proibiram a entrada de voos da África do Sul para tentar bloquear a entrada da nova variante. Na Europa, os especialistas já falam em uma pandemia de não vacinados, que pode colocar em xeque os esforços de imunização.
Em São Félix do Xingu, os casos de Covid-19 também voltaram a aumentar nas últimas semanas, especialmente entre pessoas não vacinadas. Até a última quarta-feira, a cidade somava 4.553 casos e três pessoas estavam hospitalizadas. Nesta semana, depois de quase quatro meses sem registrar óbitos pela doença, uma mulher de 76 anos morreu no distrito da Taboca por complicações da Covid-19. Segundo a agente de saúde que conversou com a piauí, ao que tudo indica, a idosa não havia tomado a vacina. Ela foi a 49ª vítima da doença na cidade. A chefe de Vigilância Epidemiológica, Tatiane Gomes, teme que uma nova onda de casos esteja ganhando força em São Félix do Xingu em meio à campanha antivacina na cidade. “Infelizmente, se as pessoas não querem se vacinar, a gente não pode obrigá-las. Então nós dependemos muito de as pessoas aceitarem.”
Ao atraso da imunização soma-se a dificuldade de manter as medidas sanitárias não farmacológicas, como uso de máscara e distanciamento social. Mais uma vez, a dificuldade é maior na zona rural, onde os moradores fazem festas e ignoram o uso de máscaras – e a fiscalização fica mais difícil. Mesmo com a dificuldade para imunizar a cidade, Gomes acredita ser possível aumentar a cobertura vacinal aos poucos. “Devagarzinho a gente chega lá”, afirma, esperançosa. Ainda que a lentidão favoreça o espalhamento do vírus, as equipes continuam rodando e, de tanto insistirem, às vezes conseguem vacinar um ou dois moradores que se convencem e mudam de ideia na última hora. “Cada vacina que a gente consegue aplicar já é uma vitória”, diz a chefe da Vigilância.