Boatos sobre as vacinas contra o novo coronavírus se intensificaram nos últimos meses, especialmente em meio à guerra política em torno da vacina Coronavac, produzida pela empresa chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan. De junho até outubro, o Comprova – coalizão que reúne 28 veículos de comunicação (incluindo a piauí) para verificação de boatos – conferiu 21 conteúdos falsos ou enganosos envolvendo
as vacinas em produção ao redor do mundo. Juntos, eles tiveram cerca de 750 mil interações nas redes sociais e pelo menos 500 mil visualizações. Só em outubro, mês em que o presidente Jair Bolsonaro desautorizou o ministro da Saúde e disse que não utilizaria a vacina chinesa, foram nove conteúdos falsos nas redes brasileiras – quatro justamente na semana passada, quando a polêmica chegou ao auge, e mais três nesta semana. Somente as quatro informações falsas e enganosas sobre as vacinas verificadas na semana passada tiveram 63 mil interações e foram visualizadas por mais de 70 mil pessoas. Em junho, o Comprova tinha verificado apenas dois conteúdos sobre vacinas. Em julho e agosto foram três publicações em cada mês. Em setembro foram quatro.
O debate político encontrou eco nos boatos, e o presidente Jair Bolsonaro tem alimentado a desinformação – como na afirmação, feita em setembro e corroborada pela Secretaria de Comunicação do Governo Federal (Secom) em publicações nas redes sociais e pelo vice-presidente Hamilton Mourão, de que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar a vacina” contra a Covid-19. Porém, a lei que prevê a obrigatoriedade da vacinação foi iniciativa do governo federal e sancionada pelo presidente. O Comprova classificou a afirmação dos governantes como enganosa. Nesta segunda-feira (26), Bolsonaro voltou a dizer que a vacinação não é obrigatória e afirmou que “não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar vacina”. A declaração do presidente foi entendida como um recado ao Supremo Tribunal Federal (STF), que deve discutir a vacinação obrigatória em breve. A Corte já recebeu, pelo menos, quatro ações sobre o tema.
Uma dos conteúdos falsos com o maior alcance força a comparação entre a vacina e o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina, medicamentos sem eficácia comprovada para a Covid-19. Para isso, a publicação alega que o remédio estaria em uso “há mais de setenta anos”, enquanto a “vacina chinesa” é experimental e com poucos meses de desenvolvimento. Cloroquina e a hidroxicloroquina são, de fato, utilizadas há décadas – mas para outras doenças, como malária e doenças autoimunes. Diversos estudos recentes mostraram que os medicamentos não têm benefícios no tratamento da Covid-19, como o estudo Recovery, do Reino Unido. Ainda em junho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou os medicamentos do estudo clínico Solidariedade por não ter sido capaz de identificar redução no número de óbitos entre os pacientes submetidos ao tratamento. Pesquisas brasileiras também apontam para o mesmo caminho. “A maioria das pesquisas até agora sugere que não há benefício e já foram emitidos alertas sobre efeitos colaterais do medicamento”, alerta a OMS. Quanto à vacina, nenhuma ainda foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), já que o novo coronavírus foi descoberto há menos de um ano e elas ainda estão em desenvolvimento. Somente após essa etapa – realizada depois de inúmeros testes que atestem a segurança do imunizante – é que a população brasileira poderá tomá-la. O Comprova tentou contato com as páginas que publicaram o conteúdo, mas não obteve resposta. Bolsonaro usou argumento semelhante em entrevista à CNN Brasil ao afirmar que “as vacinas têm que ter comprovação científica, diferente da hidroxicloroquina”.
Outra publicação que ganhou destaque foi o trecho de uma entrevista do médico Anthony Wong à jornalista Leda Nagle. Nela, o médico afirma que “nenhuma vacina de coronavírus passou pela fase pré-clínica”. A informação é falsa, já que todos os compostos que estão em testes no Brasil passam pelo estágio pré-clínico – etapa na qual o imunizante é aplicado em animais, ainda em laboratório, para saber se ele é seguro para ser testado em humanos. “Todas as vacinas passaram por testes em animais”, garante Jorge Venâncio, coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), um dos órgãos responsáveis por autorizar pesquisas dos imunizantes no país.
A Coronavac, da farmacêutica chinesa Sinovac, foi a primeira a se mostrar eficaz contra o vírus Sars-CoV-2 em um macaco, segundo publicou a revista Science em abril. O imunizante da empresa belga Janssen-Cilag foi aplicado primeiro em hamsters e macacos antes de ser testado em humanos. Os compostos da AstraZeneca (em conjunto com a Universidade de Oxford) e da BioNTech e Pfizer também foram testados em animais em seus estágios pré-clínicos.
O Comprova procurou Anthony Wong, mas não obteve retorno. A presença de um médico entre os propagadores de desinformação nas redes sociais pode surpreender os desavisados, mas desde o começo da pandemia diversos conteúdos falsos e enganosos foram publicados por profissionais da área da saúde – e a politização das questões sanitárias rachou a classe médica.
Em julho, agosto e setembro, as verificações desmentiram outros boatos sobre as vacinas, mostrando que elas não serão capazes de provocar danos genéticos, que não há prisão para quem se recusar a tomar a vacina, nem danos irreversíveis ao DNA, e não estavam sendo produzidos a partir de células de fetos abortados. Ainda no começo de outubro, o Comprova mostrou serem falsas três publicações: uma afirmando que a China não usaria a própria vacina, outra afirmando que pessoas abaixo dos 35 anos não precisariam se vacinar e, por fim, um vídeo de uma mulher afirmando que três irmãos de 13, 16 e 18 anos teriam morrido depois de tomar a vacina contra o novo coronavírus. Procurada, a mulher afirmou que não teria “mais nada a acrescentar”.
Até o momento, as vacinas não estão disponíveis ao público e só estão sendo aplicadas dentro dos protocolos de testes clínicos. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que autoriza as pesquisas clínicas, informou que apenas maiores de idade podem receber as doses e que nenhum relato de mortes ou de reações adversas graves relacionadas às imunizações tinha sido registrado até o momento.