Catorze anos atrás, o gesseiro João Alves Nascimento se ofereceu para assumir o posto de Papai Noel, deixado por um compadre que havia morrido. “Você vai ser Papai Noel como, se você é preto?”, questionou a sogra. Alves foi adiante: não só encarnou o personagem do Bom Velhinho, como passou a arrecadar brinquedos para, na véspera de Natal, distribuí-los a crianças de favelas e de bairros periféricos de Curitiba e região metropolitana. Num único dia, já chegou a entregar mais de 3 mil presentes, de vila em vila. Agora em tempos de pandemia do novo coronavírus, usando máscara, o Papai Noel Nego, como é chamado, quer levar um pouco de esperança às comunidades pobres.
Em depoimento a Felippe Aníbal
Meu nome é João Alves Nascimento, mas nessa época do ano todo mundo me conhece por ‘Papai Noel Nego’. Todo final de ano eu arrecado brinquedos e, na véspera de Natal, me visto de Papai Noel e saio distribuindo os presentes nas favelas, áreas de ‘invasão’ [como são, popularmente, chamadas as ocupações irregulares na capital paranaense], nas vilas pobres de Curitiba e da região metropolitana. Dois ou três mil brinquedos por ano. Vou em cima da caçamba de uma caminhonete, seguida de um comboio de carros. Começamos às 11 horas da manhã de 24 de dezembro e só terminamos de entregar tudo lá pelas 9 horas da noite. É uma festa! Quando as crianças me veem chegando, choram, ficam emocionados, gritam. É gente simples. Para a maioria delas, o único presentinho que ela vai ganhar é o que a gente leva. Eu me sinto muito feliz sendo o Papai Noel dessas crianças. E vou te falar: às vezes, eu não aguento e choro com elas. É muita emoção.
Comecei como Papai Noel catorze anos atrás. Meu compadre Deni, que se vestia de Papai Noel, tinha morrido e não havia quem ficasse no lugar dele. Eu me ofereci, mas minha sogra, que é branca, falou: ‘Você vai ser Papai Noel como, se você é preto?’ Com a maior calma, eu falei: ‘Eu vou ser o Papai Noel.’ E fui. Mas naquela época, eu só distribuía os brinquedos na casa da família e na vizinhança. Foi dois anos depois que tive a ideia de arrecadar brinquedos e distribuir para as crianças da ‘invasão’ da Vila Barigui, onde eu morava, e da vizinha Vila Sabará. Naquele ano, arrecadamos pouco mais de cem brinquedos. Daí, não parei mais. As coisas foram crescendo, bastante gente ajudando, graças a Deus.
Mas fiquei com aquela coisa de ser negro na cabeça. Aí, eu pintava o rosto de branco. Nos primeiros anos, ia com a cara pintada de branco. Aí, a dona de um bar que ajuda a arrecadar os brinquedos, a Regiane, me disse: ‘Por que pintar, seu João? Seja você mesmo. Vá sem pintar.’ Naquele ano, eu fui sem pintar e nunca mais pintei. Virei o ‘Papai Noel Nego’ mesmo. Foi a melhor coisa que eu fiz, porque eu me sentia meio mal de ir de cara branca, de não ser eu mesmo.
Apesar disso, sempre tinha piada, gozação. Os amigos davam risada: “Ó o Papai Noel Nego”, “Onde já se viu Papai Noel dessa cor?”. Mas nunca liguei. Digo com orgulho que sou o Papai Noel Nego. Sempre tive orgulho da minha cor. Ainda hoje tiram sarro, mas levo na brincadeira. Essa coisa de racismo, comigo, já foi pior. E outra: para a criança, não importa se o Papai Noel é branco, se o Papai Noel é negro… Elas vão em cima do mesmo jeito. Acho que elas só enxergam essa coisa mágica que o Natal e o Papai Noel têm.
Neste ano, começamos a arrecadação na metade de novembro. Não ponho a mão em dinheiro. Não aceito um real. Se a pessoa quiser doar brinquedos, é muito bem-vinda. Hoje, tem empresários, gente dos bairros, que ajudam. Mas tem gente que vem e dá um brinquedo. E assim vai.
Não sou de Curitiba. Nasci em Ibaiti, no Nortão [região do Paraná conhecida como Norte Pioneiro]. Sou o quarto filho, entre seis irmãos. Meus pais tinham um sitiozinho e plantavam feijão. Desde os 11 anos, eu trabalhei na roça. Era uma infância boa, solta, mas não tinha isso, de ter brinquedos. A gente pegava lata de leite e arame, e fazia um trenzinho para brincar. No Natal, muito de vez em quando, ganhava uma roupa ou um sapato. Até por isso, quando eu dou um brinquedo para uma criança, eu fico muito feliz. Quando eu tinha 16 anos, mudei pra Curitiba. Comecei trabalhando como servente de pedreiro e, dois anos depois, virei gesseiro. Na época, meus pais venderam o sítio e também vieram para Curitiba.
Hoje, eu estou com 65 anos de idade. Todo ano, eu penso em parar por causa do cansaço, mas o pessoal não deixa. E como eu gosto, acabo ficando. Eu sou assim, meio quietão, mas quando eu visto aquela roupa vermelha e coloco a barba branca, eu me transformo. Tenho um monte de roupas de Papai Noel, mas todo ano compro uma nova ou algum acessório diferente. Tiro do bolso. A roupa deste ano, mesmo, é novinha. Paguei 160 reais. E eu fiz uma promessa: de ir até Aparecida do Norte vestido de Papai Noel, para pagar a graça de ter feito tanta criança feliz.
Neste ano, com essa doença [o novo coronavírus], pensei em não sair de Papai Noel. Eu não tenho medo por mim, mas pelas crianças. Mas acho que pode ser o único momento de esperança que elas podem ter. Estamos pensando em fazer um cercado e uma fila em que fique um longe do outro. Não vai dar para chegar perto das crianças, abraçar, mas só de estar ali, mesmo de longe, de entregar um presentinho, já é uma coisa boa que a gente faz para elas. O ‘Papai Noel Nego’ vai ter que ir de máscara, mas vai.