O resultado de eleições presidenciais pode ser desconcertante, não só no Brasil, mas também em outros países. Ao saber que Kurt Waldheim (1918-2007) foi eleito presidente da Áustria, em 1986, no segundo turno, com 53,9% dos votos, houve reações de espanto na plateia da sessão de A Valsa de Waldheim, há dez dias, no domingo de encerramento do Festival do Rio.
No Festival de Berlim, em fevereiro, a surpresa foi parecida, conforme Ruth Beckermann, diretora do documentário, relatou em entrevista à revista Film Comment: “Eu tenho certeza que a maioria das pessoas sabia o desfecho. Mas quando leram a última legenda, dizendo que Waldheim ganhou, houve uma grande exclamação: ‘Ohhhhh!’, e aí um suspiro, como [se dissessem]: ‘Ele ganhou mesmo.’”
A surpresa em tom de lamento tem razão de ser. Depois de assistir ao documentário sobre o diplomata austríaco, secretário-geral das Nações Unidas por dois mandatos, é mesmo difícil, estando ou não previamente familiarizado com o assunto, entender como Waldheim veio a se tornar presidente da Áustria, tendo sido devotado servidor de Alexander Löhr, comandante-chefe das Forças Armadas da Alemanha nazista no sudeste da Europa, condenado e enforcado, em 1947, por crimes de guerra.
O passado de Waldheim, suspeito de envolvimento também em outros feitos comprometedores durante a Segunda Guerra Mundial, permaneceu encoberto durante quarenta anos, graças a fabulações de sua própria lavra, conforme revela, entre outras fontes, a longa e circunstanciada “Carta da Europa”, publicada sem assinatura na revista The New Yorker em 30 de junho de 1986 (disponível aqui).
Os fatos e as suspeitas que vieram à tona durante a campanha presidencial de Waldheim, em 1986, provocaram manifestações contra sua candidatura, gravadas em VHS preto e branco por Beckermann, na época uma cineasta iniciante – “Não quero um lapso de memória como presidente da República”, resumiu um dos manifestantes. É com essas cenas, narradas na primeira pessoa pela diretora, que A Valsa de Waldheim começa, lançando mão em seguida, para recuperar as atividades de Waldheim durante a guerra e relembrar seu empenho em apagá-las, de um acervo de mais de 200 horas de imagens de arquivo austríacas, de outros países da Europa e dos Estados Unidos.
Na verdade, antes mesmo das imagens iniciais que Beckermann gravou, o tema de A Valsa de Waldheim é indicado em uma epígrafe – a famosa citação do republicano Abraham Lincoln, palavras que ele teria dito, em 1858, na campanha para o Senado dos Estados Unidos: “Pode-se enganar todos por algum tempo e pode-se enganar alguns o tempo todo, mas não pode-se enganar todos o tempo todo.” Banalizada a ponto de se tornar clichê, considera-se hoje que Lincoln não é o autor da frase: “não sabemos quando ele disse isso ou sequer se ele alguma vez disse isso”, escreveu o professor de história David B. Parker.
Fora o erro factual, grave em si mesmo, é particularmente comprometedor, em um filme cujo tema é justamente a invenção do passado, começar atribuindo a Lincoln algo que ele nunca disse. Sugere, de qualquer modo, que recriar o passado não foi privilégio pessoal de Waldheim. A “Carta da Europa” é clara: foi fácil para 500 mil cidadãos austríacos nazistas e 1 milhão de soldados austríacos que combateram no exército alemão, ao todo cerca de 23% da população do país – foi fácil acreditar que a Áustria tinha sido a primeira vítima do nazismo e não um estado nazista, conforme estabelecido em declaração assinada pelos aliados, em 1943.
Até onde foi possível apurar, Waldheim nunca matou reféns pessoalmente. Mas, em 1938, duas semanas depois da anexação da Áustria pela Alemanha, ele entrou para a União Estudantil Nazista. No mesmo ano, alistou-se em uma unidade de cavalaria da SA, a Sturmabteilung, tropa de assalto cujos integrantes, conhecidos como camisas pardas, haviam sido responsáveis com a colaboração de civis, na semana anterior, pela Noite dos Cristais – ataque a judeus e sinagogas que resultou em centenas de mortes, destruição de propriedades, detenção e envio de milhares de pessoas para campos de concentração.
A partir de 1941, Waldheim integrou a equipe do alto comando alemão nos Balcãs, como tradutor, intérprete e “oficial para missões especiais”, função que o levou a ser acusado, sem chegar a ser condenado, na Comissão das Nações Unidas para os Crimes de Guerra, de “assassinato” e de “executar reféns”. Ele estava na Grécia, quando 40 mil judeus de Salonica e Corfu foram detidos e mandados para campos de extermínio; e, na Iugoslávia, quando milhares de guerrilheiros e suas famílias foram massacrados.
Nada disso é mencionado, naturalmente, na versão de Waldheim sobre sua participação na guerra, segundo a qual ele teria sido dispensado das forças alemãs, em dezembro de 1941, depois que uma granada fraturou seu tornozelo na frente russa, e passado o resto da Segunda Guerra cursando direito em Viena.
Beckermann diz, em sua entrevista à Film Comment, que “o caso [em 1986] foi muito bom para a Áustria por que suscitou muitas discussões e a autoimagem do país mudou – a atitude em relação ao passado de Waldheim mudou. De repente, esse tabu foi quebrado, esse tabu de dizer ao mundo oficialmente que eles eram as primeiras vítimas dos nazistas alemães. E sempre com uma piscada de olho, dizendo, ‘Sabemos que isso não é verdade.’”
Depois de eleito, “nada de muito especial aconteceu”, diz Beckermann. “Waldheim não foi convidado para ir a nenhum país do Ocidente. Ele foi ao Vaticano. Visitou o papa, e alguns países árabes, mas foi só. Ele não recebeu nenhum chefe de Estado ocidental. Ele ficou sentado na vila dele durante cinco anos. Acredito que as pessoas teriam entendido se Waldheim tivesse dito: ‘Eu peço desculpa por ter omitido esses anos da minha autobiografia.’ Mas ele foi incapaz de fazer isso. É um enigma para mim por quê. Eu creio que talvez por ser uma personalidade tão rígida, e tão teimosa.” (A entrevista completa de Beckermann está disponível aqui).
No post sobre 22 de Julho, de Paul Greengrass, publicado em 25 de outubro, comentamos a diferença de atitude entre o ex-primeiro-ministro da Noruega, Jens Stoltenberg, e o ex-presidente Lula. Um assumiu a responsabilidade final pelo despreparo do país frente aos atentados terrorista de 22 de julho de 2011; o outro não chamou a si a responsabilidade pelos desmandos cometidos em seus governos, nem fez qualquer autocrítica de sua atuação pessoal – assim fazendo, ambos tiveram destinos bem diversos. Waldheim, por sua vez, não admitiu nada do que lhe foi imputado e ganhou a eleição, mas foi um presidente apagado. Em carta divulgada após sua morte pediu perdão, admitindo ter cometido “erros”, mas “[…] não foram com certeza os de um seguidor, muito menos do cúmplice de um regime criminoso”, segundo ele.
A nave espacial Voyager 2, lançada pela Nasa, em 1977, com a missão inicial de estudar os planetas Júpiter e Saturno, levou um disco folheado a ouro em uma capa de alumínio, feito para sobreviver por pelo menos 1 bilhão de anos. Nas duas horas gravadas, além de sons da natureza como trovão, vento etc., há, entre outras, composições de Beethoven, Mozart, Stravinsky e Chuck Berry, além de uma mensagem de saudação do então secretário-geral das Nações Unidas, Kurt Waldheim: “Em nome das pessoas do nosso planeta, asseguro que saímos do nosso Sistema Solar e entramos no universo em busca apenas de paz e amizade, para ensinar se nos for requisitado, para aprender se formos afortunados. Sabemos muito bem que nosso planeta e todos seus habitantes não passam de uma pequena parte do imenso universo que nos cerca e é com humildade e esperança que tomamos esse passo.” (Gravação disponível aqui).
A Voyager 2 continua navegando. Passados mais de quarenta anos, depois de estudar também Urano e Netuno, está agora na helioesfera, prestes a deixar o Sistema Solar.