No início de agosto, três hospitais de Porto Alegre anunciaram surtos de Covid-19 em suas dependências e acenderam um alerta na cidade. Diferente da relativa estabilidade que o resto da cidade vivia, os casos da doença começaram a subir de forma alarmante no Hospital Nossa Senhora da Conceição, no Hospital Vila Nova e no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Nesses dois últimos, o surto foi controlado em poucos dias, ficou restrito à área administrativa e não houve mortes. Mas um cenário muito diferente se desenhou no Hospital Nossa Senhora da Conceição. Nessa unidade, as medidas emergenciais de contenção não foram suficientes para frear o avanço dos casos. Até a última quinta-feira (19), 136 pessoas foram infectadas em quinze alas do hospital. Mais da metade dos 86 pacientes infectados com Covid-19 já estava completamente imunizada. Mesmo assim, catorze morreram e o surto continua ativo. Os óbitos aconteceram entre idosos com comorbidades, numa média de idade de 72 anos. Esse desfecho mortal no Conceição tem uma explicação: entre os três hospitais afetados na capital gaúcha, esse era o único em que o surto fora causado pela variante Delta.
“Pelas características específicas desse surto, bastante explosivo e com várias áreas envolvidas, a gente já supôs que fosse a variante Delta”, diz a diretora de Vigilância em Saúde de Porto Alegre, Fernanda Fernandes. A cepa identificada primeiro na Índia é pelo menos três vezes mais transmissível que a cepa original – quase tão transmissível quanto a catapora. Com tamanha capacidade de disseminação, disse Samuel Scarpino, pesquisador da Fundação Rockefeller, à revista The Atlantic, o vírus não depende mais dos chamados “eventos super espalhadores” – ocasiões de grande aglomeração, como shows, jogos de futebol ou festas – para causar estrago. Uma única pessoa infectada com a doença já é capaz de criar grupos de infecção, como aconteceu no hospital gaúcho.
O Laboratório Central do Estado do Rio Grande do Sul identificou a Delta em pelo menos dez casos no Hospital Conceição e encaminhou as amostras para confirmação da Fiocruz, que realiza um sequenciamento mais completo para atestar os indícios. Pelo menos quatro mortes foram causadas pela variante no surto do hospital. “Essas contaminações em massa não tinham sido observadas desde que a vacinação começou”, explica Fernandes. “Nós esperávamos a chegada da variante, mas não que iria ter um surto assim, nesse formato. Parece que a Delta está num processo de competição com a Gama [cepa mais prevalente no estado], e ao que tudo indica, ela vai se sobrepor.”
Todas as vacinas ainda são altamente eficazes para proteger contra mortes e desfechos graves da doença. Mas pesquisadores britânicos identificaram que a eficácia dos imunizantes na prevenção de infecções cai frente à Delta. No caso da Pfizer, caiu de 85% para 75%. Na CoronaVac, a mais utilizada no Brasil e também em Porto Alegre, a eficácia cai de 77% para 69%, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China. “A vacina é como se fosse um goleiro”, explica o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas. “Para o vírus original, é um goleiro ótimo. Para as novas variantes, é aquele goleiro razoável. É muito mais provável que a Delta consiga furar esse bloqueio. Se a variante ganhar esse jogo, estamos ralados.”
Porto Alegre está com 76% dos leitos de UTI ocupados. No último Boletim InfoGripe, que analisou a segunda semana de agosto, a capital gaúcha era uma das seis a apresentar tendência de crescimento a longo prazo nos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Esses dados, divulgados pela Fiocruz, geralmente antecipam em quinze dias o cenário da Covid-19 – e servem como alerta para o futuro da epidemia no Brasil. “Aqui no Rio Grande do Sul basicamente está tudo funcionando. Fora a vacinação, não existe uma medida de contenção da Delta”, critica Hallal. “Se continuarmos nesse nível de descontrole, em pouco tempo vamos completar todo o alfabeto grego com novas variantes.”
Na última quarta-feira (18), Porto Alegre anunciou a transmissão comunitária da Delta na cidade. No mesmo dia, chegou a confirmação de um caso da variante, que já vinha sendo monitorado pela prefeitura. Trata-se de uma gaúcha que havia visitado o Rio de Janeiro e foi parada pela barreira sanitária no aeroporto. A amostra foi coletada dia 28 de junho. Ao todo, são três casos importados da variante Delta oriundos do Rio de Janeiro. “Não dá para dizer com certeza que eles trouxeram a variante para Porto Alegre”, explica Fernandes, a diretora da Vigilância. Mas se a turista gaúcha voltou infectada no fim de junho, diz ela, significa que a variante Delta já estava em transmissão comunitária no Rio de Janeiro antes dessa data – ou seja, muito antes do que os pesquisadores imaginam.
É provável que já em julho, quando a epidemia arrefecia no Brasil, a variante Delta se espalhava silenciosamente pelo país. Os movimentos de um vírus se tornam mais difíceis de prever quando a transmissão diminui, explicam os especialistas. É nesse período que o sistema de saúde tira o pé do acelerador e a população relaxa os cuidados. O estado do Rio de Janeiro registrou o maior número de casos da variante Delta no país – 431 até a última terça-feira, segundo o Ministério da Saúde. O estado é hoje o epicentro da nova variante. “Rio e São Paulo são sempre os epicentros de epidemias que vêm de fora por serem hubs de voos internacionais”, explica a imunologista Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical da USP, responsável pelo sequenciamento genético do Sars-CoV-2.
No vírus original, São Paulo foi o primeiro epicentro do país. Não existe uma resposta definitiva que explique por que as capitais se inverteram com a Delta. Sabino explica que o início de uma epidemia se dá ao acaso: é como se espalhássemos várias sementes aleatoriamente. Quanto mais sementes, maior a probabilidade da epidemia vingar. “Hoje, boa parte das linhagens da Delta identificadas em São Paulo vieram do Rio e parece que são elas que estão se disseminando pelo Brasil.” Segundo dados da secretaria estadual, a presença da variante Delta saltou de 26% para 60% em menos de um mês no Rio de Janeiro. Como consequência, a média móvel de casos no estado atingiu recentemente o segundo maior patamar de toda a epidemia. Foram 4.342 ocorrências na média móvel do dia 13 de agosto – e a curva de casos continua crescendo de forma acelerada.
O aumento nesse indicador era esperado, explica Hallal. A dúvida é se a curva de mortes vai seguir essa escalada. “Se eu tivesse que apostar, diria que a mortalidade também vai aumentar em pouco tempo”, analisa o epidemiologista. “Talvez não seja um absurdo, mas as mortes pela doença vinham numa queda muito acentuada e agora já estabilizaram [numa tendência de reversão]. Diminuir essa queda já é um estrago.” As consequências da presença da variante Delta já são visíveis na lotação dos hospitais fluminenses, que servem como termômetro para medir a gravidade do cenário epidemiológico. Esse é o primeiro indicador concreto de que a epidemia está fugindo do controle.
Pela terceira semana seguida, o estado do Rio de Janeiro apresentou um aumento na lotação dos leitos de UTI para Covid-19. A ocupação nas UTI passou de 52%, em meados de julho, para 67% no início deste mês. Na capital, 92% dos leitos de UTI estão ocupados e em pelo menos sete municípios não há mais vagas. No dia 12 de agosto, 152 pessoas esperavam na fila por leitos de UTI e enfermaria no estado – o maior número desde maio deste ano, quando o Rio saía da terceira onda, provocada pela variante Gama.
A prefeitura do Rio de Janeiro informou que pretende adiantar uma dose de reforço aos idosos em setembro. Em entrevista coletiva, Eduardo Paes (PSD) anunciou que a prefeitura prefere proteger os idosos vulneráveis a adiantar o esquema vacinal dos mais jovens. Mas especialistas ouvidos pela piauí avaliam que esse pode ser um erro estratégico, especialmente num cenário de descontrole da variante Delta. “Os dados de Israel mostram que os surtos acontecem em pessoas não vacinadas. Não existe nenhuma justificativa epidemiológica para estar fazendo reforço antes de controlar a epidemia”, disse a epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do Plano Nacional de Imunizações. Deixar de completar o esquema vacinal de toda a população o mais rápido possível é abrir margem para que a Delta continue circulando sem controle.
A Delta conseguiu aumentar o número de casos em todos os países onde foi detectada, mesmo nos que estavam com a vacinação adiantada. Mas não provocou o mesmo aumento nas mortes em países que tinham a maior parte da população completamente imunizada – como foi o caso do Reino Unido e de Israel. Nos Estados Unidos, a história foi diferente. A Delta cresceu com uma rapidez notável e praticamente varreu as outras cepas que circulavam no país. Em meados de maio deste ano, ela representava apenas 2% dos casos identificados nos EUA, segundo estimativas do CDC. Àquela altura, quase metade da população norte-americana havia tomado pelo menos uma dose da vacina, um cenário parecido com o do Brasil atualmente. Não foi suficiente para conter o avanço da Delta. Em junho, a cepa já era responsável por 31% dos casos de Covid-19 nos Estados Unidos. No mês seguinte, em julho, a proporção cresceu para 75%. Em agosto, a Delta já respondia por 86% das infecções – e o CDC estima um domínio completo da variante no país em pouco tempo.
Nos Estados Unidos, a média diária de casos já está acima da registrada no primeiro pico da doença, em julho do ano passado. Em apenas um mês, a média móvel diária de casos quadruplicou e chegou a 140.893 ocorrências na última quarta-feira (18). Nesse dia, o país registrou mais de mil mortes pela doença – o que não acontecia desde março. A média móvel de mortes praticamente dobrou, em comparação com as duas semanas anteriores. Os efeitos da Delta foram mais mortais nos estados menos vacinados. No Mississipi, onde apenas 36% da população está completamente vacinada, a média de hospitalizações atingiu o maior patamar desde o começo da pandemia. Na Flórida, onde o movimento antivacina é mais profícuo, a média de mortes também atingiu um recorde inédito.
O Brasil não sofre com a recusa de vacinas pela população, mas atualmente apresenta – por motivos diferentes – um cenário similar ao dos Estados Unidos: uma alta discrepância da cobertura vacinal entre os estados. E se nenhuma outra precaução for tomada, a Delta pode se espalhar por um país semivacinado mais rapidamente do que o vírus original poderia em um país não vacinado. Até a última sexta-feira (20), o Brasil tinha apenas 25% da população totalmente imunizada. “A tendência é que o nosso cenário seja parecido com o de países que estavam menos vacinados: aumentam os casos e aumentam as mortes”, analisa o epidemiologista Pedro Hallal. O determinante, diz ele, é a resposta que os países dão à ameaça da Delta.
No ano pssado, a China zerou o número de novos casos de Covid-19, mas agora se aproxima de uma nova onda, graças à chegada da variante Delta. O país asiático tem atualmente 144 áreas em médio e alto risco de contaminação – o maior número desde o começo de 2020. Na província de Wuhan, onde emergiu o Sars-CoV-2 original, autoridades sanitárias já atestaram a transmissão comunitária da nova cepa. A Nova Zelândia também confirmou nesta semana um surto da variante Delta na cidade de Auckland. Mas os dezesseis casos em investigação no cluster neozelandês já foram suficientes para que o país inteiro entrasse em lockdown completo. Em Wuhan, todos os 11 milhões de habitantes estão sendo testados, e a cidade já fechou linhas de ônibus e estações de metrô.
“Para ser bem sincero, não vamos ter novas medidas de restrição no Brasil a essa altura do campeonato”, prevê Hallal. A Delta já é a segunda linhagem mais prevalente no Brasil, segundo dados de sequenciamento da Fiocruz. Nesta semana, o governo de São Paulo anunciou o relaxamento das restrições de serviço em bares e restaurantes. O governador João Doria (PSDB) dissolveu o Centro de Contingência do coronavírus, que terá apenas sete integrantes a partir de agora. “Não há mais necessidade de manter uma estrutura com tamanho tão expressivo”, disse ele. Pesquisadores do InfoTracker alertaram que os casos da variante Delta devem explodir em setembro no estado. Depois do Rio, São Paulo tem o maior número de casos da variante no Brasil, seguido do Rio Grande do Sul.
A imunologista Ester Sabino espera que a vacinação segure o espalhamento da Delta. “Aqui no Brasil ela começou a se disseminar num ritmo mais lento que em outros lugares do mundo”, analisa. “Isso pode se explicar pela recente vacinação da população e porque acabamos de sair de uma epidemia muito grave com a Gama [uma variante menos transmissível, porém mais letal].” Ou seja, existe a possibilidade de que sobreviventes da P.1, com imunidade recente e reforçada, estejam contendo o avanço da Delta no país. Mas os especialistas hesitam em fazer prognósticos definitivos. “É a primeira vez que Delta chega num país devastado pela Gama. Precisamos acompanhar o que vai acontecer”, explica Sabino.
O epidemiologista Pedro Hallal concorda: “Do ponto de vista epidemiológico, faz sentido que a Gama freie a Delta, mas eu não acredito que isso vá ser suficiente”. Ainda assim, ele projeta que no fim do ano, depois da tormenta, a epidemia esteja mais controlada com o avanço da campanha de imunização. “A vacina é tão potente que pode corrigir muitos erros que o Brasil comete”, diz. “Mas meu otimismo é tímido porque também tenho medo.”