O fascínio de Werner Herzog pela internet não impede que ele esteja atento a seus malefícios, conforme demonstra em Eis Os Delírios do Mundo Conectado, documentário que estreou no Sundance Film Festival, em janeiro de 2016, e foi exibido no 18º Festival do Rio, nesse mesmo ano. Dividido em dez capítulos numerados em algarismos romanos, com títulos, o filme é narrado pelo próprio diretor, em inglês, e está disponível na plataforma Mubi. O capítulo III – “O lado obscuro” –, visto hoje, no Brasil, destaca-se do restante da investigação sobre “uma das maiores revoluções que nós, humanos, estamos vivenciando”, conforme Herzog diz em voz off.
Neste nosso país em que notícias falsas divulgadas nas redes sociais se tornaram instrumento eleitoral e de governo, são objeto de um inquérito do Supremo Tribunal Federal e foco de atenção da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, sendo corresponsáveis ainda pela morte de mais de 598 mil pessoas – neste país, o caso da família Catsouras, rememorado por Herzog no capítulo III de Eis Os Delírios do Mundo Conectado, demonstra o grau de perversidade a que pode chegar o mau uso da internet.
Nicole (Nikki) Catsouras morreu aos 18 anos na Califórnia, em 2006, no acidente de automóvel em que sua cabeça foi cortada e esmagada. Fotos dela morta, feitas pela polícia no local do desastre, viralizaram na época e chegaram a ter o maior número de acessos no Google. Como se não bastasse, a família passou a receber e-mails com as fotos do corpo mutilado da filha – desse modo, Nikki, suas três irmãs e seus pais acabaram vítimas também da ferramenta de busca.
A mãe de Nikki, Lesli, diz no documentário:
Eu não sabia que havia tamanha depravação em seres humanos. Eu acho que cachorros tratam melhor os seus do que os humanos tratam os seus. Não há dignidade e respeito na internet porque nós não somos incriminados. Eu sempre acreditei que a internet era uma manifestação do anticristo, do próprio mal e do espírito do mal. E tenho a impressão de que está afetando todo mundo na Terra e obtendo suas vitórias entre pessoas que também são do mal por serem tão hediondamente vis.
Tradução mais precisa e interessante do título original – Lo and Behold, Reveries of the Connected World – seria Vejam Só, Devaneios do Mundo Conectado. A combinação de “vejam só” e “devaneios” é mais exata para descrever o encantamento de Herzog frente à pesquisa científica avançada e às maravilhas da tecnologia, no qual há lugar para sonhos, mas também para delírios maléficos.
A linguagem de Eis Os Delírios do Mundo Conectado é convencional – alterna uma série grande de entrevistas com registros documentais e imagens de arquivo. Pelo menos neste caso, o compromisso de Herzog é com a verdade factual, deixando de lado a liberdade do contador de histórias do mercado de Marrakesh que reivindicou para si no capítulo 8 de Herzog on Herzog, de 2002: “Isso é quem eu sou”, ele disse na entrevista ao se voltar contra o cinema verdade.
Para o crítico Peter Bradshaw, comentando Eis Os Delírios do Mundo Conectado, “o novo mundo da interconectividade digital […] é uma segunda revolução industrial feita sem a poluição da primeira – mas que pode ter criado moinhos sombrios e satânicos na mente […] O anonimato é a grande força obscura da web […] Ela liberou enormes reservas de energia criativa, revolucionou a comunicação, democratizou os meios de publicar, possibilitou incríveis feitos, fontes coletivas de conhecimento e análises deslumbrantemente rápidas. Mas também legitimou o ódio e o abuso, criou um narcisismo venenoso e viciante, e encorajou empresas e Estados-nação a confiar serviços vitais ao controle digital e gerenciamento remoto, deixando-os terrivelmente vulneráveis a hackers, vandalismo e desastres naturais que, em uma era analógica, causariam apenas dificuldades locais […] de alguma forma, são as coisas ruins que parecem fazer a energia de Herzog pulsar.” (The Guardian, 17/10/2016. Disponível em https://www.theguardian.com/film/2016/oct/27/lo-and-behold-reveries-of-the-connected-world-review-herzogs-sombre-look-at-the-digital-revolution).
Coisas ruins não faltam entre nós. Além do ódio que emana do Palácio do Planalto, em matéria de fake news não ficamos devendo nada a ninguém. Empresários financiam redes sociais e blogueiros a serviço do negacionismo, da mentira e do mal – subordinados a um presidente da República corresponsável pela dimensão da tragédia humanitária em curso. Não falta assunto para atrair Herzog a fazer um documentário por aqui. Alguém com o talento dele, além dos meios e a independência de que dispõe, teria tudo para fazer algo memorável.
O que ocorre no Brasil, neste momento, é, por si só, de grande interesse. Parece estar em curso uma reversão das expectativas eleitorais. Maioria expressiva da população considera que a economia vai mal, com previsão de queda do PIB, inflação descontrolada e taxa de desemprego alta. A desaprovação do governo alcança seu maior patamar (64%) e continua elevada (58%) a reprovação ao modo de enfrentar a Covid-19. As manifestações de rua do último sábado (2/10) podem não ter atingido a dimensão necessária para influir no rumo da política, mas parecem ter ganhado algum fôlego.
No capítulo IX de Eis Os Delírios do Mundo Conectado, intitulado “A Internet do Eu”, o cientista da computação e pioneiro da internet Leonard Kleinrock, visto na abertura do documentário, volta à cena e declara lamentar “profundamente o fato de que o pensamento crítico profundo e o pensamento criativo tenham se perdido. Na minha opinião”, diz ele, “os computadores e a internet, num certo sentido, são os piores inimigos do pensamento crítico profundo. A juventude de hoje usa máquinas para substituir a análise das coisas que observa. Ela não entende o que está vendo, ouvindo ou que está aprendendo. Ela depende da internet para lhe dizer e decifrar tudo. Ela olha para números em vez de ideias. Ela não consegue entender conceitos, e isso é um problema.” Próxima ao final do documentário, essa advertência fica no ar, atribuindo à internet uma responsabilidade tão grande ou talvez maior do que aquela que provém de seu uso criminoso.
Em entrevista publicada em julho de 2020, em plena pandemia, Herzog sugere mais de uma vez que devemos combater o coronavírus sendo agressivos contra ele e ficando em casa. O mantra dele, dito duas vezes, é claro: “Mate o filho da puta de fome.” Ele afirma também “esperar que o impacto da Covid-19 no cinema seja positivo como em O Decamerão, de Boccaccio: a peste está se espalhando em Florença, os jovens fogem para uma propriedade abandonada no campo, e histórias começam a ser contadas. Cada um dos dez jovens tem que contar uma história por noite. São cem histórias em dez dias. Isso ajuda a empurrar a cultura novamente rumo à narrativa em grande estilo. Não sou profeta, mas é uma experiência nova que não tivemos antes, e espero que consiga extrair o que há de melhor em nós.
Temos que aprender algo – como nos comportar em uma situação que está fora de nossa experiência com o mundo real. Quando você anda pela rua, está em um mundo linear: você conhecerá uma pessoa e depois conhecerá uma segunda. E aí uma terceira e uma quarta. Mas o que acontece nesse caso é uma progressão geométrica. Não é um, dois, três, mas quando você chega, digamos, a 32 pessoas vindo em sua direção, o próximo número em uma progressão geométrica não é 33, mas 64. O próximo número depois disso não será 65, mas 128. Isso está fora de nossa experiência diária com a realidade. Uma vez que você entende esse princípio, você saberá como agir agressivamente para eliminá-lo e, para acabar com ele, a forma mais agressiva é permanecer sem contato. Mate-o de fome. Mate o filho da puta de fome. É uma maneira lógica e adequada de fazer isso (a entrevista completa está disponível em
https://www.bfi.org.uk/interviews/phone-werner-herzog-deep-existential-solitude-coming-us).