Estatísticas disponíveis indicam que o território da Estônia, o menor país do Báltico, é de 45 mil quilômetros quadrados (pouco maior que o estado do Rio de Janeiro), a população é a 156ª do mundo, o Produto Interno Bruto é o 103º, e a taxa de desemprego, em 2015, foi de 5.9%. Dados que confirmam se tratar de um país pequeno, ainda mais se comparado ao Brasil com seus mais de 8 milhões de quilômetros quadrados, população superior a 200 milhões, a quinta do mundo, o nono maior PIB do planeta e taxa de desemprego que chegou em abril passado a 11.2%, quase duas vezes a da Estônia.
Em matéria de sofrimento, porém, a Estônia está bem colocada no ranking mundial do século XX. O Brasil também teve seus padecimentos, mas não foi ocupado por duas potências estrangeiras, nem teve parte de sua população deportada e exterminada pela União Soviética e pela Alemanha nazista, em um holocausto encoberto e esquecido.
Pouco conhecido, igualmente, é o fato de cerca de 6 (seis) filmes de longa-metragem serem produzidos por ano na Estônia, enquanto no Brasil mais de 100 (cem) produções nacionais foram lançadas por ano em 2014 e, de novo, em 2015. Números que desmentem o clichê segundo o qual é preciso produzir muitos títulos para garantir o surgimento de alguns filmes de qualidade. E fazem lembrar, além disso, o conhecido dito popular segundo o qual “tamanho não é (mesmo) documento”.
Na ventania, filme estoniano de 2014 que estreou no Brasil em 16 de junho, é o primeiro longa-metragem de Martti Heldes, hoje prestes a completar 29 anos, nascido em Tallinn, capital do país. Deve haver poucos diretores brasileiros dessa idade entre os que lançaram seu filme de estreia nos últimos dois anos e é provável que não haja nenhum filme feito no Brasil em exibição nestes dias na Estônia. Ao assistir a Na ventania, portanto, uma pergunta se torna inevitável: os consideráveis recursos investidos na produção de filmes, no Brasil, estão sendo bem aplicados ou simplesmente desperdiçados?
Comparações estatísticas à parte, chama atenção a disparidade entre, de um lado, a falta de interesse da maior parte do que vem sendo produzido no Brasil e, de outro, a ousadia, excelência de realização e relevância de Na ventania. Heldes lida com tema que, segundo declarou, “mudou a Estônia contemporânea” – a deportação de mais de 40 mil estonianos, latvios e lituanos, ordenada pela União Soviética em junho de 1941. Articulando um caso pessoal e a experiência coletiva, Na ventania transita com eficiência entre o plano individual e o do conjunto de vítimas do sistema totalitário, habilidade rara em filmes brasileiros recentes que ensaiam formas narrativas equivalentes.
O princípio geral da encenação de Heldes permite que a história de uma única família, baseada em fatos reais e narrada em grande parte por meio de cartas autênticas, torne-se abrangente e seja reconhecida como representação de uma experiência histórica nacional compartilhada.
Erna Tamm (Laura Peterson), estudante de filosofia, é deportada por ordem dos soviéticos com a filha Eliide (Mirt Preegel) para uma região inabitada da Sibéria, enquanto seu marido, Heldur (Tarmo Song), fazendeiro e membro da Liga de Defesa da Estônia, é mandado para um campo de prisioneiros. Heldes recorre a imagens em preto e branco, ausência total de diálogos, narração epistolar na primeira pessoa e treze tableaux vivants (quadros vivos nos quais grupos representam uma cena se mantendo estáticos) que a câmera percorre criando aparência de tridimensionalidade. Da atmosfera idílica do início, feito com imagens em movimento, Na ventania passa à tragédia, durante a qual os personagens não se movem e apenas a câmera se desloca. No final, as imagens readquirem movimento quando Erna diz ter esperança de encontrar Heldur no lugar onde os ventos de leste e oeste se cruzam (o crosswind, vento cruzado ou de través).
Em entrevistas, Helde disse que teve a ideia dos quadros vivos ao ler a primeira das cartas do seu acervo familiar na qual estava escrito: “Sinto que o tempo parou aqui na Sibéria. Que meu corpo está na Sibéria, mas minha alma ainda está na minha terra natal.” Quis, então, fazer um filme no qual “todos e o tempo pararam de modo a recriar o sentimento daquelas pessoas na Sibéria.”
Cada quadro vivo exigiu de dois a seis meses de preparação e foi filmado em apenas um dia, processo que levou a filmagem a levar três anos e meio – condições de trabalho dificilmente imagináveis no Brasil, onde ampla disponibilidade de recursos associada à hipertrofia da gestão burocrática centralizada tem efeito deletério à criatividade.
Na ventania foi produzido com a expectativa de ser visto no máximo por 2 mil pessoas na Estônia e acabou sendo “surpeendentemente bem sucedido”, Helde declarou. “O assunto era tão importante para todo mundo”, ele disse, “que um boca a boca muito bom começou a circular. Muitas pessoas foram assistir ao filme, alguns com seus avós. É muito raro hoje em dia avós e avôs irem ao cinema. Mas jovens levaram seus avós para conversarem com eles depois. É importante, especialmente para a geração mais velha, que um filme como esse exista.”
Quem é capaz de citar um filme brasileiro recente sobre o qual se possa dizer algo parecido? E-mails para a redação.